domingo, 23 de setembro de 2012

CONVERSA DE BAR

Aristeu: Garçon! Felipe!! Por favor, traga dois chopes e uma porção de pasteizinhos de camarão e palmito, meio a meio.
Estefânia: Funcionou mais quando você o chamou pelo nome. Hoje ele está mais alegre. Aquele esboço de sorriso na face normalmente carrancuda já é de admirar. Creio que ele está namorando e transando apesar da feiúra.   
Aristeu: Ele é tricolor. A vitória no centésimo fla-flu deve ser o motivo da alegria cristalizada naquele ricto. O carrancudo muda de máscara em certos momentos da vida. Sob diferente perspectiva, haverá quem o ache bonito.     
Estefânia: Não só o carrancudo, mas qualquer pessoa muda de fisionomia e de conduta em algumas ocasiões. Conhecer bem e avaliar as pessoas é difícil. Na festa comemorativa dos 10 anos de formatura notei em alguns colegas mudança nas feições, no volume do corpo, nos interesses, no comportamento, no modo de se comunicar. Os laços fraternos da comunhão acadêmica estavam frouxos. O desejo de viver a saudade e reviver os momentos da camaradagem de antanho gerava ansiedade.        
Aristeu: Imagine o que você verá na festa dos 30 anos! As células do corpo passaram por várias renovações e os temperamentos por idas e vindas. Rostos estampam experiências amargas e doces. O número de convivas será menor. Nem aqueles que convivem por longos anos se conhecem plenamente. No fluir do tempo, operam-se mudanças físicas, psicológicas, sociais, políticas, econômicas, que afetam a ordem das prioridades e dos valores e influem até no relacionamento entre os membros da mesma família. Veja a nossa amizade colorida. Convivemos há muito tempo, ora no teu, ora no meu apartamento. Você sabe me dizer de onde vim, para onde vou e quem eu sou? 
Estefânia: Moleza! Você veio do seu escritório e está à minha frente aqui neste bar ruidoso. Depois, você irá para casa, ao cinema, ao teatro ou para onde lhe der na veneta. O destino você traçará. Quem é você? Ora, meu querido, se você não sabe quem você é muito menos saberei eu ou qualquer outra pessoa. Sei apenas quem eu sou e olhe lá! Ninguém conhece ninguém profundamente. Ligeireza prevalece nesta louca urbe onde todos competem com todos. Ninguém ouve ou presta atenção ao que o outro diz.     
Aristeu: Formulei perguntas que pessoas fazem em momento de reflexão quando buscam um sentido para a vida. Creio que você entendeu, mas está fazendo troça. 
Estefânia: O chope gelado com salgadinhos combina com a graça. Relaxe, homem! Não vejo problema algum nesse teu questionamento. Ouça-me, se permitirem as coxas e os seios da bela morena à mesa ao lado que atraem o teu guloso olhar.
Aristeu: Que exagero! Foi um breve e desinteressado olhar, como o dirigido a qualquer pessoa. Mas que a moça é bem dotada, até você admite. 
Estefânia: Por que “até” eu? Você fala como se eu fosse despeitada, exigente, difícil de contentar. Das pernas bem torneadas da vizinha volto ao nosso colóquio e passo a responder às tuas perguntas. De onde você veio e para onde você vai? Você veio do útero da tua mãe e no final da jornada terrena você irá para o cemitério ou para o crematório, isto se por algum acidente você não sumir no ar, no mar ou em algum impenetrável abismo em terra. Quem é você? Animal bípede que pensa, fala, ri, chora, come, bebe, transa, dorme, trabalha; que se diverte, deseja, ama e odeia; que sente prazer, dor, alegria, tristeza; que é feliz e infeliz; que faz coisas boas e coisas ruins; que censura o capitalismo próximo e enaltece o socialismo distante.       
Aristeu: Percebo certa zanga no tom da tua resposta. Você continua a zoar só porque comi a vizinha sem olhar para os pasteizinhos. 
Estefânia: Como é que é?
Aristeu: Desculpe. Eu me atrapalhei. Eu quis dizer: comi os pasteizinhos sem olhar para a vizinha. 
