Ao ser interrogado pela agente do ministério público na 13ª Vara Federal
de Curitiba, o ex-presidente da república, Luiz Inácio Lula da Silva, tratou-a
de querida (13/09/2017). A procuradora solicitou tratamento
adequado. O réu passou a chama-la de doutora. Bastava senhora, pois doutor é grau
acadêmico e a maioria dos operadores do direito tem apenas o grau de bacharel.
A instituição judiciária exige decoro (decência, dignidade e respeito
nas relações intersubjetivas ao falar, trajar, trabalhar). Nas audiências, o
tratamento usual entre advogado, promotor e juiz é o de excelência. As pessoas que comparecem às audiências na condição de autores,
réus, testemunhas, peritos, devem se conduzir de forma educada e utilizar o respeitoso
tratamento de senhor e senhora quando se dirigirem aos
advogados, agentes do ministério público e juízes. Ali, ninguém deve se comportar
como se estivesse na sala da sua casa, no estádio de futebol, na casa de espetáculos,
no restaurante, no botequim, no quiosque da praia, sem compostura, com linguajar
informal ou chulo.
Quando cheguei à cidade do Rio de Janeiro, capital do Estado da
Guanabara, deixando a toga paranaense para vestir a carioca, estranhei ao ver (i)
pessoas que aparentavam bom nível social serem tratadas de doutor sem que ostentassem anel de grau e diploma universitário e
(ii) homens se tratarem de “querido”. Constatei que se tratava de costume local.
No primeiro caso (i), forma de agradar ou bajular; no segundo (ii), linguagem sem
especial carga afetiva, simples cordialidade.
Em Curitiba, havia relutância da população em usar o tratamento de
doutor, salvo para médicos. Os curitibanos achavam que tratar o outro de doutor
os deixava em posição inferior e isto a sua altivez não permitia. Quanto aos
advogados, eram tratados de doutor nos seus escritórios e no fórum. No mundo
masculino da terra dos pinheirais, só pederastas usavam “querido”. Macho heterossexual
não gostava de frescuras. Usava-se querido e querida mui restritamente. Chamar mulher
de querida sem que fosse namorada,
noiva, esposa, companheira ou amante, era insinuar ou sugerir intimidade. A
honesta mulher paranaense recebia aquele tratamento como ofensa à sua dignidade
e ao seu pudor. Além da descompostura que lhe passava a ofendida, o assanhado arriscava-se
ainda a levar porradas de algum varão protetor nas cercanias.
No episódio forense em tela, não houve desrespeito e sim descuido do réu gerado
pelo costume de tratar a Presidente da República de querida como sinal de gentil e educada atenção.
Por seu viés igualitário, brasileiros da esquerda têm a mania de a tudo
e a todos nivelar numa equivocada noção de igualdade. Ignoram até as
desigualdades naturais, quanto mais as culturais. Partem da utópica igualdade do ser na busca de igualdade no ter. Detestam hierarquia, ritos
do poder e pronomes de tratamento. Pouco lhes importa se os pronomes integram o
idioma pátrio e refletem o civilizado relacionamento com autoridades (senhoria,
excelência, eminência). Confundem pronomes com títulos nobiliárquicos (barão,
visconde, conde, marquês, duque) e não valorizam a riqueza da língua portuguesa,
nem o refinamento da cultura brasileira. Quiçá por visceral complexo de
inferioridade, essa parcela da população brasileira acha que o uso dos pronomes
de tratamento coloca-a em posição subalterna; que não está obrigada a obedecer convenções
sociais e regras de decoro; que todos os cidadãos são iguais, todos no mesmo
balaio, massa homogênea, indistinta e incolor. Na concepção dessas pessoas, povo é massa indiferenciada e não
conjunto diferenciado de eleitores; elas enxergam o volume, mas não a substância;
ignoram a diversidade de costumes das populações do sul, do centro e do norte.
Na ótica desses vira-latas, tratamento cerimonioso é privilégio pessoal e
não decorrência do cargo ocupado pela autoridade civil, militar ou religiosa. Esse
tipo de brasileiro vibra em orgástica satisfação ao tratar de “você” qualquer
autoridade ou pessoa de superior nível moral ou cultural, embora não a conheça
ou não prive da sua amizade ou intimidade. Quando investidos de autoridade, cônscios
ou não da demagogia do seu proceder, os vira-latas recusam o tratamento protocolar
como se o cargo fosse deles e não da estrutura do estado; como se a reverência
fosse por dotes pessoais e não pela função pública que exercem.
Em nação democrática, parlamentares recebem tratamento especial, não por
seu bom ou mau caráter, mas sim porque debatem e decidem em nome do povo. Nos
EUA, onde a igualdade pesa muito (principalmente entre os brancos) e na Europa,
os magistrados têm tratamento especial. Em sinal de respeito à instituição
judiciária e aos costumes do seu país, as pessoas levantam-se quando o juiz
ingressa na sala de audiência. Assim também no tribunal do júri, no momento do veredicto.
No sistema jurídico brasileiro, interrogatório
feito diretamente por agente do ministério público é inconstitucional e ilegal.
Na audiência acima citada, o juiz delegou o que é indelegável: função
jurisdicional. O interrogatório é função jurisdicional do magistrado. Diferente
da Itália, no Brasil o ministério público não integra a magistratura. Indiferente
à diferença, o juiz curitibano macaqueou o episódio italiano das “mãos limpas”.
A Constituição da República estabelece a separação dos poderes: cada qual
exerce a sua função sem invadir a do outro. No Brasil, vigora o modelo acusatório de processo penal [que
pelo nome não se perca]: funções de acusar, defender e julgar separadas. Ministério
público e réu são partes na ação penal, situam-se em polos opostos na relação
processual {autor x réu + [juiz]}. O juiz curitibano adotou o modelo inquisitório: atua em conjunto
com o ministério público como se ambos constituíssem uma só magistratura. Em
consequência, as investigações procedidas pelo ministério público correm
soltas, sem o necessário controle da constitucionalidade e da legalidade que
deve ser feito por órgão independente: o juiz de direito.
No sistema judicial brasileiro (diferente do sistema dos EUA,
indevidamente aplicado pelo juiz inquisidor) compete ao magistrado interrogar
diretamente o réu que, por sua vez, responde se quiser, posto não estar
obrigado a testemunhar contra si próprio. Ouvido o réu, o juiz indaga ao
acusador e ao defensor se restou algum fato a ser esclarecido. Se a resposta
for afirmativa, eles enunciam as perguntas ao juiz que poderá admiti-las se o
fato apontado for pertinente e relevante, ou indeferi-las, caso contrário. Depois
de filtrá-las, o juiz dirige as perguntas ao réu. O propósito da filtragem é
evitar questionamentos impertinentes ou armadilhas semânticas arquitetadas pelo
acusador ou pelo defensor. (CPP 185/196).
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