quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

FILOSOFIA VIII - F


Roma (continuação).

Os usos e costumes vigoram paralelamente ao direito escrito. A filosofia grega, mormente o estoicismo, teve influência capital no direito romano e elevou a jurisprudência ao seu apogeu. Após a queda de Roma, Justiniano, governante do império romano do oriente de feição bizantina, providenciou a codificação do direito romano para orientar juridicamente o seu povo e o seu governo (527 d.C.). Essa obra colossal recebeu o nome de Corpus Juris Civilis que se divide em quatro partes: (1) Institutas (institutiones), compêndio dos livros de autoria dos jurisconsultos destinado aos estudantes com a síntese dos elementos fundamentais do direito; (2) Digesto (digestum), repositório do direito público e privado composto dos fragmentos extraídos dos textos produzidos pelos jurisconsultos; (3) Código (codex), coleção de leis de superior hierarquia denominadas constituições imperiais e de outras leis selecionadas de menor hierarquia, todas expedidas até o governo de Justiniano inclusive; (4) Novelas (novellae), conjunto de novas constituições imperiais expedidas após a publicação das obras anteriores; tratam do direito eclesiástico, do direito público e privado. As constituições imperiais prevaleciam sobre leis, plebiscitos e senatus consultum.
A atividade literária, artística e científica dos romanos foi modesta e pouco original. Na fase final do império, verificou-se estagnação cultural. As religiões orientais degradaram o intelecto e esterilizaram a criatividade. A forma prevaleceu sobre o conteúdo; retórica estéril e artificial. Escritor e orador talentoso, além de estadista que ocupou cargos no alto escalão da república (questor, pretor urbano, cônsul), Marco Túlio Cícero produziu várias obras de inestimável valor intelectual e estilístico: discursos, tratados de filosofia e de retórica, poesias e cartas (81 a 44 a.C.). Os estudantes de direito da cidade de Curitiba, capital do Estado do Paraná, na década de 1960, costumavam recitar de memória o início do primeiro dos quatro discursos proferidos por Cícero no Senado em que acusava Catilina de conspirar contra a república: Quousque tandem abutere Catilina patientia nostra? “Até quando Catilina, tu abusarás da nossa paciência?”. Outros trechos eram menos citados: Non sentis tua consilia patere? “Não percebes que os teus planos estão patentes?”. O tempora! O mores! Senatus intellegit haec consul videt tamem hic vivit. Vivit? Immo vero etiam venit in senatum fit particeps consillii publici notat et designat oculis unumquemque nostrum ad caedem. “Ó tempos! Ó costumes! O senado sabe estas coisas, o cônsul as vê, contudo este vive. Vive? Além disto ainda vem ao Senado, participa da deliberação pública, aponta e designa com os olhos a cada um de nós para a morte”. Nos outros discursos, Cícero mantém a veemência: Tandem aliquando, Quirites, L. Catalinam furentem audácia scelus anhelantem pestem patriae nefarie molientem vobis atque huic ferro flammaque minitantem ex urbe vel eiecimus vel emisimus vel ipsum agredientem verbis prosecuti sumus. “Até que enfim, ó romanos, ou expulsamos da cidade Lúcio Catilina, que se enfurecia de audácia, que respirava o crime, que maquinava sacrilegamente a ruína da pátria, ameaçando-nos e a esta cidade com o ferro e com a chama, ou deixamos sair, ou o perseguimos com palavras para que saia.” No quarto discurso, Cícero encerra o libelo como fiel servidor da república: Habetis enim eum consulem qui et parere vestris decretis non dubitet et ea quae statueritis quoad vivet defendere et per se impsum praestare possit. “Tendes efetivamente um cônsul tal que não só não duvida obedecer aos vossos decretos mas também pode defender e cumprir por si próprio enquanto viver aquilo que estabeleceres.” {O cônsul aí citado é ele mesmo}. 
Grande expoente do direito, orador inflamado, Cícero despertou admiração e ódio. Os opositores lançaram o seu nome na lista dos proscritos. Sexagenário, Cícero sai de Roma. Os sicários de Marco Antônio localizam-no, tiram-lhe a vida, decepam-lhe as mãos e a cabeça e as trazem para Roma. Marco Antonio percebeu que daquela cabeça não podia captar o fulgor da inteligência e da palavra. Deu a Fúlvia, sua esposa, o troféu macabro (43 a.C.).