Estefânia: "Eu me atrapalhei" coisa nenhuma. Foi ato falho, meu querido. 
Aristeu: Vou pedir mais uma rodada. Quanto ao questionamento, que não é só meu, ó bela zíngara, inclui o aspecto incorpóreo, a vida depois da morte.
Estefânia: Zíngara? Minha nossa! Do que o chope é capaz! Salvo engano, música dos anos 60 tinha esse título. Agora sim, com a inclusão do incorpóreo na conversa temos um problema. Vejo a crença entrar por uma porta e a razão, encharcada de chope, sair por outra. Você está se referindo a um mundo sobre o qual não há certeza alguma. Vou expor novo paradigma que li na rede de computadores e que estou propensa a adotar: o indivíduo está dentro da alma e não a alma dentro do indivíduo.
Aristeu: O que? Alma envoltório de um corpo oco? Isto me parece maluquice.
Estefânia: Calma! Você cortou a minha explanação! Não vos afobeis, meu! Chego lá. Alma é um termo plurívoco. Precisamos nos entender sobre isto, caso contrário será o samba do crioulo doido.   
Aristeu: Santo deus, Estefânia! Fale português. 
Estefânia: Estou falando. Eu disse rede de computadores e não internet, português e não inglês. Não vou baixar o nível da conversa só porque a tulipa já está no quarto anel da espiral etílica. Você está bem crescidinho para entender o que estou dizendo. Vou me limitar a três significados. Primeiro: alma, oceano de energia vibratória onde a matéria é formada, conservada e modificada. Segundo: alma humana, personalidade resultante da experiência física e psíquica do indivíduo a partir do nascimento. Terceiro: alma do negócio, princípio essencial da atividade econômica.  
Aristeu: Tudo bem. Gostaria de lembrar à minha amiga, de que estamos num bar, no anoitecer da sexta feira e não na sua cátedra universitária.  
Estefânia: Se não estou jogando conversa fora neste momento é porque você provocou o assunto. Por mim, encerro o assunto agora mesmo com o seguinte resumo: (i) o materialista afirma que o destino final do ser humano é a desintegração do corpo e da personalidade; (ii) o espiritualista diz que a personalidade permanece viva no mundo espiritual; (iii) alguns espiritualistas entendem que a personalidade retorna ao mundo material, outros afirmam que não há retorno, e por aí vai.
Aristeu: Como ignorar o mundo espiritual? Que se discuta retorno e ressurreição tudo bem, mas negar a vida após a morte me parece esvaziar de sentido a existência humana.
Estefânia: Há opiniões díspares, meu querido. Penso que a vida é corrente contínua, ininterrupta, energia natural e permanente que faz vibrar o universo. Sob este ponto de vista, a vida é expressão da alma universal. Estreita-se o conceito vida quando aplicado aos vegetais e animais exclusivamente. A existência do humano e dos demais seres da natureza decorre dessa transcendente energia vital. A morte física apenas interrompe a existência terrena do indivíduo, mas não afeta a sua essência espiritual. Vista por este ângulo, a questão da vida depois da morte perde o sentido ante esta realidade: o corpo se desintegra e a personalidade se mantém íntegra na alma universal.   
Aristeu: Aí vem a conta. Vamos conferir as rodadas e os petiscos porque, às vezes, o dono do bar erra no cálculo, sempre a favor dele.
Estefânia: Eu confiro e você paga. Depois, vamos ao meu apartamento ouvir o último CD que comprei. Acho que você vai gostar. Amanhã é sábado. Podemos ficar em casa nos devorando, ir à feira, ao shopping, ou fazer todas essas coisas, uma de cada vez.
Aristeu: No domingo, praia. Em céu azul e límpido, o sol há de brilhar.
Estefânia: Você já está meio bebum e querendo poetar. Creio que dormirá antes de ouvir a segunda faixa do CD. Vamos embora.

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