Roma (continuação).
Os romanos não inventaram o
direito, fato social próprio da civilização. A civilização supõe ordem. A ordem
consiste de princípios dos quais emanam regras que os homens entendem
necessárias e obrigatórias. Daí, o brocardo: ubi societas ibi jus (onde há sociedade, aí há direito). Os romanos
trataram racionalmente esse fato social, dando-lhe configuração própria,
vocabulário específico e autonomia científica. O grande legado de Roma à
posteridade foi o sistema de direito: princípios e normas fundamentais da
sociedade, codificação das leis e procedimentos judiciais. O sistema tem como
fulcro a idéia de justiça em torno da
qual se estabelecem os nexos entre princípios e normas que disciplinam a vida
social em Roma e nas suas províncias. O sistema permitia dividir o direito em natural (justo por natureza) e positivo (justo por convenção humana).
Os dois ramos completavam-se: o primeiro era a base axiológica do segundo.
O direito natural (jus naturale) tem sua fonte na ordem que se extrai racionalmente
da natureza. Essa ordem traz em si uma justiça intrínseca alicerçada em três
princípios fundamentais expostos pelo jurisconsulto Ulpiano: honeste vivere, alterum non laedere, cuique
suum tribuere (viver honestamente, não lesar o outro e dar a cada um o
seu). As normas jurídicas legítimas decorrem desses preceitos básicos. Todos os
homens são titulares desse direito e os governos legítimos respeitam-no. O verdadeiro direito é a razão justa,
consoante à natureza, comum a todos os homens, constante e eterna. Promulgar
leis contra essa lei é proibido pela religião, nem pode ela ser revogada ou
derrogada, nem dispomos do poder do senado ou do povo capaz de nos livrar dela.
(Cícero).
O direito positivo tem sua fonte imediata nos fatos sociais e a sua
fonte mediata na filosofia estóica,
nos valores, interesses e aspirações do povo romano. As relações humanas no
lar, na sociedade e no estado são disciplinadas em regras de conduta de
obrigatório cumprimento, ao lado de preceitos morais, religiosos e
convencionais de cumprimento facultativo. Essas regras disciplinam a conduta do
indivíduo, dos grupos, dos governados e dos governantes; configuram
juridicamente as relações sociais, econômicas e políticas; inspiram-se nos
valores vigentes na comunidade destilados pela razão.
O direito positivo pode ser
escrito e oral. O direito escrito vem
posto em documentos (pedras, papiros, pergaminhos, papéis) que contêm
princípios, regras, decisões e opiniões, fundados em valores como: justiça,
verdade, segurança, utilidade, liberdade, igualdade, bondade, beleza,
santidade. Em Roma, esse direito escrito se compõe basicamente de leis
(constituições dos imperadores, senatus
consultum e plebiscitos), de editos dos pretores, de respostas e lições dos
jurisconsultos. Identifica-se na cultura romana: (1) um direito legal
(legislado); (2) um direito judicial (pretoriano); (3) um direito doutrinário
(jurisprudencial). Originalmente, jurisprudência
significava conhecimento do justo e do injusto, do lícito e do ilícito,
derivado da qualificada opinião dos prudentes
(jurisconsultos). No mundo moderno, além do original, o vocábulo adquiriu mais
um significado: repositório de julgamentos dos tribunais.
O direito oral, também denominado direito
consuetudinário consiste no conjunto de normas de conduta geradas pelo
costume no curso da história e aceitas como obrigatórias. Quando o povo romano
ainda não conhecia a escrita ou não a utilizava, o costume era a única lei
vigente e suas normas passavam oralmente de geração a geração. Esse direito se manteve
em vigor por muitos séculos ao lado do direito escrito. As normas costumeiras
podem ser registradas por escrito nas decisões dos tribunais ou em
estabelecimentos públicos ou privados que tratam de negócios nacionais e
internacionais. O direito inglês ainda é parcialmente consuetudinário. Os
tribunais ingleses reconhecem a vigência desse direito e aplicam-no aos casos
concretos.
Fundados no ideal de justiça e de
equidade, no direito natural e no direito positivo (escrito e oral), julgando
com sensatez dentro do razoável e do proporcional, sem abandonar o raciocínio
lógico (indução, dedução, analogia), os pretores criaram o direito pretoriano. Os prudentes
romanos (magistrados e jurisconsultos) fizeram do ideal de justiça o alicerce
do direito. As institutas do
imperador Justiniano começam pela definição de justiça: “vontade constante e perpétua de dar a cada um o seu”.
