terça-feira, 24 de março de 2020

SÍNDROME DE SODOMA E GOMORRA

Minha nora solicitou-me, via whatsapp, opinião sobre o conteúdo de um vídeo que ela enviou e eu vi e ouvi. Ante a minha dificuldade em digitar no celular, dei-lhe resposta sucinta que agora amplio, pois tenho mais facilidade com o teclado do computador. Resolvi publicar o meu parecer aqui no blog pensando em leitores que se interessam pelo assunto e que não são assinantes do facebook. Então, ali postei apenas a indicação.  
A mensagem do vídeo consiste na interpretação espiritualista de um fenômeno biológico: pandemia causada por vírus. A interpretação dada pela mensageira tem raiz no atavismo histórico religioso impregnado de mentalidade punitiva. Além de ser objeto de estudos psicológicos e sociológicos, esse tipo de mentalidade tem sido explorado na literatura por escritores notáveis como o russo Theodore Dostoievski (“Crime e Castigo”), o tcheco Franz Kafka (“O Processo”), o francês Victor Hugo (“Os Miseráveis”). Da metade do século XX em diante, esse tipo de mentalidade tem sido afastado da educação no lar e na escola; a vigilância tornou-se prioritária. A mentalidade punitiva tem sido alvo de críticas também nos campos do direito penal e da segurança pública. No sistema hierárquico militar, essa mentalidade permanece inalterada. 
Desde priscas eras, a humanidade se defronta com fatos devastadores, tais como: pestes, epidemias, terremotos, maremotos, tempestades, erupções vulcânicas, colisões com meteoros, longos períodos de seca e de falta de alimento. Fora da explicação racional, o infortúnio é explicado como castigo imposto pela divindade em virtude da má conduta dos homens e mulheres. A reação religiosa e supersticiosa a esses eventos ocorre de diferentes modos, conforme a época e os costumes, tais como: danças, cantos, preces, oblações, penitências, sacrifícios humanos e de animais, rituais de súplicas, de harmonização e de meditação, missa católica, culto protestante, mesa branca kardecista, terreiro umbandista, reunião mística em templo, comunhão de pensamentos altruístas. 
A piedosa mensagem veiculada pelo citado vídeo menciona o efeito espiritual purificador do vírus no que tange ao planeta em contraposição ao efeito letal no que tange aos corpos humanos. Tal assertiva deriva da fé religiosa e não da fé científica. A sua esfera é metafísica e não física. Pressupõe imundície nas almas humanas. Síndrome de Sodoma e Gomorra. No entanto, assim como aconteceu após as desgraças do passado, agora também, depois da crise, o planeta continuará a girar em torno do Sol, os reinos mineral, vegetal e animal prosseguirão com suas leis, a humanidade com seus erros e acertos, seu bem e seu mal, suas religiões, técnicas, ciências e filosofias, suas medicinas individual e coletiva, privada e pública, preventiva e curativa, caseira e hospitalar. Homens e mulheres continuarão com a mesma estrutura física e mental, com suas faces angelical e diabólica, com seus pensamentos positivos e negativos, com seus sentimentos de amor e ódio, alegria e tristeza, prazer e dor, com suas ações construtivas e destrutivas, até o Sol consumir todo o seu combustível. Antes disto, a raça humana poderá ser exterminada por colisão cósmica, por hecatombe nuclear ou por pandemia letal incontrolável. 
O período de necessária reclusão imposta a todos pela doença endêmica implica mudança de hábitos, gera problemas de relacionamento doméstico, provoca descontentamento diante das restrições à liberdade de locomoção e à atividade econômica, e dos óbices à subsistência pessoal e da família. No Brasil, a elite econômica mostra-se contrária às medidas preventivas que importem redução dos seus lucros. Pleiteia a presença de todos os trabalhadores nos seus empregos e ofícios. Ameaça de demissão e de não pagar os salários de todos os empregados que permanecerem em casa. Ante a ausência justificada por motivo de força maior, os trabalhadores reivindicam o pagamento dos seus salários enquanto durar a crise. A gravidade da situação social exige sacrifício de empregados e empregadores. Igrejas se mantêm ativas para receber os fiéis e os dízimos sem os quais elas empobrecerão e os sacerdotes, bispos e pastores emagrecerão. 
Passada a crise, pranteados os mortos, vida que segue. 

Nenhum comentário: