domingo, 24 de janeiro de 2010

PALESTRA2

O EVANGELHO DA IRMANDADE
II
Na América Latina, desde o México até a Argentina, do século XVI ao XIX, os espanhóis e os portugueses implantaram uma cultura católica impermeável a outras religiões. Dessa cultura faz parte a imagem de Jesus como um ser divino, filho de Deus, milagreiro que tira os pecados do mundo. A mãe de Jesus é santificada. Os atributos humanos de mãe e filho não são mencionados. A versão que nega a divindade de Jesus e a virgindade de Maria, conhecida na Europa e na Ásia, defendida pelos arianos, nestorianos e ebionitas, não transitou de modo influente pela América.
No Brasil, o catolicismo foi religião oficial desde a colonização, passando pelo império, até a implantação da república (1889). O protestantismo, o judaísmo e o islamismo eram admitidos apenas como culto de família, vedada a sua prática social. O espiritismo não era reconhecido como religião. A maçonaria foi aceita e dela eram membros figuras ilustres do Império. Na sua maioria, os maçons eram católicos. Os rosacruzes brasileiros eram membros de sanctum, filiados à Grande Loja da Califórnia, até organizarem os primeiros corpos afiliados. Em fins dos anos 50 do século XX, foi criada a Grande Loja do Brasil, na cidade de Curitiba, capital do Estado do Paraná, mais tarde renomeada Grande Loja da Jurisdição de Língua Portuguesa.
Sem dispensar a imaginação, a experiência de vida e os conhecimentos gerais, guiei-me pela razão e pela intuição na elaboração do romance O Evangelho da Irmandade. Para as cerimônias nele descritas inspirei-me nos rituais rosacruzes e maçônicos. Apesar das restrições que faço à Bíblia, nela mergulhei para ilustrar a versão do livro. Os episódios de sensualidade narrados no livro, envolvendo Jesus, a serva, os pais de Jesus, a tia, o diácono e Maria Madalena, combinam história, realidade, racionalidade e imaginação. A mãe de Jesus perde a virgindade no momento da concepção, em ritual no templo da Irmandade. O romance não trata dos milagres, porém considera-os leis da natureza cujo mecanismo é conhecido pelos magos e desconhecido pela massa popular.
No capítulo sobre a república cristã, do livro Leviatán, o filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679) transcreve trecho da Bíblia em que Esdras (sacerdote e erudito judeu) lamenta o estado de ignorância da sua gente. Segundo Esdras (398 a.C) o seu povo caiu na dissolução dos costumes porque o livro da lei fora queimado. Entende-se por “livro da lei” o conjunto dos cinco primeiros livros do Antigo Testamento, denominado Pentateuco e que os judeus chamam Torá (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio). Esdras pede ajuda a Deus para escrever tudo novamente. O texto do Antigo Testamento que chegou até nós resulta desse trabalho, recomposto depois por Hilel (filósofo judeu) e pelos rabinos da era cristã.
Antes disso, não havia hebraica veritas, um cânon imutável ditado por Deus em pessoa. Entende-se por “cânon” as regras contidas nos diferentes livros que compõem a Bíblia. Esses livros eram rolos de pergaminhos, como os mencionados por Lucas (4:17,20) e aqueles outros acidentalmente encontrados nas cavernas de Qumran no século XX. Os rolos que continham a lei (Torá), anteriormente ao século IV a.C., foram consumidos pelo fogo, como informa Esdras (não discuto aqui se esses livros existiam realmente; lembro apenas que a tradição oral prevalecia sobre a escrita). Durante os séculos I e II, da era cristã, rabinos prosseguiram na prática de incluir e excluir textos na escritura, até chegarem à forma literária de consenso denominada Bíblia Hebraica.
Destarte, o Antigo Testamento foi sendo elaborado a partir do século IV a.C. A Bíblia foi impressa em papel por Johannes Gutemberg no século XV (1401/1500). O capítulo 14, do livro de Esdras, citado por Hobbes, sumiu da Bíblia, provavelmente a partir da divulgação da obra desse filósofo no século XVIII (1701/1800).
O Novo Testamento menciona os pais e os irmãos de Jesus. Aos olhos dos seus conterrâneos, Jesus era homem comum, filho do carpinteiro José, que percorria a região com um pequeno grupo de vagabundos. Isto levou Jesus a dizer que um profeta só é desprezado na sua pátria, entre os seus parentes e na sua própria casa (Mt 13:57; Mc 6:4; Lc 4:24). Ao dizer isso, Jesus qualifica de profeta a si mesmo. A autoridade judaica o qualifica de gentio da Galiléia e o acusa de impostor e blasfemo; não o reconhece como judeu, nem como o messias descendente do rei Davi. A autoridade romana o enquadrou na lei penal romana como subversivo. Os seus seguidores consideravam-no mestre religioso (rabi). O apóstolo João tratava Jesus como um ser divino, filho de Deus, pão caído do céu, o bom pastor.
