Da revista Tribuna
do Advogado de julho de 2015, editada pela Secção do Rio de Janeiro da
Ordem dos Advogados do Brasil, consta matéria sobre ensino religioso discutida
na ação direta de inconstitucionalidade 4.439, em trâmites pelo Supremo
Tribunal Federal (STF). O autor da ação insurge-se contra o ensino religioso de
caráter confessional nas escolas
públicas. Sustenta que ensino religioso em escola pública deve revestir caráter histórico em sintonia com a
laicidade da república brasileira.
Do que foi possível apreender da reportagem, a norma
em si não foi atacada. O autor da ação judicial contesta a interpretação e
aplicação que têm sido dadas à norma constitucional pelas autoridades e escolas
públicas. A questão tem relevância social. A pretensão contida na ação judicial
harmoniza-se com o sistema constitucional brasileiro. O legislador constituinte
garantiu aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Brasil a
inviolabilidade do direito à liberdade e à igualdade. Sob os incisos I, II, VI
e VIII, do artigo 5º, da Constituição da República, o legislador declarou:
homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, a liberdade tem seu
limite na lei, a liberdade de consciência e crença é inviolável, ninguém será
privado de direitos por motivo de crença religiosa. Sob os artigos 6º e 205/6,
incluiu a educação entre os direitos
sociais e a declarou direito de todos e dever do Estado e da família, mirando o
pleno desenvolvimento da pessoa humana. Sob o §1º, do artigo 210, admitiu ensino religioso de matrícula
facultativa nas escolas públicas de ensino fundamental.
No sentido amplo, a expressão ensino religioso significa estudo das
religiões existentes no mundo, principalmente daquelas que exerceram forte
influência na civilização ocidental. Em nível médio, esse estudo inclui breve
história das religiões e noções elementares de teodicéia, sociologia da
religião e dogmática religiosa, à semelhança do currículo de outras áreas. Como
exemplo, tome-se a área do direito. O ensino
jurídico não se limita à legislação do país e à prática forense; inclui
ainda a história, a ciência, a sociologia e a filosofia do direito.
No sentido estrito, a citada expressão
refere-se ao ensino da doutrina e prática de determinada religião, como a
católica, a anglicana, a hebraica, a islâmica. Cada escola particular ensina de modo confessional a religião escolhida
por seus fundadores. A matrícula nessa escola depende da escolha do aluno (ou
dos pais). O problema surge quando a religião é ensinada de modo confessional
na escola pública, em oposição à
laicidade do Estado, ainda que a matrícula seja facultativa. A questão não é de
vontade e sim de princípio fundamental.
Ao promulgarem a vigente Constituição para assegurar a
liberdade e a igualdade como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, os representantes do povo brasileiro, reunidos
em assembléia nacional constituinte, expressamente afirmaram estar sob a proteção de deus. Por constar de
modo genérico no preâmbulo da Constituição, a menção a deus não significa adesão do legislador constituinte a qualquer
religião ou seita em
particular. Aquela menção indica apenas crença em deus cuja
proteção é invocada no ato constituinte. Em nome do povo brasileiro, o
legislador reconheceu a existência de deus, mas não o definiu e tampouco o
personalizou. Isto permite a
coexistência dos mais diversos cultos sintonizados com os bons costumes.
Obediente à tradição republicana, o legislador constituinte de 1988 organizou
um Estado laico, ou seja, um Estado divorciado da instituição eclesiástica. Do
citado preâmbulo, extrai-se esta mensagem deixada pelo legislador: o Estado brasileiro é laico (sem
religião oficial), mas o povo brasileiro
é religioso (reverencia deus).
