quarta-feira, 25 de maio de 2016

CRISES PERIÓDICAS III

A extensão e a profundidade das crises guardam proporção com o grau e o tipo de cultura de cada povo. A atual crise brasileira, por exemplo, foi agravada pela ação subversiva dos vencidos nas eleições de 2014, da qual resultou o afastamento compulsório da Presidente da República. Bando de delinquentes assumiu o governo. Um dos chefes do bando, postura e aparência de gangster refinado (até na receita da companhia feminina: juventude + elegância + beleza), poderá ocupar a tribuna da ONU por exercer interinamente as funções presidenciais, façanha que daria inveja a Al Capone. Vergonha nacional? Nem tanto. Macunaímas, mazombos e vira-latas que compõem parcela da nação brasileira, distribuídos nas camadas abastada, remediada e pobre, agora representados no governo, desconhecem o caráter impoluto, o amor à pátria, o zelo pelo patrimônio nacional e se envergonham apenas quando se sentem fora de sintonia com o pensamento dos donos das emissoras de TV e seus jornalistas amestrados.  A fama do Brasil de não ser um país sério se deve a essa gentalha.
O Brasil já não é mais o país do samba, invadido que foi pelo “roquenrrol” e pela música sertaneja vestida de “caubói”; já não é mais o país do futebol, superado que foi pelo futebol platino/europeu; já não é mais o país do saci-pererê e do bumba-meu-boi, ofuscado que foi pelo “raloin”; mas ainda é o país do carnaval e dos golpes de Estado. Submisso ao império político, econômico e cultural da grande nação do Norte, o Brasil continua a ser o que sempre foi desde 1889: republiqueta de corpo grande e de alma pequena, povoada de gente colonizada que sofre de mimetismo crônico. O golpe (movimento político contrário às normas vigentes e que institui novas regras mediante poder de fato) foi desferido no corrente ano sem que, até o momento, o Judiciário o impedisse. O “Guardião da Constituição”: ou não foi provocado ou dormiu no posto ou foi conivente ou se acovardou. Os seus ministros são citados genericamente em algumas delações premiadas resultantes da Operação Lava-Jato como sendo manobráveis por parlamentares. Dois deles já são conhecidos. Haverá outras duplas? Os dois ministros mais antigos? Os dois mais novos? Os dois polacos? As duas senhoras?  
A estrutura constitucional da República Federativa do Brasil não comporta dois presidentes simultaneamente. Do ponto de vista jurídico, até o momento, a senhora Dilma Vana Rousseff é a única Presidente da República por deter mandato legítimo ainda válido e estar na posse do cargo. A Presidente apenas não está em exercício porque foi provisoriamente suspensa das funções por decisão parlamentar inconstitucional. Apesar de o mandato da Presidente estar em vigor e o seu cargo não estar vago, o Vice agiu como se já fosse o titular, mudou o ministério e nomeou um bando de delinquentes (certamente para conquistar votos dos senadores). O Vice não aguardou o final do processo de impeachment quando o Senado decidirá se a Presidente perderá ou não o mandato e o cargo. De forma arbitrária e inconstitucional, o Vice investiu a si próprio no cargo de Presidente e inaugurou um governo sob os auspícios do fato consumado contra legem, atitude configuradora do golpe. O Vice não se limitou a substituir a Presidente na função presidencial; foi além: de fato - e não de direito - sucedeu-a no cargo presidencial sem que houvesse vacância prévia, ou seja, atropelou o tribunal parlamentar (Senado). Sobrepôs-se à autoridade competente. O Vice violou o decoro, a ética e a ordem jurídica brasileira.
Nos precisos termos da Constituição, cabe privativamente ao Presidente da República (na vigência do seu mandato e na titularidade do seu cargo) nomear e exonerar os Ministros de Estado. Ao Vice, no exercício interino da função presidencial (sem mandato e sem a titularidade do cargo de Presidente), falta competência constitucional para nomear ministros e instituir o seu governo de “salvação nacional” (usual expressão messiânica para legitimar atos ditatoriais e que confirma o golpismo). Somente após a Presidente perder o mandato e o cargo é que o Vice prestaria juramento, assinaria o termo de posse e se tornaria o novo Presidente da República. Nada disto acontecerá se o Senado (tribunal parlamentar), em decisão definitiva, mantiver a Presidente no cargo e lhe preservar o mandato outorgado pelo povo, ou se o “Guardião da Constituição” (tribunal judiciário) declarar a inocorrência de crime de responsabilidade no caso concreto. Até lá, o Vice continuaria Vice, desde que respeitada a Constituição de 1988.      
Na Constituição de 1891, coube ao Vice-Presidente da República a presidência do Senado. Quando funcionasse como tribunal de justiça, o Senado seria presidido pelo Presidente do Supremo Tribunal. Na visão do legislador constituinte, o Vice-Presidente da República era potencialmente suspeito para presidir o tribunal parlamentar. O legislador constituinte olhou o lado humano da questão, vislumbrando o provável interesse do Vice em derrubar o titular do cargo. Razoável presunção. A Constituição de 1946 manteve esse modelo. Na Constituição de 1988, o Vice-Presidente da República não figura mais como Presidente do Senado. No entanto, o legislador constituinte incluiu no texto constitucional a tradição de convocar o Presidente do Supremo Tribunal para presidir o processo de impeachment, embora não mais persistisse a virtual suspeição do Presidente do Senado. Prevaleceu o propósito de minimizar a influência partidária no julgamento e de proteger a liberdade individual dos senadores para votar de acordo com as suas consciências, visando ao bem-comum da nação brasileira e à integridade das instituições democráticas. O legislador constituinte partiu do pressuposto, quiçá ingênuo, porém desejável, de um Senado composto de pessoas honradas, honestas, comprometidas com a moral, com os bons costumes e com os princípios republicanos e democráticos.   
Segurança e certeza são essenciais à estabilidade das relações jurídicas e à paz social. Ao juiz compete resolver controvérsias no devido processo jurídico. Ao examinar os casos submetidos à sua apreciação, o juiz tem por missão descobrir a verdade e subsumir, com honestidade e fidelidade, os fatos à norma jurídica. No Estado em que os poderes legislativo, executivo e judiciário são independentes, ao juiz não cabe legislar, tergiversar e nem teorizar enquanto desempenha a função de aplicar o direito ao caso concreto (atividade judicante). Somente na hipótese de a legislação ser lacunosa, o juiz poderá preencher a lacuna estabelecendo a norma adequada exclusiva ao caso sub judice.
Em momentos de crise institucional, o papel do juiz assume ímpar relevância para preservar a ordem jurídica democrática. Entretanto, como no Poder Judiciário convivem magistrados justos e injustos, cultos e medíocres, honestos e corruptos, corajosos e covardes, calmos e nervosos, gentis e grosseiros, céleres e tardinheiros, a magistratura às vezes falta aos seus deveres e deixa de realizar a contento os seus mais relevantes e virtuosos fins.

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