sábado, 15 de fevereiro de 2014

FILOSOFIA VIII - E



Roma (continuação).

Os romanos não inventaram o direito, fato social próprio da civilização. A civilização supõe ordem. A ordem consiste de princípios dos quais emanam regras que os homens entendem necessárias e obrigatórias. Daí, o brocardo: ubi societas ibi jus (onde há sociedade, aí há direito). Os romanos trataram racionalmente esse fato social, dando-lhe configuração própria, vocabulário específico e autonomia científica. O grande legado de Roma à posteridade foi o sistema de direito: princípios e normas fundamentais da sociedade, codificação das leis e procedimentos judiciais. O sistema tem como fulcro a idéia de justiça em torno da qual se estabelecem os nexos entre princípios e normas que disciplinam a vida social em Roma e nas suas províncias. O sistema permitia dividir o direito em natural (justo por natureza) e positivo (justo por convenção humana). Os dois ramos completavam-se: o primeiro era a base axiológica do segundo.   
O direito natural (jus naturale) tem sua fonte na ordem que se extrai racionalmente da natureza. Essa ordem traz em si uma justiça intrínseca alicerçada em três princípios fundamentais expostos pelo jurisconsulto Ulpiano: honeste vivere, alterum non laedere, cuique suum tribuere (viver honestamente, não lesar o outro e dar a cada um o seu). As normas jurídicas legítimas decorrem desses preceitos básicos. Todos os homens são titulares desse direito e os governos legítimos respeitam-no. O verdadeiro direito é a razão justa, consoante à natureza, comum a todos os homens, constante e eterna. Promulgar leis contra essa lei é proibido pela religião, nem pode ela ser revogada ou derrogada, nem dispomos do poder do senado ou do povo capaz de nos livrar dela. (Cícero).   
O direito positivo tem sua fonte imediata nos fatos sociais e a sua fonte mediata na filosofia estóica, nos valores, interesses e aspirações do povo romano. As relações humanas no lar, na sociedade e no estado são disciplinadas em regras de conduta de obrigatório cumprimento, ao lado de preceitos morais, religiosos e convencionais de cumprimento facultativo. Essas regras disciplinam a conduta do indivíduo, dos grupos, dos governados e dos governantes; configuram juridicamente as relações sociais, econômicas e políticas; inspiram-se nos valores vigentes na comunidade destilados pela razão. 
O direito positivo pode ser escrito e oral. O direito escrito vem posto em documentos (pedras, papiros, pergaminhos, papéis) que contêm princípios, regras, decisões e opiniões, fundados em valores como: justiça, verdade, segurança, utilidade, liberdade, igualdade, bondade, beleza, santidade. Em Roma, esse direito escrito se compõe basicamente de leis (constituições dos imperadores, senatus consultum e plebiscitos), de editos dos pretores, de respostas e lições dos jurisconsultos. Identifica-se na cultura romana: (1) um direito legal (legislado); (2) um direito judicial (pretoriano); (3) um direito doutrinário (jurisprudencial). Originalmente, jurisprudência significava conhecimento do justo e do injusto, do lícito e do ilícito, derivado da qualificada opinião dos prudentes (jurisconsultos). No mundo moderno, além do original, o vocábulo adquiriu mais um significado: repositório de julgamentos dos tribunais.
O direito oral, também denominado direito consuetudinário consiste no conjunto de normas de conduta geradas pelo costume no curso da história e aceitas como obrigatórias. Quando o povo romano ainda não conhecia a escrita ou não a utilizava, o costume era a única lei vigente e suas normas passavam oralmente de geração a geração. Esse direito se manteve em vigor por muitos séculos ao lado do direito escrito. As normas costumeiras podem ser registradas por escrito nas decisões dos tribunais ou em estabelecimentos públicos ou privados que tratam de negócios nacionais e internacionais. O direito inglês ainda é parcialmente consuetudinário. Os tribunais ingleses reconhecem a vigência desse direito e aplicam-no aos casos concretos.
