domingo, 25 de junho de 2017

DELAÇÃO

No processamento do pedido de homologação de acordo sobre colaboração premiada sob nº 7074, o Supremo Tribunal Federal (STF), em sessão plenária iniciada no dia 21/06/2017, está julgando agravo regimental e questão de ordem. No primeiro dia houve relatório, sustentações orais e dois votos: o do relator, ministro Edson Fachin e o do ministro Alexandre de Moraes. No dia seguinte, mais cinco ministros votaram. Faltam quatro votos para encerrar o julgamento, o que poderá acontecer na próxima semana. Até o momento, os ministros apoiaram o voto do relator. A maioria está formada. A distribuição por dependência foi confirmada. Foram reconhecidos: [1] a competência do relator para homologar (ou não) o acordo; [2] o poder do relator para examinar os requisitos de voluntariedade, regularidade e legalidade; [3] o caráter definitivo dos termos do acordo depois da homologação. 
Apesar da relativa simplicidade do caso, a sessão dura muito mais do que o necessário. A extensão e a compreensão dos conceitos postos em discussão (distribuição de petições a órgão judiciário por dependência, prevenção, conexão, continência, decisão interlocutória, sentença homologatória, sentença de mérito, legalidade, regularidade, voluntariedade), são do comum conhecimento dos operadores do direito. Baixar uma biblioteca e arrombar os arquivos de jurisprudência para explicar tais conceitos como fazem os ministros nos seus votos, coloca sob suspeita o seu saber jurídico. Cada ministro repete várias vezes os mesmos precedentes, as mesmas lições da doutrina, as mesmas normas jurídicas, martela nas mesmas teclas como se quisesse convencer a si próprio. Os votos repetiram ad nauseam, o que está explícito na lei: os requisitos da voluntariedade, regularidade e legalidade e o dever do juiz de examiná-los.
A novidade da delação premiada em nada altera aqueles conceitos e não justifica a longa duração da sessão de julgamento, salvo pelo fato de incluir autoridades do alto escalão da república. Esta exceção afronta a regra de que: [1] todos são iguais perante a lei; [2] na relação processual situam-se no mesmo nível o autor e o réu, sejam autoridade ou cidadão, rico ou pobre; [3] o tratamento jurídico será o mesmo para todos os casos semelhantes. No plano dos fatos, se o caso envolvesse cidadão comum, a sessão duraria 15 minutos (certamente, essa classe de réu não teria foro especial).  
Os ministros reclamam da dificuldade de julgar ante a falta de doutrina e jurisprudência consolidadas sobre a matéria, posto ser novo no direito brasileiro o instituto da colaboração premiada. Destarte, confessam embaraço diante da novidade quando não há teoria e nem precedentes. Parece que ser professor (a maioria dos ministros) atrapalha o juiz. Expositor e repetidor de matérias, o professor se vê em dificuldade para enfrentar situações que não estão nos livros e desafiam o seu entendimento. Há muita papagaiada. Parece que: [1] se não houver jurisprudência e doutrina os ministros ficam no mato sem cachorro; [2] por si mesmos, eles são incapazes de extrair o significado da lei, ainda que em nível gramatical.
Dentro dos costumes da nossa época, os ministros fazem da sessão de julgamento um espetáculo, atuam como vedetes e manifestam suas vaidades. Recíprocos elogios. Mas, nem tudo é confete. Interrompem o colega que está votando, indisciplina na qual Gilmar Mendes e Marco Aurélio são contumazes. Interrupções abruptas, sem solicitar aparte. Os ministros provocam e alongam debates inoportunos que impedem o colega de concluir a sua exposição. O voto é a sentença individual que irá compor (ou não) a decisão colegiada (acórdão). O debate, quando necessário e produtivo, deve ocorrer depois do voto estar concluído e nunca durante a sua exposição. Os ministros falam ao mesmo tempo e não se entendem. Eles contam histórias e fazem graça. Eles se agridem verbal e gestualmente. Desafiam as normas do decoro e da ética judiciária sem medo de punição disciplinar. Aumentam artificialmente a importância das causas que despertam grande audiência, esticando o espetáculo o mais possível diante das câmeras de televisão. Quando, timidamente, a presidente do tribunal tenta colocar ordem naquela bagunça, a sua voz - se ouvida - não é acatada. Os ministros assemelham-se aos senadores e deputados nas tribunas das respectivas casas legislativas.
Aludindo à farsa televisiva sobre a Guerra do Golfo, o político e escritor peruano Mario Vargas Llosa cita Jean Baudrillard: “O escândalo dos nossos dias não é atentar contra os valores morais e sim contra o princípio da realidade” (A Civilização do Espetáculo. Tradução de Ivone Benedetti. Rio de Janeiro. Objetiva, 2013, p. 72). Na verdade, o escândalo dos nossos dias brasilianos e tropicalistas são as duas coisas: a imoralidade (nesta, a licenciosidade) e a virtualidade (nesta, o engodo). Provincianos, ministros têm paixão por holofotes e não se pejam do papel ridículo que às vezes desempenham.  
