domingo, 26 de julho de 2015

SUICIDIO DE DEUS II



Entre as teorias e doutrinas citadas nos artigos anteriores foi incluída a teoria da unidade cósmica (mundo material + mundo espiritual). Admitida esta união cósmica, ponderou-se: (1) deus a criou e vive em função dela; (2) o fim de um dos mundos implica o fim do outro; (3) o fim do mundo por vontade divina significa o suicídio de deus. Certamente, grande parte da humanidade não aceita esta conclusão. A população mundial está dividida entre os que acreditam e os que não acreditam na existência de deus e do mundo espiritual. Embora sem um levantamento estatístico, a mera observação empírica mostra que a maioria da população é de crentes e a minoria, de descrentes. Do ponto de vista quantitativo e demográfico, pois, a fé supera a razão. O conhecimento humano vai além do mundo físico e adentra a esfera metafísica para chegar a uma visão filosófica, religiosa e mística do universo.

Às duas perguntas sobre a existência de deus e do mundo espiritual segue esta outra: é possível aos humanos conhecer deus e o mundo espiritual? Obviamente, para os descrentes (ateus e materialistas) a pergunta carece de sentido. Para os crentes, a pergunta tem sentido, porém, as repostas tanto podem ser afirmativas como negativas.

Para algumas pessoas (filósofos, intelectuais, religiosos, místicos), a resposta é negativa: deus é incognoscível. O humano, por ser encarnado, não tem acesso direto a deus. Somente após a morte do corpo humano, a alma poderá conhecer deus. O humano apenas sente a presença divina sem discernir a forma e sem perceber a substância de deus. A estrutura lógica do pensamento humano é insuficiente para defini-lo. A divindade está além do plano conceitual humano. 

Para outras pessoas (filósofos, intelectuais, religiosos, místicos), deus é cognoscível. O humano pode conhecer deus pela intuição e pela revelação. Algumas destas pessoas afirmam a impossibilidade de traduzir em palavras essa experiência extática. Outras descrevem a imagem e arrolam os atributos do deus com o qual dizem haver entrado em contato direto. Assim acontecia, por exemplo, com o líder hebreu chamado Moisés, com o místico persa chamado Zaratustra, com teólogos, sacerdotes e santos cristãos. Os pensadores e crentes que não conseguem traduzir em palavras o seu conhecimento de deus usam símbolos e recorrem a analogias com as coisas familiares aos humanos tais como: astros, luz, calor, forças telúricas, figuras geométricas, números e assim por diante. Deus recebe diferentes nomes que lhe são atribuídos inclusive por aqueles pensadores e crentes que entendem impossível conhecê-lo.
Possibilidade e impossibilidade de conhecer o mundo espiritual dividem os pensadores e crentes. O conhecimento do mundo natural (criado por deus) e do mundo cultural (criado pelo homem) pode ser obtido por métodos intelectuais. O conhecimento do mundo espiritual (criado por deus) é obtido por vias irracionais. Nem todos acham isto possível.
Todo conhecimento na esfera humana ocorre pela apreensão de um objeto pela consciência. A estrutura geral de qualquer conhecimento compreende a consciência do sujeito, o objeto e a imagem do objeto formada na consciência. O processo do conhecimento consiste, pois, em formar a imagem de algo na consciência. Esse algo (objeto de conhecimento) pode ser produto da experiência (real, sensível) ou da razão (ideal). Da relação entre a mente do sujeito e o objeto advém a verdade ou a falsidade do conhecimento. A verdade do conhecimento consiste na concordância da imagem na consciência com o objeto apreendido.

Para os dogmáticos, a capacidade da inteligência para apreender o objeto é evidente. O objeto do conhecimento é apresentado à consciência de modo absoluto, sem qualquer função cognitiva. Logo, o problema do conhecimento não existe. Já para os céticos, o problema existe. Alguns deles são radicais: afirmam a incapacidade humana para conhecer a essência das coisas. Os céticos moderados afirmam a impossibilidade apenas do conhecimento moral e metafísico. A moral tem sede na vontade humana e por isto mesmo é cambiante. No que tange a deus, o seu conhecimento pelos humanos é impossível. Entretanto, os céticos moderados admitem a capacidade humana para conhecer os dados da experiência (empirismo). Qualquer verdade é válida exclusivamente para o sujeito que a formula. O conhecimento humano depende de fatores externos, como o meio ambiente, a cultura, o espírito do tempo e assim por diante (relativismo). “O homem é a medida de todas as coisas” (Protágoras).

Ao afirmar que toda verdade é relativa, o cético se contradiz, pois está afirmando uma verdade absoluta. Para os racionalistas, o pensamento é a fonte principal do conhecimento. O processo de conhecimento deve incluir a crítica racional. Verdadeiro é tão somente o conhecimento logicamente necessário e universalmente válido como, por exemplo: “o todo é maior do que a parte”. O conhecimento fundado em juízos logicamente necessários e universalmente válidos tem como modelo o raciocínio matemático, conceptual e dedutivo.

Na Física, a origem do conhecimento está no mundo natural. Na Metafísica, a origem do conhecimento está no mundo espiritual. No mundo natural e no mundo cultural a mudança é constante. Isto os faz refratários a um saber estável e a uma certeza definitiva. No reino metafísico das idéias está o modelo da atualidade empírica (Platão). As idéias brotam do nous, espírito universal que ilumina o espírito humano (Plotino). A fonte de todo conhecimento é deus, que ilumina o espírito humano (Agostinho). A consciência humana recebe os seus conteúdos de deus, que é a causa do aparecimento das percepções sensíveis nos seres humanos.

Plotino refere-se à intuição emocional na contemplação mística de deus e do mundo espiritual. Agostinho adota o pensamento de Plotino com maior vigor quanto à superioridade da visão divina em face da visão racional. Esse contato direto com deus resulta de um processo emocional. No pensamento de Agostinho, convivem as intuições racional e emocional. A par do órgão de conhecimento teórico e racional, há o órgão de conhecimento irracional e prático: a , apreensão e assentimento intuitivo e emotivo. A fé radica em um instinto psíquico que leva à certeza da realidade do mundo.

A religião está sediada no sentimento e não na razão ou na vontade. A religião supõe a intuição do universo. Certeza intuitiva é a vivência imediata de algo que se não pode experimentar, a certeza de algo transcendente. Só a intuição alcança a essência das coisas, o conteúdo íntimo da realidade. A intuição é a chave da Metafísica. Só chegamos a deus pelo caminho da intuição. Só conhecemos deus quando ele a nós se revela.

A questão da existência de um conhecimento intuitivo paralelo a um conhecimento racional discursivo relaciona-se ao conceito de ser humano. Quem concebe o humano como criatura teórica, cuja principal função é o pensamento, admitirá somente o conhecimento racional. Quem o concebe como criatura essencialmente emotiva e volitiva, admitirá também o conhecimento intuitivo. Deus chega ao homem pela experiência religiosa e não por meio de uma atitude metafísica racional. A certeza sobre deus é de índole distinta daquela que possa advir do raciocínio elaborado. A religião é uma esfera de valor autônoma sustentada por seus próprios pilares, independente de qualquer outra esfera de valor. O seu fundamento de validade repousa nela própria, na certeza imediata peculiar ao conhecimento religioso.

Ante o exposto, tem lugar a confissão de Sócrates: “tudo o que sei é que nada sei”. O modesto filósofo grego referia-se aos limites da capacidade humana para conhecer o lado metafísico da existência. Sabemos apenas que deus é, mas não sabemos o que deus é.

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