“O pau comeu na casa de Noca”, diz o samba paulista de
Adoniran Barbosa. Nenhum parentesco com o baiano Ruy ou com o Barbosa do
Supremo Tribunal Federal. Na augusta corte o pau comeu. Difícil convívio entre
o presidente da casa (Joaquim Barbosa) e o vice-presidente (Ricardo Lewandowski).
No Paraná, há quase setenta anos, eu notava esse fato comportamental: os negros
e os polacos se repeliam. Havia entre os dois grupos silenciosa animosidade que
parecia atávica. No julgamento dos recursos apresentados na ação penal 470 (caso
apelidado de mensalão) na sessão dos
dias 14 e 15 de agosto de 2013, os dois ministros voltaram a pelejar. Choque de
egos titânicos. Quando os embargos opostos pelo réu Bispo Rodrigues estavam sob
exame, o ministro Lewandowski, na sua vez de votar, criou embaraço. Em tom de
repreensão, o presidente o acusou de estar fazendo chicana (tramóia). Durante
todo o julgamento da referida ação penal, desde o seu início em 2012, fiel à
origem política partidária que lhe abriu as portas do Judiciário, Lewandowski serviu-se
da função de revisor para provocar tumulto nos autos e retardar o desfecho do
processo. Esse procrastinar, que sugere interesse pessoal do julgador na causa,
irritava o ministro Barbosa.
O presidente do tribunal se mostra nervoso, quiçá pela
dor na coluna vertebral de que padece e que o faz mudar de posição seguidamente,
ora em pé, ora sentado, revezando a poltrona com a cadeira ortopédica. A sua
agressividade compromete o clima sereno que se espera de um tribunal de
justiça. A compreensível ânsia de atender aos reclamos populares não deve
tisnar o julgamento. Mostrou-se fundado o receio de que, na presidência,
Barbosa iria trocar os pés pelas mãos. O seu desequilíbrio emocional facilitou
a chicana do vice-presidente.
O voto minoritário e quiçá isolado de Lewandowski em
nada muda a decisão recorrida. Na sessão houve seqüência de votos acompanhando
o voto do relator que rejeitava o recurso: Luiz Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz
Fux, Carmen Lúcia, Dias Toffoli. Com o voto do relator já eram seis votos. Formou-se
maioria. A seqüência foi interrompida na vez de Lewandowski votar. Provocado o
tumulto, Celso de Mello e Gilmar Mendes deixaram clara a adesão ao voto do
relator, embora ainda não tenham votado. Serão, portanto, oito votos de
rejeição. Poderão ser nove, se Marco Aurélio votar com o relator. O voto daquele
ministro ficará isolado, sem prejudicar a decisão condenatória já proferida.
O tumulto poderia ser evitado. Bastava o presidente
registrar o voto do vice-presidente sem contestá-lo, colher os votos de Gilmar,
Marco e Celso e concluir o julgamento. O assédio aos colegas para que mudem o
voto revela despreparo para a função judicante colegiada. Cabe ao juiz proferir
a sua decisão e respeitar a dos outros juízes. Criticar o voto do colega é
falta de cortesia, de boa educação e de decoro. Beira à injúria. A vaidade há
de ser contida. Hoje, voto vencido; amanhã, voto vencedor. Eis a sina do juiz
de tribunal.
Recalcitrante, Lewandowski fez ouvido de mercador às
judiciosas ponderações de Celso de Mello e Gilmar Mendes. Esses dois ministros argumentaram
com a autonomia do ato de receber
para tipificar o crime de corrupção; informaram que o bispo fora denunciado por
receber propina em dezembro de 2003;
disseram que esse fato independia de qualquer outro conforme decisão unânime da
corte, o que autorizava a incidência da nova lei mais gravosa. O ministro tapou
os olhos e os ouvidos e permaneceu firme no propósito de protelar. Obteve êxito.
O julgamento foi adiado. No final da sua manobra, antes da altercação com o
presidente, o ministro sorriu. Expressão facial marota.
A chicana se evidencia mais ainda quando ele indaga do
presidente: “porque a pressa ministro?” Ao contrário da expectativa da nação,
Lewandowski não quer pressa. Os condenados também não querem pressa. Quanto
mais demorar, melhor para eles. Retardam a execução da sentença condenatória
visando a obter eventual proveito que daí possa resultar. Ao contrário do que
pensa o vulgo, tramóia não é apanágio dos advogados. Fazem-na também os
magistrados. Serve de exemplo a ação penal em tela. Como sinônimo de
ardil e trapaça, a chicana também acontece nos negócios extrajudiciais pouco
freqüentados pela honestidade.