No Brasil imperial, a religião oficial era a católica
apostólica romana. Aos seguidores de outras religiões era permitido apenas o
culto doméstico. Com a proclamação da república em 1889, o Estado brasileiro,
sob inspiração do positivismo, desvinculou-se da igreja católica e se postou
arredio a qualquer organização eclesiástica. Esta laicidade se manteve durante
toda a história republicana até os nossos dias. No Brasil republicano, vigora a
liberdade religiosa. Nenhum brasileiro está obrigado a se filiar ou a se manter
filiado a qualquer religião ou seita. Contanto que a ordem jurídica vigente
seja respeitada, cada brasileiro pode ter a sua própria concepção de deus e
cultuá-lo isoladamente ou em companhia de outros fiéis, ao ar livre ou em
recinto fechado, em igrejas, templos, mesquitas, sinagogas, salões, terreiros e
procissões. Sob o pálio da Constituição da República convivem: cristianismo
(católicos e protestantes), espiritismo (kardecistas e umbandistas), islamismo,
judaísmo, budismo, hinduísmo e inúmeras seitas. Os seguidores dessas religiões
e seitas elegem políticos para representá-los no Congresso Nacional. Tais
congressistas puxam as brasas para as suas sardinhas. Votam leis favoráveis às suas
respectivas igrejas. Trabalham para aumentar a fatia das suas igrejas no
mercado da fé. O ensino religioso confessional
nas escolas públicas atende a esse desiderato.
Os cristãos (católicos e protestantes), aqui no
Brasil, gozam da vantagem numérica sobre as outras confissões religiosas. Entre
os cristãos, os católicos são mais numerosos. Os protestantes buscam aumentar o
seu rebanho e superar o da igreja católica. Eles tiveram parcial sucesso graças
ao trabalho e à esperteza dos que se intitulam bispos, pastores e missionários.
Essas pessoas contam com a ignorância e a credulidade da massa popular. Os
protestantes adotaram o apelido de “evangélicos” a fim de criar a imagem santa
de apóstolos de Jesus, o Cristo. Na realidade, eles seguem mais o Pentateuco de Moisés do que o Evangelho de Jesus. No fundo, eles são
calvinistas e mercadores. A guerra por audiência nas emissoras de televisão
evidencia a concorrência comercial entre as igrejas cristãs.
Em que pese o princípio da laicidade, a norma
constitucional que autoriza o ensino religioso nas escolas públicas permanece
em vigor, eis que elaborada pelo legislador constituinte originário. A ordem
jurídica democrática agasalha diferentes idéias fundamentais que, no plano dos
fatos, podem entrar em rota de colisão. Para atender aos mais diversos fins, o
legislador constituinte lança na Constituição princípios opostos. A liberdade
de imprensa oposta ao direito à privacidade ilustra esse fato. Às vezes, nas
relações intersubjetivas, esses direitos se chocam e geram litígios. A colisão,
objeto da ação judicial mencionada na reportagem, ocorre entre a vigência de um
princípio fundamental (laicidade) e a vigência de uma norma constitucional
(ensino). Geralmente, alicerçada na hierarquia que emana da ordem jurídica, a
solução do litígio favorece o princípio fundamental.
Se, na ação judicial referida na reportagem da citada
revista, o STF fizer uma abordagem sistemática, a expressão “ensino religioso”
provavelmente será interpretada no sentido histórico, científico e filosófico,
prevalecendo a sua finalidade cultural e não a confessional. Nesta hipótese,
enquanto a referida expressão não for extirpada do texto constitucional
mediante emenda promulgada pelo Congresso Nacional, será possível a inclusão da
História das Religiões na grade
curricular das escolas públicas, como disciplina específica, com noções filosóficas
e sociológicas aplicadas ao campo religioso. Eventual proselitismo de diretores
ou professores ensejará reclamação do aluno, ou do seu representante legal
(pai, mãe, tutor), às instâncias administrativas superiores. Os alunos da rede
pública de ensino conhecerão outras religiões além da sua, todas merecedoras de
igual respeito. Isto contribuirá para alargar a visão de mundo dos alunos e
reduzir a intolerância religiosa.
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