O vaso quebrou. Colaram os cacos. Mosaico sem beleza.
A restauração exigia o talento de Miguel Ângelo. Cumprindo o seu dever de zelar
pelo decoro no Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente Joaquim Barbosa, na
sessão de 15/08/2013, censurou o ministro Dias Toffoli por jocosidade e o
ministro Ricardo Lewandowski por chicana. Houve áspera discussão entre o
presidente (Joaquim) e o vice-presidente (Ricardo). O incidente repercutiu na
sociedade brasileira (quiçá também na estrangeira). Na sessão de 21/08/2013 os dois
contendores justificaram-se e os dois ministros mais antigos da casa defenderam
a liberdade e a independência do magistrado. Nesta e na sessão do dia seguinte
(22/08/2013) percebia-se o efeito da borrasca. O clima era de desconforto.
Indisfarçável mal-estar dos ministros. Página virada, disse Ricardo. Pá virada,
dizem os fatos.
Em solidariedade corporativa os dois ministros mais
antigos chancelaram a chicana do colega. Assinale-se que o poder jurisdicional,
o direito, a liberdade e a independência do magistrado não estavam em jogo, eis
que ninguém os colocou em dúvida ou pretendeu negá-los. A censura recaiu sobre
o exercício abusivo desse poder, desse direito, dessa liberdade, dessa
independência. As prerrogativas da magistratura não se destinam a franquear ao
magistrado a transposição das balizas da ética e do direito. Se transgredirem
normas éticas e jurídicas, os magistrados ficam sujeitos às sanções disciplinares
previstas na lei orgânica da magistratura e às sanções previstas na legislação civil
e penal.
A conduta dos membros do STF há de se subordinar à
moral e ao direito. Indiscutível a soberania do seu poder jurisdicional
inclusive para processar e julgar ações contra o Conselho Nacional de Justiça
(CNJ). Porém, do ponto de vista administrativo e disciplinar os juízes do STF estão
sujeitos ao controle do CNJ. A este Conselho compete “o controle da atuação
administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres
funcionais dos juízes”. Entretanto, decidindo em causa própria, o STF excluiu a
si próprio da incidência dessa norma constitucional, como se ele não integrasse
o Poder Judiciário e os ministros não
fossem juízes. Não há norma
constitucional alguma que exclua os membros do STF da incidência do artigo
103-B, da Constituição da República. A exclusão se deu por interpretação das
normas constitucionais pelos próprios interessados. Entre os objetivos da
criação do CNJ está o de acabar com a impunidade dos juízes integrantes dos tribunais
ordinários e superiores (os juízes singulares sempre foram controlados pelos
tribunais). O código de ética baixado por resolução do CNJ abrange a
magistratura nacional. Inclui, pois, os juízes do STF. Quando coloca os seus
juízes fora do controle do CNJ, o STF colide com o propósito moralizador.
O regimento interno do STF determina ao magistrado que
solicite aparte ao colega que está com a palavra. No entanto, há ministros
(inclusive o atual presidente) que interrompem o colega que está com a palavra,
sem solicitar aparte, o que caracteriza infração disciplinar (descortesia). O
regimento fixa horário para o início das sessões e tempo para intervalo. Esse
dispositivo é ignorado pelo tribunal. Os advogados e o público ficam aguardando
o início ou o reinício da sessão até que os ministros se disponham a
comparecer. Há exigência de vestes talares. Alguns ministros vestem a capa de
modo desleixado. O simbolismo da capa é vilipendiado. A ética e o decoro estão
em baixa nesse tribunal. O efeito perante a nação é desastroso: respeitabilidade
perdida.
Ao contrário da retórica em voga, o tribunal não é
maior do que os seus juízes. Do ponto de vista moral e intelectual, o tribunal
é do tamanho dos seus componentes. Como instituição permanente, o tribunal é
mais antigo do que os seus membros. No seu evolver, passou por altos e baixos.