Esta é a definição de Ulpiano: jus est
constans et perpetua voluntas suum cuique tribuendi. A base dessa definição
é filosófica. A escola de Zenon (estóica) preconizava rígida moral como base
dos atos humanos (honeste vivere) o
que implicava educar a vontade por
ser esta – e não a inteligência – a força propulsora do bem e que conduzia o homem a agir de modo honesto e justo. Para os
estóicos, a justiça era uma virtude
da qual dimanava o direito segundo a
razão natural. Essa virtude devia orientar o pensamento e a atividade do legislador,
do magistrado e do jurisconsulto. Na interpretação e aplicação do direito os prudentes iam além do conceito de justiça forense (conformidade da conduta
humana com a lei): orientavam-se também pela idéia de justiça natural como virtude moral por excelência.
Os magistrados se valiam da aequitas e da ratio naturalis no julgamento das demandas. A aequitas considera a finalidade da lei ou do contrato, de modo que
a decisão judicial atenda as condições particulares de cada litigante e as
circunstâncias de fato e de direito que envolvem a questão. A equidade consiste no abrandamento do
rigor na aplicação da lei ou da cláusula contratual. Cuida-se de benigna e humana interpretação
tendo em vista que nem todos os litigantes ocupam a mesma posição na sociedade
e que há circunstâncias de ordem moral e material a serem consideradas de
maneira razoável e proporcional. A ratio
naturalis tem raízes filosóficas. Não seria demasia trata-la como equidade filosófica para diferenciá-la da
equidade forense. Em nível superior, entende-se
a ratio naturalis como princípio
universal, força moral que sustenta a supremacia do espírito na elaboração, na
interpretação e na aplicação do direito positivo. Considera-se justa a decisão
judicial amparada na razão natural.
O pretor {prae + ire = o que vai adiante} é o primeiro magistrado da cidade
com amplo poder jurisdicional. O pretor urbano (praetor urbanus) distribuía justiça entre os cidadãos romanos e
aplicava o direito da cidade (jus civile).
Na eventual ausência dos cônsules, o pretor os substituía, oportunidade em que exercia
o poder de convocar e presidir o senado, reunir o comício e apresentar projetos
de lei. Ante a afluência de estrangeiros na cidade e para julgar os litígios
entre eles, Roma criou um juiz especial: o pretor peregrino (praetor peregrinus). Posteriormente, na
competência do pretor peregrino foram incluídos litígios entre romanos e
estrangeiros (inter cives et peregrinus).
Na solução das controvérsias, o pretor peregrino estava adstrito ao direito das
gentes (jus gentium quod omnes gentes
utuntur). Tiberius Coruncanius, primeiro plebeu a ser pontífice, deu início
ao ensino público do direito. A partir do governo de Otávio, foram acrescidas ao
direito escrito normas expedidas pelo príncipe denominadas constituições imperiais. Os atos do príncipe adquirem força
normativa segundo o novo princípio: quod
principi placuit legis habet vigorem (“o que o príncipe estatui, tem o
vigor de lei”), texto de Ulpiano inserido no Digesto de Justiniano (século III d.C.). Mediante a Lex Regia, o povo outorga ao príncipe imperium e auctoritas (soberania política e jurídica).
A validade dos editos pretorianos (sentenças judiciais)
como precedentes para aplicação aos casos concretos foi reconhecida pelo imperador
Adriano ao aprovar coleção organizada pelo jurisconsulto Sálvio Juliano,
intitulada Edito Perpétuo (Edictum
Perpetuum). O valor da obra dos jurisconsultos para a teoria e a prática jurídicas
também foi reconhecido. Os livros e pareceres dos jurisconsultos influíram nos
negócios de Roma. Adriano concedeu autoridade a alguns jurisconsultos para
fixarem o direito. Caso houvesse divergência entre as opiniões dos
jurisconsultos Gaio, Paulo, Ulpiano e Modestino, a solução preconizada pelo
imperador era que fosse adotada a opinião de Papiniano. O parecer destes
seletos juristas tratados como prudentes
era de acatamento obrigatório pelos magistrados (auctoritas prudentium). A tarefa dos prudentes era vista como prudência
{cautelosa busca do justo na interpretação das normas jurídicas e na sua
aplicação aos casos concretos} e não como ciência
no sentido moderno e específico desta palavra {estudo e pesquisa metódicos
e sistemáticos de fenômenos naturais e de fatos culturais, construtores de teoria
num campo específico do saber humano}. A pesquisa e a formulação teórica do
direito são vistas como ciência na
idade moderna. Há objeção daqueles que entendem que objeto de ciência é apenas o
ser (fato natural) e não o dever-ser (fato cultural). A prática
forense é considerada arte (postulação,
consultoria, judicatura).
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