Por ser filho adotivo de um carpinteiro não significa que Jesus fosse pobre e ignorante. Há indícios de que ele pertencia a uma família remediada, ligada à visão de mundo dos essênios, seita mística cujos membros se espalhavam pela Síria, Palestina e Egito. Um grupo de essênios organizou a comunidade de Qumran, às margens do Mar Morto, no ano 200 a.C., aproximadamente, e ali permaneceu até o ano 68 d.C. O objetivo do grupo era o de viver separado da sociedade judaica, cumprir suas próprias leis, seguir a sua própria doutrina e executar seus próprios rituais. Os essênios de Qumran se consideravam os verdadeiros filhos de Israel, comunidade de santos e sacerdotes. Declaravam ilegítimos os fariseus e os saduceus. O apelido de nazareno e o visual correspondente (semelhante ao dos essênios) indicam que Jesus pertencia à seita nazarita. A utopia de Jesus assemelha-se à dos nazarenos e à dos essênios: a santidade e o sacerdócio como modus vivendi da humanidade.
A inspiração divina dos escritores dos livros bíblicos é matéria de fé e ingenuidade, por isso mesmo, assunto inadequado ao debate racional. Qualquer escritor pode se declarar divinamente inspirado para dar força e credibilidade à sua obra. Fé e razão costumam se digladiar nessa arena. Após a segunda guerra mundial, os ingleses desistiram do protetorado sobre a Palestina, porque árabes e judeus mantinham as divergências no plano da fé e não no plano da razão, o que tornava o conflito insolúvel.
O lado racional da natureza humana é tão importante quanto o lado emocional e instintivo. A fé tem valor quando lúcida. A fé cega nega valor à razão e enseja conflitos entre indivíduos, grupos e nações. O fanatismo ocupa o lugar da sensatez. O ódio ocupa o lugar do amor. A guerra ocupa o lugar da paz. O ser humano é instintivo, emotivo, intuitivo e racional. Desvalorizar a natureza racional equivale a amputar o ser humano.
O mundo em que vivemos apresenta dupla face: material e espiritual. Podemos ilustrar essa duplicidade com a mitologia (as duas faces de Jano) ou com a economia (as duas faces da moeda). Na teoria política temos o exemplo do bom selvagem de Jean-Jacques Rousseau e do feroz selvagem de Thomas Hobbes, as duas faces do ser humano. Rousseau prendeu-se à face angelical; Hobbes, à face demoníaca. Anjo e demônio compõem o ser humano.
O lado angelical do ser humano é positivo quando desperta a bondade e as virtudes; é negativo quando sufoca os aspectos terrenos da vida. Daí, pessoas que, na busca da beatitude, afastam-se da vida em sociedade, como os anacoretas e toda a gama de indivíduos que se mortificam, renunciam aos apetites e aos cuidados do próprio corpo.
O lado demoníaco do ser humano é positivo quando defende a natureza e orienta os instintos e inclinações para obter o melhor à sua sobrevivência e à satisfação das suas necessidades; é negativo quando sufoca o aspecto angelical da vida humana, desperta a maldade e os vícios no ser humano. Daí, o mergulho no materialismo, a negligência da vida espiritual, como acontece com os ateus, os amorais, os criminosos habituais e aquela parcela da humanidade que menospreza as virtudes.
Apesar da dupla face, o universo é um só, como o próprio nome diz: o múltiplo no uno. Há dimensões diferentes. Algumas são percebidas apenas quando expressamos a um grau elevado as nossas potencialidades físicas e mentais, quando exploramos os nossos instintos e os nossos sentidos, quando desenvolvemos as nossas faculdades intelectuais.
A Física moderna chegou à concepção holística do universo, ou seja, a de que todas as partes do universo estão relacionadas. A filosofia perene diz: assim como em cima, é embaixo. A crescente e aparente desordem do universo a que chamamos entropia acontece em nível macroscópico e em nível microscópico; lá, a partir do enclave organizado do nosso sistema planetário em direção aos diversos pontos da galáxia; cá, no mundo subatômico da matéria.
A linguagem matemática de Einstein e a linguagem esotérica dos místicos expressam a mesma coisa: a matéria é energia concentrada e organizada, o que supõe uma inteligência dinâmica e transcendental. Cientistas contemporâneos como Hawking e Greene, especulam sobre os limites do universo e as suas partes componentes. Afirmam que a matéria com estrutura atômica compõe a parte menor do universo; a matéria escura de consistência desconhecida compõe a parte de extensão média; o plasma, substância delgada de natureza misteriosa, compõe a parte maior do universo. Esse plasma pode ser a fonte de formação e sustentação das outras partes, equivalente racional daquele princípio espiritual que os místicos chamam de alma universal.

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