domingo, 18 de junho de 2017

DEPOIMENTO

Em trâmites pelo Tribunal Federal da 4ª Região, sediado em Porto Alegre/RS, a apelação interposta por João Vaccari Neto, da sentença condenatória em processo criminal prolatada pelo juiz de direito da 13ª Vara Federal de Curitiba. O desembargador relator votou pelo desprovimento da apelação do réu. Confirmou a sentença e agravou a pena. O desembargador revisor votou pelo provimento da apelação e absolvição do réu. Entendeu que as declarações do agente colaborador isoladas dos meios de prova permitidos em lei não autorizam o decreto condenatório. O desembargador vogal pediu vista do processo. O julgamento foi suspenso.
A divergência surpreendeu-me. Considerando o perfil nazifascista do juiz e do tribunal daquela região, eu esperava decisão unânime confirmatória da condenação. Naquele tipo de justiça a convicção do julgador dispensa vínculo com prova alguma. Bastam indícios, boatos, notícias de jornal, pressão de emissoras de televisão, lobbies e ginástica cerebrina. Destarte, eu pensava que somente quando o caso chegasse no Supremo Tribunal Federal o processo seria anulado. A decisão anulatória fundar-se-ia no fato de os órgãos judiciários de menor jurisdição funcionarem como juízo e tribunal de exceção em frontal desobediência a norma constitucional que o proíbe.
Realmente, os processos oriundos da operação lava-jato caracterizam-se por ter dois polos apenas: (1) o polo acusador composto dos agentes do ministério público, do juiz e do tribunal; (2) o polo defensor composto por advogados. Esta é uma característica do processo inquisitório não abrigado na ordem jurídica brasileira. Tal caráter mais se acentua visualmente ao vermos o acusador sentado ao lado do julgador. Segundo a lei brasileira, a relação processual é angular: autor – juiz – réu. O juiz é a pessoa imparcial que se sobrepõe às duas partes (autor x réu). A posição central ocupada pelo juiz na sala de audiência pode disfarçar a parcialidade. A efetiva atuação do juiz pode estar - como realmente está na citada operação - em descompasso com a posição topográfica e com a relação processual angular.  
Na apelação acima citada, o revisor postou-se contra o modelo inquisitório e julgou de acordo com o direito positivo brasileiro, inaugurando a divergência. De modo inesperado, dado o caráter de juízo e tribunal de exceção assumido pela justiça federal daquela região, o revisor admitiu que o réu podia até conhecer os fatos que lhe foram imputados, porém disto não havia prova nos autos do processo. [Aliás, até confissão pode ser desconsiderada se estiver fora de sintonia com o conjunto probatório].  
A fundamentação lançada pelo revisor lembrou-me de sentença que proferi quando juiz de direito de vara criminal na capital do Estado do Rio de Janeiro na década de 80. Tratava-se de ação penal em que o réu era acusado de tráfico de drogas. Eu e demais moradores da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro sabíamos que o réu, Denis da Rocinha, era traficante. Todavia, no inquérito e na ação penal foram apresentados como prova: (1) carteira profissional em que não constava o registro do réu como trabalhador no comércio de drogas; (2) depoimentos de dois policiais sobre a diligência no morro, em local destinado à distribuição de drogas, onde encontraram a citada carteira (que podia ter sido ali plantada). Nenhuma testemunha idônea, nenhum outro documento, nenhuma perícia, que indicassem a ligação do réu com o local e com o ilícito comércio. Julguei improcedente a denúncia e absolvi o réu.
O processo judicial é uma garantia fundamental da liberdade, dos bens e direitos de todos os cidadãos, instrumento da eficácia da ordem jurídica vigente num estado republicano e democrático. A produção de prova idônea é essencial a essa garantia. A opinião circulante no meio social, ainda que respeitável e veraz, não basta para lastrear sentença condenatória criminal. Diga-se o mesmo de delações desprovidas de alicerce probatório. Necessário que opiniões e delações venham alicerçadas em idôneos testemunhos, documentos e exames periciais para valer como prova no processo judicial. Na área criminal, por especial cuidado com a liberdade e a integridade física e moral dos réus, inaplicável a regra do processo civil segundo a qual fatos notórios independem de prova. Cabe lembrar que na aplicação dessa regra no âmbito do processo civil pode ser exigida a prova da notoriedade, embora dispensável a dos fatos em si mesmos. No processo penal, notórios ou não, os fatos devem ser provados em toda a sua materialidade e autoria.          
Nos EUA, principalmente em Chicago, décadas de 1920 e 1930, era notório o fato de Al Capone ser gangster, comandar um exército de bandidos, praticar assassinatos, explorar negócios ilícitos e corromper autoridades públicas. O aparelho estatal de segurança parcialmente corrompido (policiais, procuradores, juízes) não reunia prova suficiente para processar, condenar e prender o poderoso delinquente. Este é o ônus da vigência da regra do devido processo jurídico numa sociedade democrática sob o império do direito. Ante a descoberta feita por agente federal de que Al Capone não declarava renda e nem pagava impostos, foi possível reunir prova documental e contábil do crime de sonegação fiscal. Só então ele foi processado e condenado. Cumpriu pena de prisão (1931/1939). 
Alphonse Gabriel Capone foi capa da revista Time como respeitável empresário e filantropo (1930). Durante a crise gerada pelo estouro da bolsa de valores de NY em 1929, ele prestara ajuda material aos desempregados, inclusive com restaurante que lhes oferecia refeições gratuitas. Ao sair da prisão, doente, sossegou, mudou-se para Miami Beach, onde morreu, sepultado com modesta cerimônia católica (1947).

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