terça-feira, 16 de junho de 2020

A FORÇA E O DIREITO

A fim de evitar o emprego das forças armadas pelo presidente da república fora dos limites constitucionais, o Partido Democrático Trabalhista promoveu Ação Direta de Inconstitucionalidade pedindo ao Supremo Tribunal Federal (STF): [I] a interpretação conjunta do artigo 142, da Constituição da República com os artigos 1º e 15, da lei complementar 97/1999 e [II] a declaração de inconstitucionalidade do preceito que atribui competência ao presidente para decidir sobre requisições do Congresso Nacional e do STF. 
O ministro relator deferiu o pedido in limine et ad referendum, por entender preenchidos os requisitos legais (fumus boni juris et periculum in mora). Na sua objetiva, criteriosa e bem fundamentada decisão, o relator julgou constitucional a competência do presidente para apreciar requisições de força e assentou que (i) a defesa da pátria, dos poderes constituídos, da lei e da ordem pelas forças armadas não significa poder moderador (ii) a chefia suprema das forças armadas limita-se às competências do presidente definidas na Constituição (iii) as forças armadas não podem ser empregadas contra os poderes da república (iv) o emprego delas para garantir a lei e a ordem reveste caráter subsidiário e se justifica exclusivamente para enfrentar grave e concreta violação à segurança pública interna depois de esgotados os mecanismos ordinários. 
Ante o desvario do presidente da república testemunhado no Brasil e no exterior, a propositura da ação se justifica. A decisão monocrática do relator poderá ser confirmada ou reformada por decisão colegiada do STF em sessão plenária.  
A força do direito e o direito à força garantem valores essenciais acalentados pela nação e expressos em princípios e normas da Constituição. A força moral do direito nem sempre basta à sua eficácia no plano dos fatos. Verifica-se o uso legítimo da força física (i) pelo governo, para dissuadir ou reprimir desobediência à lei ou a decisão judicial (ii) pelo povo, para derrubar ditadura ou protestar contra abusos do governante (iii) pelo indivíduo, em legítima defesa. O uso arbitrário e excessivo da força física por agentes do governo é comum no mundo. Homo homini lupus (o homem é o lobo do homem). A tirania ocorre quando a força é utilizada pelo governante fora das balizas éticas e jurídicas. 
No Brasil e em outros países da América Latina, o caudilhismo está enraizado. A república brasileira resultou de um golpe de estado contra a monarquia perpetrado pelo exército sem participação do povo. Notícias falsas sobre inexistente decisão do imperador versando prisão do marechal Deodoro da Fonseca precederam o golpe. A marinha, força armada mais antiga do país, ficou à margem, o que gerou mal-estar entre as duas forças; acabaram por se enfrentar (1891/1895). Desde aquela época, o exército se considera tutor da república e titular do poder moderador que era privativo do imperador. Segundo a pregação positivista de Benjamin Constant, integrante do grupo golpista responsável pelas notícias falsas, a direção da república cabe aos militares por serem patriotas, honestos, defensores da ordem necessária ao progresso, enquanto os civis são impatriotas, desonestos, corruptos. Essa mentalidade ainda vigora e ajudou nas operações tipo lava-jato simpáticas aos militares. No entanto, o fascínio pelo ouro é comum a civis, militares e religiosos. Informadas mais extensa e profundamente sobre a história do seu país, as futuras gerações talvez retirem das ruas, avenidas, estradas e praças os nomes dos militares golpistas e derrubem as suas estátuas.    
Ao mencionar o poder militar terrestre, a lei complementar reflete a aludida mentalidade. [LC 97/1999, art.17-A]. Em atenção à divisão tripartida do poder governamental, o dispositivo legal devia se referir à força militar terrestre. [CR 2º]. O poder governamental cabe aos parlamentares, ao presidente da república e aos juízes. As forças armadas, o ministério público, o tribunal de contas, o banco cenral, são instituições componentes do governo e servem de instrumento à execução dos fins do estado. Falta amparo lógico, político e jurídico à esquizofrênica distinção entre órgãos de estado e órgãos de governo. Trata-se de artifício cerebrino para separar o inseparável e outorgar independência às forças armadas, ao ministério público, ao tribunal de contas e ao banco central, colocando essas instituições fora de qualquer subordinação.
Governo, povo e território são os elementos constituintes sem os quais estado algum existe. Todos os órgãos do governo são órgãos do estado; não há órgão do estado isolado, distinto, ao lado ou acima do governo. No Brasil, o governo é exercido por três poderes independentes e harmônicos (legislativo, executivo, judiciário), com funções especificadas no texto constitucional que expressam, no seio de um sistema de competências, o poder do estado. 
Durante o período autocrático, o exército foi o titular do poder governamental, ou seja, da capacidade de fato para dirigir o estado, ditar leis, executa-las e fazê-las cumprir quando desobedecidas (1964/1985). Na democracia, essa capacidade é exercida dentro dos parâmetros jurídicos estabelecidos pelo povo. Quando o general Geisel governava, perguntei a um jornalista estadunidense, genro de um desembargador do tribunal de justiça do Estado do Rio de Janeiro, se na política interna dos EUA poderia acontecer o que então acontecia no Brasil. Ele ficou pasmo com a minha pergunta. Após alguns segundos, ele respondeu de modo incisivo e lacônico: “impossível”. O que para nós, sul-americanos, é possível e corriqueiro, para ele, norte-americano, é impensável. Isto ficou claro, neste mês, quando naquele país, general da ativa, chefe do estado-maior, desculpou-se publicamente diante do povo estadunidense (junho/2020). Admitiu ser errado acompanhar – como ele acompanhou – o presidente da república em ato civil de caráter político. Reconheceu imprópria a presença de militares na arena política. Tal atitude reflete o profundo respeito daquele povo aos princípios constitucionais, aí incluído o distanciamento do exército. O cidadão norte-americano tem orgulho e zelo por sua liberdade e devota amor à bicentenária Constituição do seu país. Sobre esse amor, Orlando Bitar cita o comentário de Swisher: “Dando à Constituição um valor absoluto de Justiça, os juízes a santificam.” [A Lei e a Constituição. Obras Completas II. Conselho Federal de Cultura, 1978]. 

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