“Quero fazer justiça”, disse o esperto Lewandowski,
como se os demais juízes não estivessem ali para fazer justiça. No julgamento
da ação penal a justiça já se fez com a merecida condenação dos réus no devido
processo jurídico. Todos os réus se valeram largamente do direito ao
contraditório e à ampla defesa. “Os embargos servem para o julgador rever seu
erro”, ele diz com ar pungente. Emboca essa verdade em um sofisma. Dos sete ministros
que votaram até agora nos embargos do bispo, ele foi o único que alegou erro. Se
houvesse algum vício, os demais ministros o teriam expungido. Se houvesse erro,
teriam corrigido. Cabia a Lewandowski, sem procrastinar, mencionar o tal erro em
voto divergente sem incluir os colegas no mesmo pacote. Ademais, a alegação afigura-se
leviana, pois ele participou da votação unânime que condenou o bispo. Sem
pudor, reabre discussão sobre matéria objeto de intenso debate no plenário do
tribunal quando a ação foi julgada.
Os condenados embargaram o acórdão (sentença do tribunal). Nos termos da
lei processual penal não há revisor nos embargos de declaração. Correta a
orientação do presidente: após o voto do relator, a votação começa pelo
ministro mais novo na casa e segue na ordem inversa da antiguidade até o
ministro mais antigo. Sobre esse ponto, está desamparada a crítica sarcástica
feita por Marco Aurélio. O tribunal primeiro examinou os argumentos comuns a todos
os embargos. Depois, passou a examinar cada um individualmente. Nota-se
intenção protelatória nos embargos lidos pelo relator. A finalidade desse tipo
de recurso não é a de quebrantar a decisão já proferida, nem de registrar arrependimentos como disse Barbosa. Esse
recurso tem por fim ensejar ao julgador o afastamento de eventual nódoa
resultante de ambigüidade, obscuridade, contradição ou omissão contida na
decisão recorrida. O regimento interno do STF acrescenta a inexatidão e a dúvida
como propiciadoras do recurso. Esse acréscimo estimula a chicana. Dos votos
proferidos pela maioria não se vislumbra, até o momento, qualquer desses vícios.
Os embargantes pretendem converter a condenação em absolvição ou, pelo menos, atenuar
a pena que lhes foi aplicada. Como não há instância superior à qual apelar, os
condenados, no mesmo grau de jurisdição e perante o mesmo órgão prolator da
decisão recorrida (STF), utilizam os embargos como recurso ordinário com efeito
devolutivo e suspensivo. Desse modo, desvirtuam-nos. Diante disto, a maioria
dos ministros não perdeu tempo com comentários redundantes. Essa maioria acompanha
o bem fundamentado voto do relator negando provimento ao recurso.
Os ministros Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski são
as vedetes da sessão; não resistem aos holofotes e se exibem a cada recurso
insistentemente. Abusam da paciência do público. Marco Aurélio tem acompanhado
o voto do relator com esporádicas ressalvas. Lewandowski não perdeu o cacoete
de revisor e se alonga nos comentários, repete ad nauseam o que já foi relatado e decidido. Inconformado, repisa
os argumentos que lançou na fase anterior do processo e que não mereceram a
aprovação dos seus colegas. Assemelha-se ao advogado que justifica a sua
derrota e os honorários recebidos mostrando ao cliente a alta qualidade do seu
trabalho. Na sua eloqüente expressão corporal há lamento e surda censura aos
que seguiram trilha diversa e não compartilharam do seu notável saber e do seu
refinado senso de justiça. Ele resmunga, geme, espreme a voz como se estivesse
parindo, folheia as páginas do voto para mostrar ao público que “estudou profundamente”
a matéria (como ele sempre diz) como se isto por si só significasse vasta e
superior compreensão e lhe outorgasse maior autoridade. A afirmação de que “estudei
profundamente os autos” indica que o julgador vai embromar. Esta é lição da
experiência. Estudar os autos é normal. Estudar “profundamente” é ênfase maliciosa.
Da sua arrogante afirmativa brota a insinuação de que os seus pares estudaram
os autos superficialmente e que todos são levianos.
O presidente tem o dever de zelar pelo decoro no
tribunal. Daí, a censura ao ministro Dias Toffoli por se manifestar
jocosamente. Na apreciação do presidente, o ministro fazia graça de modo incompatível
com a conduta de magistrado. Jocoso
aproxima-se de sarcasmo e se
distancia da ironia utilizada com elegância como figura de retórica aliada ao
senso de humor. Aliás, o modo de Toffoli ocupar a poltrona quando não está com
a palavra também é indecente. Recostar é comum. Refestelar-se como se estivesse
no sofá da sala de sua casa é indecente. Postura indecorosa. Marco Aurélio
também zomba. Parece gostar da imagem de carioca
gozador. Esse comportamento pode ser adequado entre amigos, nas praias
cariocas, mas não no tribunal. Ele e Toffoli parecem uma dupla circense no
tribunal.
A garantia de vitaliciedade não autoriza o juiz a
praticar impunemente ilícitos civis, penais, administrativos e atos contrários
à ética. Ao tribunal cabe aplicar pena disciplinar aos seus membros nos termos
da lei orgânica da magistratura e, quando for o caso, apurar a responsabilidade
criminal do infrator no devido processo jurídico.
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