sábado, 28 de maio de 2016

IMPEACHMENT XI

A ordem jurídica brasileira tem sido vilipendiada nesta quadra da história. A garantia do devido processo jurídico tem sido uma das grandes vítimas, pervertida que foi nas suas duas vertentes: substantiva e processual. Os interesses políticos e econômicos de gangsteres prevalecem sobre os da nação brasileira. Em consequência, normas de direito material e processual são subvertidas.   
Do exame conjunto dos artigos 52, inciso I e seu parágrafo único, e 86, ambos da Constituição da República, verifica-se que: (I) compete privativamente ao Senado Federal processar e julgar o Presidente da República; (II) funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal (STF). Destarte, o Presidente do STF deve presidir a instrução processual e o julgamento. A Constituição de 1988 mudou o rito da lei de 1950, cuja parte processual não foi recepcionada. O Senado teve sua competência alargada para também processar e não apenas julgar. Logo, o Presidente do STF funcionará tanto na instrução processual como no julgamento, como estabelece o parágrafo único, do artigo 52, da Constituição da República.  
Processar significa dar início e sequência a procedimentos em determinada ordem para chegar a um resultado final. O processo penal (parlamentar ou judicial) consiste no conjunto de procedimentos destinado a: (1) apurar a responsabilidade da pessoa acusada de praticar algum crime; (2) chegar a uma decisão absolutória ou condenatória. No impeachment em curso se apura a responsabilidade da Presidente da República por atos supostamente ilícitos enquadrados no artigo 85, da Constituição Federal e em algum dos artigos 5º a 12, da lei 1.079/50 (créditos suplementares sem autorização do Congresso Nacional + “pedaladas fiscais”).
Apresentadas a petição inicial (denúncia) e a autorização da Câmara dos Deputados ao Presidente do Senado, forma-se Comissão Especial para emitir parecer. Após o parecer, o Senado, em sessão plenária, decide se recebe ou não a denúncia. Recebimento aqui tem sentido técnico de decisão judicial com efeito jurídico de instaurar o processo. O Senado decidiu receber a denúncia. Instaurou-se o processo que, a partir deste momento, fica sob a direção do Presidente do STF. A este serão remetidos os autos originais (lei 1.079/50, art. 24, p.u.). Entretanto, não foi isto o que aconteceu. O Presidente do STF continua fora do processo já instaurado e em andamento sob a inconstitucional direção do presidente da Comissão Especial. Ademais, não há falar em “pronúncia”, até porque não se trata de crime contra a vida. Ante o novo tratamento constitucional da matéria, o “libelo” referido no artigo 24, da lei 1.079/50, perdeu a razão de ser. A denúncia já recebida pelo Senado, substitui o libelo com vantagem. Além da técnica atualizada, o novo tratamento atende a constitucional exigência de celeridade e razoável duração do processo. Antes do recebimento da denúncia houve ampla produção de prova que se realizou sob o crivo do contraditório perante a Comissão Especial. Não há razão jurídica, nem sentido prático para, de modo insensato, repetir tudo perante a mesma Comissão!
Para adequar o artigo 24, da lei 1.079/50, à letra e ao espírito da Constituição de 1988, o Senado deve nomear Comissão Acusadora para acompanhar os trâmites processuais. A instrução processual deve se desenvolver sob a direção do Presidente do STF, acompanhada pelos acusadores e defensores. Ao Presidente do STF cabe deferir a juntada de documentos e a realização de perícia se necessária, colher em sessão pública os depoimentos das testemunhas e interrogar a ré, encerrar a instrução, conceder prazo para alegações finais, marcar data para julgamento em sessão plenária do Senado, permitir sustentações orais aos acusadores e defensores, ouvir o Procurador-Geral da República, disciplinar os debates entre os senadores, colher os votos dos senadores e proclamar o resultado, tudo registrado em ata que servirá de base documental à Resolução a ser publicada. Esta é a sequência que se extrai da processualística em níveis constitucional e legal, subsidiada pela prática forense e pela teoria geral do processo.    