Fundados no ideal de justiça e de equidade, no direito natural e no direito positivo (escrito e oral), julgando com sensatez dentro do razoável e do proporcional, sem abandonar o raciocínio lógico (indução, dedução, analogia), os pretores criaram o direito pretoriano. Os prudentes romanos (magistrados e jurisconsultos) fizeram do ideal de justiça o alicerce do direito. As institutas do imperador Justiniano começam pela definição de justiça: “vontade constante e perpétua de dar a cada um o seu”. Esta é a definição de Ulpiano: jus est constans et perpetua voluntas suum cuique tribuendi. A base dessa definição é filosófica. A escola de Zenon (estóica) preconizava rígida moral como base dos atos humanos (honeste vivere) o que implicava educar a vontade por ser esta – e não a inteligência – a força propulsora do bem e que conduzia o homem a agir de modo honesto e justo. Para os estóicos, a justiça era uma virtude da qual dimanava o direito segundo a razão natural. Essa virtude devia orientar o pensamento e a atividade do legislador, do magistrado e do jurisconsulto. Na interpretação e aplicação do direito os prudentes iam além do conceito de justiça forense (conformidade da conduta humana com a lei): orientavam-se também pela idéia de justiça natural como virtude moral por excelência.
Os magistrados se valiam da aequitas e da ratio naturalis no julgamento das demandas. A aequitas considera a finalidade da lei ou do contrato, de modo que a decisão judicial atenda as condições particulares de cada litigante e as circunstâncias de fato e de direito que envolvem a questão. A equidade consiste no abrandamento do rigor na aplicação da lei ou da cláusula contratual. Cuida-se de benigna e humana interpretação tendo em vista que nem todos os litigantes ocupam a mesma posição na sociedade e que há circunstâncias de ordem moral e material a serem consideradas de maneira razoável e proporcional. A ratio naturalis tem raízes filosóficas. Não seria demasia trata-la como equidade filosófica para diferenciá-la da equidade forense. Em nível superior, entende-se a ratio naturalis como princípio universal, força moral que sustenta a supremacia do espírito na elaboração, na interpretação e na aplicação do direito positivo. Considera-se justa a decisão judicial amparada na razão natural.
O pretor {prae + ire = o que vai adiante} é o primeiro magistrado da cidade com amplo poder jurisdicional. O pretor urbano (praetor urbanus) distribuía justiça entre os cidadãos romanos e aplicava o direito da cidade (jus civile). Na eventual ausência dos cônsules, o pretor os substituía, oportunidade em que exercia o poder de convocar e presidir o senado, reunir o comício e apresentar projetos de lei. Ante a afluência de estrangeiros na cidade e para julgar os litígios entre eles, Roma criou um juiz especial: o pretor peregrino (praetor peregrinus). Posteriormente, na competência do pretor peregrino foram incluídos litígios entre romanos e estrangeiros (inter cives et peregrinus). Na solução das controvérsias, o pretor peregrino estava adstrito ao direito das gentes (jus gentium quod omnes gentes utuntur). Tiberius Coruncanius, primeiro plebeu a ser pontífice, deu início ao ensino público do direito. A partir do governo de Otávio, foram acrescidas ao direito escrito normas expedidas pelo príncipe denominadas constituições imperiais. Os atos do príncipe adquirem força normativa segundo o novo princípio: quod principi placuit legis habet vigorem (“o que o príncipe estatui, tem o vigor de lei”), texto de Ulpiano inserido no Digesto de Justiniano (século III d.C.). Mediante a Lex Regia, o povo outorga ao príncipe imperium e auctoritas (soberania política e jurídica).
A validade dos editos pretorianos (sentenças judiciais) como precedentes para aplicação aos casos concretos foi reconhecida pelo imperador Adriano ao aprovar coleção organizada pelo jurisconsulto Sálvio Juliano, intitulada Edito Perpétuo (Edictum Perpetuum). O valor da obra dos jurisconsultos para a teoria e a prática jurídicas também foi reconhecido. Os livros e pareceres dos jurisconsultos influíram nos negócios de Roma. Adriano concedeu autoridade a alguns jurisconsultos para fixarem o direito. Caso houvesse divergência entre as opiniões dos jurisconsultos Gaio, Paulo, Ulpiano e Modestino, a solução preconizada pelo imperador era que fosse adotada a opinião de Papiniano. O parecer destes seletos juristas tratados como prudentes era de acatamento obrigatório pelos magistrados (auctoritas prudentium). A tarefa dos prudentes era vista como prudência {cautelosa busca do justo na interpretação das normas jurídicas e na sua aplicação aos casos concretos} e não como ciência no sentido moderno e específico desta palavra {estudo e pesquisa metódicos e sistemáticos de fenômenos naturais e de fatos culturais, construtores de teoria num campo específico do saber humano}. A pesquisa e a formulação teórica do direito são vistas como ciência na idade moderna. Há objeção daqueles que entendem que objeto de ciência é apenas o ser (fato natural) e não o dever-ser (fato cultural). A prática forense é considerada arte (postulação, consultoria, judicatura).

Nenhum comentário: