quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

REMINISCÊNCIAS

XXXVI

Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro relatou-me o caso de um inventário em que as duas únicas interessadas eram mãe e filha. A mãe sofria de grave enfermidade cujo tratamento exigia remédios caros. Necessitada de dinheiro para a compra daqueles remédios e mais as despesas com o tratamento, a mãe pediu à juíza do inventário a liberação do valor depositado em caderneta de poupança. A filha, maior de idade, única herdeira, concordou com o pedido. Os autos do processo percorreram várias vezes a estrada de ida e volta entre o ministério público e a juíza sem que fosse deferido o pedido. Havia injustificável resistência à liberação do dinheiro. Decorridos 3 meses sem que o mandado fosse expedido, o advogado suplicou a intervenção amigável do desembargador. O digno magistrado telefonou para o gabinete da juíza solicitando esclarecimentos. No dia seguinte, o mandado ficou pronto e foi entregue à requerente.

O mesmo desembargador contou-me outro caso. Advogado reclamara a ele, oficiosamente, da dificuldade que encontrara junto a um serventuário que pretendia receber percentual sobre o valor a ser levantado em processo de execução. Disse que levara o fato ao conhecimento da juíza e esta indagara: “o senhor tem prova do que afirma?” A resposta foi negativa. Tudo ficou na mesma. Ao invés de chamar o serventuário, exigir explicações e determinar a imediata expedição do alvará, a juíza buscou a via mais cômoda, mediante uma pergunta cuja resposta já sabia de antemão. Em episódio de corrupção, onde os vestígios são raros, aquela pergunta é recorrente, sinalizando que a autoridade não quer se incomodar com sindicância e aplicação de penalidade. Aquela pergunta revela má vontade em resolver de modo prático e direto o problema que é trazido ao magistrado pela parte ou seu patrono.

O advogado devia proceder como o cacique Mário Juruna: andar com um gravador nas mãos; ou agir como os espiões apelidados arapongas: utilizar máquina filmadora oculta, como a que surpreendeu o diretor dos correios recebendo propina (escândalo do deputado Roberto Jefferson) ou o secretário do chefe do gabinete civil da presidência da República (Waldomiro Diniz) em ilícito semelhante. O advogado também poderia andar com testemunhas contratadas para ouvir as exigências dos serventuários. Um levantamento nos processos do cartório poderia chegar à materialidade do ilícito quando se verificasse a rapidez na expedição de alvarás, ofícios e mandados em alguns poucos processos e a demorada expedição na restante maioria dos processos. Buscar-se-ia razão plausível para os trâmites supersônicos de alguns processos e a velocidade de tartaruga de outros. Essa diferença de velocidade pode ser constatada também na atividade do juiz em cujas mãos alguns habeas corpus e mandado de segurança são apreciados imediatamente, tão logo impetrados, mormente se o beneficiário é celebridade, enquanto outros levam meses.

Desses episódios, apreendem-se alguns modos de obter celeridade na expedição de mandados, alvarás e ofícios: (i) interferência oficiosa de algum membro do tribunal; (ii) pagamento de propina; (iii) relação de amizade ou parentesco com serventuário; (iv) representação à Corregedoria de Justiça. Esta última via raramente funciona a contento, o que retira o estímulo das partes. Quando a iniciativa da representação é de autoridade judiciária, maior é a chance de se chegar a um bom resultado. Quando a representação é iniciativa dos particulares, há falta de empenho na sindicância. A burocracia, o espírito corporativista, a preconceituosa reserva em face das denúncias formuladas por advogados, refletem-se nos trâmites preguiçosos. Tem-se a impressão de que as representações formuladas por pessoas estranhas aos quadros do Judiciário são consideradas sacrílegas. O caso a seguir exposto serve de exemplo.

Vara cível estadual da capital do Rio de Janeiro. Processo de execução de sentença. Após decisão dos embargos e demais recursos, o devedor paga o débito. O credor requer o levantamento da importância paga. O juiz defere o pedido. O serventuário procrastina. Leva 9 meses – o tempo de gestação de um ser humano – para cumprir a ordem judicial. Se houvesse recebido propina, certamente teria expedido o mandado de pagamento em poucos minutos. Como não recebeu, alegou erro na primeira conta das custas. Fingiu não perceber que esse erro já fora corrigido em contas posteriores e que a última conta fora homologada pela juíza. Se, após a exaustão dos recursos, o devedor paga a quantia calculada na última conta e o credor nada reclama, não há controvérsia e a matéria torna-se preclusa. O serventuário inventou dificuldade. O credor representou contra o serventuário. A Corregedoria de Justiça e o Conselho da Magistratura não viram irregularidade alguma nessa demora. O relator da representação foi o mesmo desembargador que aceitou favores da Confederação Brasileira de Futebol para assistir aos jogos da copa do mundo de futebol, em 1998, na França, com todas as despesas pagas.

Quando a autoridade judiciária padece de deficiência moral, torna-se incapaz de enxergar irregularidade no comportamento de um serventuário que leva 9 meses para expedir um mandado de pagamento deferido pelo juiz. Onde houver falta de senso ético, haverá solo fértil à corrupção e à impunidade. Os reflexos negativos serão sentidos pela instituição. Os jurisdicionados perderão o apreço e o respeito aos juízes e tribunais. Todo tipo de controle sobre a magistratura passará a ser exigido. O Conselho Nacional de Justiça, introduzido pela EC 45/2004, reflete a desconfiança dos jurisdicionados nas instituições judiciárias. Habilmente colocado na estrutura do Poder Judiciário, de modo a evitar argüição de inconstitucionalidade fundada na separação dos poderes, tal Conselho pode parecer insuficiente aos olhos do povo.

Na oportunidade do levantamento de importâncias depositadas em juízo, há serventuário que se aproveita para um ganho extra, colocando óbices à realização dos atos do seu ofício. O dinheiro não pertence ao serventuário. O dinheiro é patrimônio da parte e a sua retenção significa uma violência ao direito de propriedade. A expedição do mandado de pagamento não é favor algum que se faz à parte, não é mercê alguma devida ao serventuário. Como se já não bastassem o dinheiro e o tempo gastos com o processo (5, 10, 20 anos) quando chega o momento de receber o seu crédito, a parte se vê às voltas com a concupiscência do serventuário e a complacência dos órgãos disciplinares. Nos negócios extrajudiciais, o credor recebe o pagamento feito pelo devedor e lhe fornece o respectivo recibo, sem qualquer outra formalidade. Quando celebrado em juízo, o negócio encontra esses percalços que agridem a razão e o bom senso. Não há motivo plausível para empecilho quando o pagamento é feito em juízo. Bastaria o credor comparecer pessoalmente, ou mediante procurador com poderes específicos, retirar o mandado de pagamento e assinar o recibo nos autos, sem mais formalidades. A expedição do mandado devia ser automática; tão logo o devedor efetuasse o depósito, o mandado seria expedido independentemente de despacho do juiz ou de pedido do credor. Na hipótese de depósito inferior ao débito, o credor faz ressalva nos autos, recebe a quantia depositada e pleiteia a diferença em momento posterior, se lhe interessar.

Na apreciação da responsabilidade pela prática de determinados ilícitos, o ônus da prova há de se inverter e a presunção de inocência substituída pela presunção de culpa. A inversão já é permitida no direito brasileiro para proteger direitos do consumidor. Com a inversão, busca-se reduzir a impunidade que grassa em certos setores da sociedade. Os casos de corrupção servem de exemplo. Considerada endêmica na vida pública brasileira, a corrupção virou fato notório. O staff do presidente Clinton, por ocasião da sua visita ao Brasil, afirmou isso de maneira contundente. O general De Gaulle negava seriedade ao Brasil. Desde o período da ditadura militar no Brasil, os franceses comentam as comissões (em torno de 10%) exigidas por agentes do governo brasileiro em todos os negócios que realizam.

No período democrático, vieram à tona muitos casos de corrupção. Governo Collor: ministro exigiu trinta mil dólares para prestar favor; aumento de 10% para 30% na taxa da propina para liberar verbas e fechar contratos; operação Uruguai. Todos esses casos foram noticiados amplamente na época e mencionados no livro “O Salão dos Passos Perdidos” do jurista Evandro Lins e Silva. Governo Cardoso: privatizações das empresas estatais com suas vultosas comissões; ajuda a bancos privados e falidos; informações privilegiadas; compra de votos dos parlamentares para aprovar a emenda constitucional que instituiu a reeleição do presidente; entrega de 10 milhões de dólares sem prévia licitação ao filho do presidente e à filha de um senador para participação do Brasil na feira de Hannover. Governo Silva: compra do avião presidencial sem licitação pública; propinas no gabinete civil, nos correios e no Instituto de Resseguros; mesadas a parlamentares; blindagem de auxiliar do presidente da República indiciado por crime financeiro; elevada taxa de juros (antes da crise financeira mundial de 2008) e liberação de tarifas em benefício dos banqueiros; cartões corporativos; desvio de verbas, inclusive do programa bolsa-família; excesso de nomeações, sem concurso, para lotear a administração pública.

Sendo notória e endêmica a corrupção na área governamental e havendo indícios de autoria e materialidade, a presunção deverá ser de culpa dos agentes e não de inocência. A dúvida deve ser favorável às vítimas, aos cofres do tesouro e aos interesses nacionais e não à liberdade e ao patrimônio dos corruptos. Havendo fortes indícios, os agentes é que deverão provar inocência. Esse tipo de delito geralmente não deixa rastro. Ao invés de a vítima ou o ministério público gastar tempo e dinheiro na busca das provas, o acusado terá de correr atrás da prova da sua inocência, sob pena de ser condenado. À vítima bastaria demonstrar que sofreu o dano e que há indícios veementes da autoria. No caso das privatizações das estatais, por exemplo, isto ficou evidente, porque o patrimônio foi alienado a preço vil e as gravações das conversas telefônicas apontavam os autores. O tráfico de informações privilegiadas no Banco Central que veio à tona no primeiro semestre de 1999 e rendeu milhões de dólares a banqueiros e funcionários é outro caso em que poderia ser aplicada a presunção de culpa, pois a autoria e a materialidade ficaram bem definidas e se tornaram públicas através dos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito. Aos juízes deve ser outorgado o poder de inverter o ônus da prova em tais casos, mediante decisão construída por juízos de realidade conjugados com juízos de valor. Entretanto, remota se afigura a adoção de norma jurídica sobre essa matéria, por não interessar aos políticos brasileiros.

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