sábado, 20 de junho de 2020

INQUÉRITO E AÇÃO PENAL

Os brasileiros estão testemunhando confronto entre a presidência da república e o supremo tribunal federal (STF) com atitudes ditatoriais de ambos os lados. O STF tem o privilégio de errar por último, disse antigo ministro. Embora tenha a palavra final na interpretação dos princípios e normas constitucionais, isto não significa que essa palavra esteja correta do ponto de vista formal e justa do ponto de vista material. O tribunal invade competências privativas dos outros poderes como aconteceu, por exemplo, com nomeações feitas pela presidente Rousseff e pelo atual presidente. O tribunal abusa do seu papel de guardião e de intérprete último da Constituição para impor decisões que não se ajustam ao direito. Agora mesmo, torna a acontecer. No esforço de tirar água de pedra, num contorcionismo cerebral, os ministros escaparam da literalidade da norma regimental a fim de manter sob seus cuidados o inquérito que apura a autoria de infrações penais materializadas em notícias falsas, veiculadas na internet, ofensivas ao tribunal, aos ministros e familiares. O inquérito foi instaurado mediante portaria do presidente do STF e colocado sob direção de um ministro. O partido Rede de Sustentabilidade impugnou a portaria mediante arguição de descumprimento de preceito fundamental; denunciou o vício de inconstitucionalidade da portaria, a violação da norma regimental e do sistema acusatório e a falta de prévia distribuição do inquérito. Por maioria, o tribunal rejeitou a pretensão do partido autor e afirmou a legalidade e a constitucionalidade da portaria e do poder de polícia do presidente do STF. O voto vencido, favorável à pretensão do autor, citou em seu apoio parecer de notável jurista paranaense e a opinião da procuradora que antecedeu o atual procurador-geral da república. O julgamento terminou em 18/06/2020. 
A extensão dos votos com repetições e citações desnecessárias e excessivo apoio em muletas doutrinárias, parece indicar insegurança dos prolatores. Quiçá, por necessidade de provar o merecimento de ocupar cadeira na suprema corte, ou simples vaidade, compulsão para exibir erudição, os ministros produzem dezenas de páginas quando três ou quatro seriam suficientes. A logorreia com seu componente emotivo caracteriza também (i) o discurso dos advogados e dos parlamentares (ii) os comentários e reportagens dos jornalistas nas emissoras de televisão (iii) as transmissões dos radialistas (iv) a interação das pessoas nos supermercados, shoppings, reuniões de condomínio. A verbosidade parece fibra genética dos latino-americanos, dos portugueses, espanhóis e italianos. 
Os sólidos argumentos apresentados pelos ministros em defesa da liberdade de expressão, da independência dos poderes, da dignidade do tribunal, da paz, da segurança e do estado democrático de direito, merecem o aplauso e o apoio do povo brasileiro e da comunidade forense. Sobre a importância de tribunais independentes e imparciais para a eficácia dos direitos humanos, há internacional consenso. Todavia, em país democrático, o tribunal não está isento de crítica quando tendencioso. As decisões e ordens judiciais, apesar do necessário e obrigatório cumprimento pelos jurisdicionados, passam pelo crivo da opinião pública e pela análise técnica e científica dos juristas. A conduta do magistrado camuflada pelo ardil verboso, pela retórica falaciosa, pela interpretação capciosa, provoca reação no meio acadêmico e demais setores da sociedade. O tribunal muito contribui para o prestígio e respeito das instituições judiciárias quando (i) retorna à montanha e deixa a planície aos litigantes (ii) assume conduta moral superior à da média dos cidadãos (iii) supera simpatias e antipatias (iv) fica equidistante da esquerda e da direita.     
A portaria impugnada estribou-se no artigo 43, do regimento interno do STF, assim redigido: “Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do tribunal, o presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro ministro”.
Basta empírica intuição para constatar de imediato que, no caso em tela, a infração não ocorreu na sede e tampouco na dependência do tribunal. O jeito para preservar o inquérito foi estender a noção espacial de sede e dependência ao território nacional, âmbito da jurisdição constitucional do STF, acoplado ao ciberespaço. No entanto, entende-se por sede um lugar onde funciona alguma coisa, como parlamento, chefia do governo, tribunal, empresa, clube, quartel, bispado. Entende-se por dependência a relação de subordinação de uma coisa a outra, de uma vontade a outra, de um processo a outro. Aplica-se o vocábulo para designar (i) os cômodos da casa e o quintal (ii) a economia de um país em relação a um produto {petróleo} (iii) ao governo de um país em relação a outro mais poderoso {protetorado}. 
O poder de polícia consiste no conjunto de ações, mecanismos e instrumentos necessários e úteis à execução dos fins do estado e deve ser exercido nos limites da lei. Os chefes dos poderes legislativo, executivo e judiciário exercem-no para manter a ordem interna no funcionamento dos seus órgãos, inclusive como autodefesa, se preciso, com o auxílio da força pública militar ou civil, para garantir o vigor das suas competências e prerrogativas. Nos crimes praticados fora das dependências do tribunal, a instauração do inquérito cabe ao delegado da corporação policial e pode ser instaurado de ofício ou mediante requisição da autoridade judiciária ou do ministério público. [Código de Processo Penal, 4º a 23]. 
A iniciativa da ação penal pública – que se não confunde com a do inquérito – é privativa, mas não exclusiva, do ministério público. Se por picuinha ou por qualquer outro motivo, o ministério público não tomar a iniciativa, a ação penal poderá ser proposta por terceiros (cidadania). Caso a petição inicial (denúncia|) não seja oferecida no prazo legal, qualquer cidadão poderá suprir a omissão do ministério público. Esta democratização da persecutio criminis foi introduzida na ordem jurídica pelo legislador constituinte (1987/1988). O agente do ministério público está sujeito – às vezes inclinado – às injunções políticas partidárias, como se viu na operação lava-jato de Curitiba. Tendo em vista o princípio constitucional da celeridade processual e visando a eficácia do direito e evitar a impunidade, caberá a iniciativa de pessoa física ou jurídica quando o agente do ministério público pedir o arquivamento do inquérito ou demorar excessivamente em propor a ação penal. [CR 129 c/c 5º, LIX, LXXVIII].



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