A solução negociada é nova no direito penal brasileiro se comparada com as antigas ordenações e com os código penal (1940) e de processo penal (1941). Esse instituto foi introduzido nos anos 1990, por imitação da vetusta prática anglo-americana. A lei 9.034/1995, estabelecia a redução da pena do agente (investigado, indiciado, réu) que espontaneamente colaborasse na elucidação das ações praticadas por organizações criminosas. A lei 9.099/1995 privilegia a conciliação e a transação no juizado especial criminal. A lei 12.850/2013 revogou a lei 9.034 e disciplinou metodicamente essa matéria tomando por base a experiência nessa área nas últimas décadas.
No jargão forense, delação premiada foi substituída por “colaboração premiada” e delator por “colaborador”, quiçá para aliviar a carga de vergonha. Delatar significa apontar alguém como autor de ato censurável ou ilícito. Nunca foi um gesto grandioso, mesmo entre facínoras. O delator é visto como traidor, violador do código de honra, pessoa de caráter mal formado. O nomen juris suaviza a imoralidade congênita do acordo. Ser tratado como “colaborador” atenua a gravidade do ato, reduz a censura e facilita a sua aceitação no campo moral e jurídico. Os costumes mudam no curso da história. O que ontem era imoral, hoje é moralmente aceito e vice-versa. A delação é útil nos delitos de difícil apuração, como nos denominados crimes do colarinho branco. A utilidade supera a moralidade.   
O acordo de colaboração premiada é celebrado: [1] no inquérito, entre o delegado de polícia e o investigado com a participação do agente do ministério público, ou entre o investigado e o ministério público; [2] no processo, entre o ministério público e o réu. Em qualquer dessas hipóteses, a presença do defensor é obrigatória. A lei permite a retratação. A validade do acordo depende da homologação judicial. Homologar significa aprovar, revestir de valor jurídico o que foi negociado e lhe dar vigência. Na esfera judicial, quem homologa é uma autoridade do poder judiciário: juiz, desembargador, ministro. O regimento interno do tribunal atribui competência de homologar ao seu membro (desembargador ou ministro) responsável pela instrução do processo que lhe coube por distribuição. Portanto, a homologação é decisão monocrática. Dela pode haver recurso para órgão judiciário de superior hierarquia. 
A autoridade judiciária tem o poder jurisdicional de verificar a legalidade do acordo. Constatada qualquer ilegalidade, recusará homologação ou a condicionará a um reajuste adequado à ordem jurídica. Essa verificação é ato de fiscalização oficial que não se confunde com participação do juiz no negócio entabulado pelas partes. A lei veda expressamente a participação do juiz nas negociações (12.850/2013, art. 4º, §6º). Do exame da legalidade, a citada lei destacou a voluntariedade e a regularidade, cuja violação entra no campo da ilegalidade. A ênfase dada pelo legislador a esses dois requisitos deve-se ao seu caráter essencial nesse tipo de acordo. A vontade há de ser livre e espontânea; se constrangida por tortura, prisão, suborno, não é válida; o vício de vontade torna o ato nulo ou anulável. O acordo também será inválido se houver qualquer irregularidade (negar participação do advogado, recusar direitos fundamentais, ocultar do delator o que ficou escrito, contornar o sigilo). Em todas essas hipóteses, o juiz deve negar a homologação.
Nos termos da referida lei, cabe ao delegado ou ao agente do ministério público propor o acordo de colaboração premiada. Ao investigado (ou réu) cabe aceitar (ou não) a proposta. As partes podem negociar as cláusulas do acordo. O ministério público não é obrigado a oferecer denúncia contra o delator com o qual celebrou acordo. Caso não haja denúncia, ainda assim o acordo poderá ser utilizado na persecução criminal contra as pessoas delatadas. Proposta ação penal contra o delator e percorridos os trâmites legais, o juiz ou o tribunal (no caso de competência originária) decidirá o caso com apoio na prova produzida (testemunhal, documental, pericial) absolvendo ou condenando o réu. No momento da sentença condenatória reservado à aplicação da pena, o juiz examinará os termos e a eficácia do acordo (lei 12.850/3013, art. 4º, §11); verificará: [1] se os termos da avença: (i) ajustam-se ao conjunto probatório; (ii) foram cumpridos; [2] se foi obtido pelo menos um dos resultados enumerados na citada lei (art. 4º, I a V).  O juiz disporá das alternativas: (I) conceder o perdão judicial; (II) reduzir a pena privativa de liberdade; (III) aplicar somente: (i) a pena de multa; (ii) a pena restritiva de direitos. Isoladamente, as declarações do colaborador não servem para alicerçar sentença condenatória. Em relação ao colaborador, o acordo importa confissão da prática delituosa e confissão é um tipo de prova (CPP, 197).                  

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