O tribunal é como balão de borracha que cresce ou encolhe de acordo com o ar
insuflado. A cada nova composição corresponde uma nova estatura. Surtiu efeito a
tática de Fernando Henrique e de Luiz Inácio para desmoralizar o STF. Notória a
ojeriza desses dois presidentes em relação à magistratura e ao direito. A
caneta serviu-lhes de instrumento à vindicta. Nomearam para o cargo de ministro
pessoas que não engrandecem o tribunal (Gilmar Mendes, Joaquim Barbosa, Ricardo
Lewandowski, Dias Toffoli). Resultado: o STF atravessa uma quadra nefasta da
sua história; não está nos seus melhores dias.
Os operantes na seara do direito sabem por experiência
que o voto vencido poderá ser vencedor algum dia, desde que leve em si uma tese
ou uma questão de direito. No caso dos embargos opostos pelo bispo na ação
penal 470 do STF, tal condição está ausente.
O voto vencido não será vencedor em tempo algum tendo em vista estar
orientado por questões de fato que dependem de prova, tais como: participação
do bispo em prévio acordo político, recebimento de propina anterior ao advento
da nova lei. Não houve polêmica sobre questão de direito como, por exemplo: conceito
jurídico de corrupção passiva, aplicabilidade retroativa ou prospectiva da lei.
O fato provado é que determinou a aplicação da lei. Apesar da concordância no
julgamento da ação penal, houve discordância no julgamento dos embargos. O pomo
da discórdia foram os núcleos do tipo corrupção
passiva que estariam presentes no caso concreto: se o núcleo solicitar propina, se o receber propina, ou se o aceitar promessa
de propina. Na primeira e na terceira hipóteses a corrupção ocorre pela
solicitação ou pela aceitação, independente do recebimento efetivo da propina;
no segundo caso, a corrupção se caracteriza pelo efetivo recebimento da
propina, independente da prévia solicitação ou da prévia aceitação de promessa.
Em 2012, ao julgar a ação penal depois de longa instrução processual e larga
postulação dos réus, o STF decidiu por unanimidade que a corrupção no caso
concreto consistiu no recebimento da
propina e que esse fato ocorreu quando a nova lei já estava em vigor. Mudar essa
decisão unânime através de embargos de declaração é heresia escandalosa.
Pleitear essa mudança é chicana da braba.
O STF, naquela ocasião (2012), aplicou a lei nova
(mais gravosa) ao verificar a inexistência de prova de que sob a égide da lei
antiga (menos gravosa) o bispo tenha participado de um acordo, solicitado,
aceitado promessa ou recebido propina. Segundo esclareceu o ministro Celso de
Mello, o Ministério Público (MP) ofereceu denúncia pelo fato específico e
autônomo de o bispo receber propina
quando a nova lei já estava em
vigor. O agente do MP seria leviano se alegasse fato de cuja
existência sabia de antemão não haver prova. Ante a independência do MP
constitucionalmente assegurada, não cabe ao juiz dizer-lhe o que pode e o que
não pode lançar na denúncia (peça inaugural do processo penal). Selecionar os
fatos que entende criminosos, já provados no inquérito ou passíveis de prova na
instrução processual, enquadrá-los na lei penal e lançá-los na denúncia é
tarefa exclusiva do agente do MP. Ao admitir a denúncia (ou não admitir se
houver vício formal) e ao julgar o caso, o juiz há de se limitar aos alicerces
jurídicos da sua decisão. Ao censurar ou lamentar as escolhas do Ministério
Público, o juiz extrapola a função judicante. Joga-se para as costas do MP a
responsabilidade por decisão judicial impopular, antipática ou contrária ao
interesse social, que o juiz simula tomar contra a sua vontade. Dar lições ao
advogado ou ao agente do MP no bojo do processo judicial é conduta impertinente
do magistrado que não se coaduna com a ética judiciária. A eqüidistância em
relação às partes é essencial ao juiz da causa.
Gera perplexidade a especial atenção dedicada, a desmesurada
consideração e o tempo gasto com criminosos do colarinho branco no processo
judicial em que as garantias constitucionais e legais foram devidamente
observadas.
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