No que tange à participação do Poder Judiciário, decisão monocrática do ministro Teori Zavascki livra o STF do aborrecimento de examinar a questão da existência ou não de crime de responsabilidade no caso concreto. Empurra o problema para os ombros do Senado, dizendo que a este compete o julgamento definitivo do impeachment e que a intervenção do STF deitaria por terra o artigo 86, da Constituição da República. Se tal decisão for confirmada em sessão plenária do STF, os seus juízes ficarão numa zona de conforto vendo o circo pegar fogo.
Vivemos sob uma Constituição, mas a Constituição é o que os juízes dizem que ela é”, afirmou, certa vez, Charles Evans Hughes, quando governador do Estado de Nova York (1920), depois nomeado Chief Justice da Suprema Corte dos EUA (1930). O formato sintético da Constituição dos EUA propicia elasticidade à construção jurisprudencial, fato que ensejou a opinião do douto magistrado. Entretanto, a Constituição brasileira não propicia igual elasticidade tendo em vista o seu formato analítico, com os limites éticos e jurídicos mais expostos e visíveis, acentuados pela prolixidade.
O texto constitucional brasileiro é expresso quanto à competência privativa do Senado. Todavia, competência privativa não se confunde com competência arbitrária, até porque, na linguagem jurídica, “competência” implica “limites” (perímetro traçado por lei dentro do qual se move a autoridade). A competência privativa não libera os senadores para agirem contra os princípios éticos e jurídicos. Eles devem obedecer tanto à forma (rito processual) quanto à matéria (o fato e o direito), sempre com lisura, enquanto o Brasil for um Estado Democrático de Direito.
Há outra evidência a ser considerada, conditio sine qua non estipulada pelo legislador constituinte para que o Presidente da República seja processado: a existência de crime de responsabilidade. Essa cláusula constitucional não está isenta do controle judicial. A existência do crime é questão de fato e de direito sobre a qual o Guardião da Constituição deve se pronunciar, caso a tanto seja provocado (CR 5º. XXXV + 102). Trata-se de verificar se há justa causa para o constrangimento decorrente do processo penal parlamentar. Não se trata de descabida “intervenção” do Judiciário, mas sim de atividade judicante nos limites da sua competência e segundo o institucional mecanismo de freios e contrapesos, tal como acontece quando o STF anula atos inconstitucionais do Legislativo e do Executivo. 
A autoridade processada pelo Legislativo tem o direito de defender o seu mandato perante o Judiciário, caso o crime de responsabilidade não esteja tipificado. O tribunal não pode (ou não deve) legitimamente, esquivar-se de prestar a tutela jurisdicional, abdicando da sua função primordial em favor da instância política. A jurisdição é a razão fundamental da existência de juízes e tribunais. Estes existem para prestar tutela jurisdicional (resolver controvérsias, controlar a constitucionalidade dos atos dos poderes da república, dizer o direito).
O tribunal não pode (ou não deve) jogar o jurisdicionado na cova dos leões. A mencionada decisão do ministro Teori equivale à negativa de prestar tutela jurisdicional. Espera-se que o plenário do STF reforme tal decisão em nome da segurança dos jurisdicionados e da confiança destes nas instituições judiciárias. Caso contrário, “não mais haverá juízes em Brasília” com os quais a nação possa contar na defesa dos seus fundamentais direitos contra as poderosas forças políticas e econômicas internas e externas.      
A balança da justiça não pode ter pesos diferentes para massas iguais. O tribunal “intervém” nas investigações criminais dos senadores Renan Calheiros (Presidente do Senado) e Aécio Neves (Presidente do PSDB), mas se recusa a examinar questão crucial relativa à Presidente da República! O tribunal intervém para que Renan se submeta à Polícia Federal e para que Aécio não seja incomodado pela Polícia Federal. Gravação de conversa entre figuras da República contém referência ao estado de espírito dos ministros do STF em relação à Presidente da República. Os ministros estariam “putos com ela” porque não obtiveram aumento dos subsídios solicitado pelo Presidente do STF. Este episódio seria o motivo de o STF se recusar a prestar tutela jurisdicional no caso da Presidente da República. Acreditar nisto, seria admitir um STF chantagista. “Se tu não aumentares o meu subsídio eu deixarei os bandidos te expulsarem do palácio”. Seria o fim da picada!

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