domingo, 11 de junho de 2017

JUSTIÇA INDECOROSA

No Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o julgamento das quatro ações propostas pelos perdedores das eleições de 2014 contra a chapa vencedora prolongou-se de 06 a 09 de junho de 2017. Os autores alegavam abuso político e econômico durante a campanha eleitoral. Ao contestar as ações, os réus Dilma Rousseff e Michel Temer, tratados delicadamente de “requeridos” ou “representados”, afirmaram a lisura das contas e a origem lícita das verbas aplicadas na campanha, desvinculadas das propinas jorradas da Petrobrás. Foi produzida prova oral, documental e pericial. O TSE, por maioria dos seus integrantes (4 x 3), julgou improcedentes os pedidos contidos nas ações. Em consequência, ficou reconhecida a legalidade da chapa vencedora nas eleições de 2014, o que não significa legitimidade do governo Temer. 
Tendo em vista o constrangimento da nação brasileira de ver a presidência da república ocupada por delinquente, cabe agora com urgência máxima: [1] ao Supremo Tribunal Federal (STF) julgar a ação na qual Dilma Rousseff pretende reintegrar-se no cargo de presidente da república; [2] à Câmara dos Deputados autorizar o Senado Federal a instaurar o processo de impeachment contra o presidente Michel Temer; [3] ao Congresso Nacional promulgar emenda à Constituição antecipando as eleições diretas. 
Na sessão do TSE, que durou quatro dias, terminada a leitura do relatório, ocuparam a tribuna os patronos dos autores e dos réus para as respectivas sustentações orais. A seguir, o relator devia iniciar a leitura do seu voto. No entanto, o que se viu foi uma barafunda: [1] debates e votos misturados; [2] questões de ordem não tratadas como tal; [3] ministro interrompendo a fala do colega sem solicitar aparte; [4] ministros falando ao mesmo tempo; [5] excesso de citações e de especulação.
Ao voto do relator, muito elogiado por seus colegas, faltou síntese.  Leitura lenta com frequentes intervalos para explicação e justificação como se cuidasse de um único processo em trâmites pelo TSE e os seus ministros nada mais tivessem a fazer nos seus tribunais de origem (STF e STJ). A regra da celeridade foi para o espaço. Parecia disputa pelo troféu “mais longo da história”, à semelhança do que esporadicamente ocorre nos tribunais do júri, quando os presidentes manobram para ampliar a duração do julgamento e assim o incluir “no mais longo da história”, como se o tempo – e não a matéria – indicasse a superior importância do caso. O presidente do TSE repetia com ênfase, ser este o caso mais importante da história da justiça eleitoral. Reivindicava a glória para si próprio, mandando às favas a modéstia. Cabe aos historiadores conferir, desde o Código Eleitoral de 1932 e a Constituição de 1934 até a presente data, se realmente isto é verdade, considerado o elemento subjetivo na avaliação.
A diferença entre o caso federal e os casos ocorridos nas esferas estadual e municipal está nas casas do milhar, do milhão e do bilhão de dólares. Por motivos óbvios, o caso do presidente repercute mais do que os casos dos governadores e dos prefeitos. Os valores utilizados nas campanhas eleitorais para os governos de São Paulo e do Rio de Janeiro impressionam tanto quanto os utilizados na campanha presidencial. As questões são as mesmas nos três entes federativos: corrupção, lavagem de dinheiro, fraudes eleitorais. As regras constitucionais e legais violadas são as mesmas. Os fatos são os mesmos: relações espúrias entre o público e o privado, circulação do dinheiro via propinoduto, utilização desse dinheiro pelos partidos e candidatos. As provas são as mesmas: testemunhal, documental, pericial, roboradas por delações premiadas. Aos delatores falta credibilidade, mas podem ser admitidos como informantes, com as cautelas necessárias, pois não lhes favorece a presunção de veracidade.
Enquanto lia o seu voto, o relator apresentava explicações e justificativas como estivesse desculpando-se pela iminente conclusão: cassar a chapa. No exercício da judicatura, descabe ao juiz ficar se explicando e se justificando. O seu dever é examinar a prova e a argumentação das partes sem fraqueza de espírito e com a relativa liberdade permitida pelo ordenamento jurídico; julgar de acordo com a Constituição, a lei e a sua consciência, nos limites da pretensão deduzida na petição inicial; expor os fundamentos fáticos e jurídicos da sua decisão. O juiz deve interpretar e aplicar as regras do direito positivo sem distorção, sem ginástica cerebrina; deve decidir honestamente, sem parcialidade, no firme propósito de ser justo.