Nos estertores da república, a camada superior da sociedade romana passou a falar e escrever em grego e versar para o latim textos helenísticos. Plauto e Terêncio imitaram comédias gregas e sátiras sociais. Plauto, de origem humilde, comprazia-se em ridicularizar os costumes dos patrícios. Catulo é considerado um dos maiores poetas de todos os tempos. {Certamente, esta a origem do nome Catulo da Paixão Cearense, poeta e compositor brasileiro}. O Catulo romano compôs poemas de amor que descreviam sentimentos torturados que nutria pela esposa infiel de um político da época. Republicano, Catulo escreveu sátiras tendo por alvo as pretensões demagógicas de Pompeu e César. A fase imperial foi mais fecunda do ponto de vista artístico e intelectual quando a filosofia entrou em evidência (27 a 200 a.C.). Horácio serve-se da filosofia em temas sobre a vida, combinando a bravura estóica com o prazer epicurista: “sê forte na desgraça / encara a dor / com fronte altiva / mas quando a rajada / soprar também favorável / sê não menos prudente / e governa bem o teu barco” (“Odes”).
Virgílio também se deixa levar pelo espírito filosófico. Na “Eneida”, sua obra mais famosa, narra os trabalhos e os triunfos do império romano, suas tradições gloriosas e seu destino magnífico. Virgílio inclui na citada obra a lenda sobre a fundação de Roma que se tornou mundialmente conhecida e muitas vezes tomada como verdade histórica. Por ocasião da guerra, o sacerdote Enéas foge de Tróia para o reino de Latinus, às margens do Rio Tibre, na península italiana. Enéas casa com a filha desse rei e batiza o povo de latino em homenagem ao sogro. Arcanus, filho de Enéas, funda a cidade de Alba Longa, que se torna a capital do Lácio. No terceiro século depois da fundação, Amulius destrona o seu irmão mais velho Numiter e obriga a filha deste, Rea Sílvia, a ingressar na Ordem das Virgens Vestais com o objetivo de impedir a sobrinha de gerar herdeiro do trono. O deus Marte rouba a virgindade de Rea e gera filhos gêmeos: Rômulo e Remo. Amulius coloca os sobrinhos netos em um cesto e os lança no Rio Tibre. O cesto encalha ao pé do Monte Palatino. Os gêmeos são encontrados por uma loba que os amamenta e depois por pastores que os criam. Na idade adulta, os gêmeos destronam Amulius e recolocam Numiter no trono. Os dois resolvem fundar uma cidade junto ao Monte Palatino, local onde a loba os salvou. Por sorteio, Rômulo se torna o primeiro rei da cidade que recebe o nome de Roma. Com um arado, ele traça os limites da urbs, ritual religioso que torna sagrado o local. Remo desafia o irmão e rompe os limites sagrados. Rômulo mata-o. Este primeiro rei organiza a cidade. Para povoá-la, ele planeja e promove o rapto das mulheres sabinas. Graças à intercessão das mulheres, latinos e sabinos celebram a paz e combinam matrimônios recíprocos. Dessa aliança surgem os quirites como ficaram conhecidos os habitantes de Roma.
Ovídio, poeta elegíaco de tendências cínicas e individualistas, reflete em seus sagazes e brilhantes trabalhos o gosto dissoluto do seu tempo. Tito Lívio, hábil estilista, escreve a “História de Roma”. O elegante Petrônio trata de aspectos insignificantes da vida, sem o propósito de instruir ou nobilitar o espírito, mas sim o de contar história divertida e tornear frases. O satírico Juvenal, influenciado pelo estoicismo, criticava os vícios dos seus contemporâneos. Tácito, famoso historiador romano, descreveu os fatos da sua época. Deu prioridade à crítica moral, sem prejuízo da análise científica. Descreveu um quadro sombrio do caos político e da corrupção social (Anais e Histórias). Salienta o contraste entre as virtudes varonis dos antigos germânicos e as atitudes afeminadas dos romanos decadentes (Germânia). Referindo-se à “Pax Romana”, coloca na boca de um chefe militar bárbaro este comentário irônico: “criaram um deserto e chamam a isso de paz”. Dessa raiz, a expressão utilizada na crônica política: “paz de cemitério”. 

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