O excesso de cuidados praticado pelos julgadores (como se estivessem pisando em ovos), a insistência perturbadora visando a convencer os colegas, a carga emocional sombreando a análise racional, o exagero na citação da doutrina e da jurisprudência (como tábua de salvação) podem traduzir insegurança, tendenciosidade, particular interesse na causa, fumaça para ocultar o veio principal. A vaidade dos magistrados compõe esse quadro. A transmissão dos trabalhos por emissoras de televisão lhes dá enorme visibilidade. Aproveitam-na para falar de si próprios, dos seus feitos, ideias e crenças, contar histórias, fazer piadas, exibir virtudes. Nessa embriaguez, às vezes descuidam-se e deixam escapar alguns defeitos e atos falhos. 
O mandato presidencial não justifica excessos praticados pelos juízes, nem tratamento diferenciado em relação aos mandatos de governador e prefeito. Os juízes têm o dever de, com ânimo isonômico e mesmas objetividade e celeridade, apreciar os fatos à luz do direito vigente, precavidos contra as cores partidárias e ideológicas, os lobbies, a sedução de pessoas elegantes, a cambiante e difusa opinião popular.     
A serenidade ausentou-se da sessão de julgamento. Notável a grosseria do presidente do TSE: interrompia o relator e demais ministros sem solicitar aparte; criticava-os de forma arrogante e indelicada; discutiu de modo áspero com o representante do ministério público, censurando-o por haver arguido a suspeição de um ministro. Posto que o motivo era adrede conhecido (o ministro fora advogado da presidente Dilma Rousseff em 2010), a exceção de suspeição devia ser apresentada no primeiro dia, ao iniciar a sessão e não depois de o ministro ter acompanhado a leitura do relatório, as sustentações orais, o voto do relator e de participar dos debates entre os julgadores. Quanto à substância, assiste razão ao ministério público: a chapa em julgamento era da antiga cliente do ministro. Neste caso, a suspeição é juris et de jure; decorre do fato em si, independente da qualificação ética e do senso de justiça do magistrado. Houve tumulto motivado não só pela exceção de suspeição como também pela “ira do profeta”, protesto inflamado do ministro Napoleão Maia ante a notícia de que seu nome constara de delação premiada. O presidente suspendeu os trabalhos.
O presidente cumpriu mal a sua função de organizar e dirigir os trabalhos quando: [1] impediu o julgamento em separado de cada preliminar; [2] tolerou interrupções durante o voto do relator sem prévio pedido de aparte; [3] permitiu polêmica durante o voto do relator. O momento oportuno do debate entre os magistrados precede a votação. Com certa frequência, há debates também no intervalo entre um voto e outro, o que tipifica exceção à norma. Todavia, enquanto o juiz expõe o seu voto, constitui grave defeito deontológico provocar debate. O voto é a sentença individual que prevalecerá ou será vencida na decisão colegiada (acórdão). Portanto, o voto não pode ser atacado enquanto não estiver concluído.
Há magistrados que usam a oportunidade do debate para adiantar e defender o seu próprio voto. Interferem assim na sequência legal e regimental do julgamento causando confusão e desvio do foco da demanda. No caso em tela, somente no quarto dia e após cessada a bagunça motivada pela exceção de suspeição e pela “ira do profeta” é que os ministros proferiram os seus votos sem interrupção.   
As preliminares levantadas pela defesa e rejeitadas pelo relator deviam ser objeto de pronta decisão do colegiado. Algumas delas podiam prejudicar o exame do mérito. No entanto, procedeu-se ao exame conjunto das preliminares e do mérito, impropriedade técnica censurável. Embora a solução do mérito seja o escopo da demanda, o vício de forma deve ser saneado com precedência como fase do devido processo jurídico. Entra aí, o critério da economia processual, uma vez que não se gastará tempo e fosfato com o exame do mérito se acolhida a preliminar que o prejudica.

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