sábado, 30 de maio de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - VII

Na rua ao lado do colégio, no intervalo das aulas, jogávamos bolinha de gude. Eu treinava na rua de terra, em frente à minha casa; ensaiava as mais diversas e difíceis situações. Nos primeiros jogos com os alunos do colégio, quando eu desprezava as bolinhas próximas e me voltava para as mais distantes, escutava alguém dizer com o apoio da platéia: “Mas que burro!”. Depois de algumas partidas ninguém mais repetia a censura, porque eu acertava as bolinhas distantes e depois retornava às outras, que já não mais estavam próximas e as acertava também. Aquela exibição de perícia me envaidecia. Retornava do colégio com saquinho de sal cheio de bolinhas. Nesse jogo, o turco Ayssar reinava soberano até que eu o destronei e mantive a invencibilidade. O meu reinado durou os dois últimos anos do curso ginasial. Chamávamos os libaneses e seus descendentes de turcos, tanto pelo hábito como pela nossa ignorância sobre a diferença entre as duas raças. Delair, casado com a minha irmã Adília, também recebera o apelido de turco.

Mudamos para a casa da Rua Beaurepaire, no mesmo bairro, com água encanada e luz elétrica, sem esgoto e sem calçamento na rua, de propriedade dos pais de Adelmar, aquele mesmo que pretendia namorar Adília. Tcheco, meu irmão, que trocou os estudos pela oficina mecânica, casou-se. Na esquina de casa, onde começava a nossa rua a partir da principal, William, Osmir, Dego e eu, jovens da mesma idade, companheiros de equipe do futebol de várzea, reuníamos com o propósito de conversar e comer frutas da estação. Sentávamos na grama e fazíamos de encosto a cerca de madeira do terreno ao lado da casa de William. Eles ficaram admirados com a minha técnica de sorver o sumo espremendo a laranja entre as mãos e depois colocá-la ao avesso e retirar os gomos inteirinhos. Ficaram alegres com a descoberta, pois antes disso, jogavam fora a laranja quando ainda continha suco.

Aproveitando um dos períodos de férias do curso ginasial viajei para Valões/SC no caminhão Mack dirigido por meu cunhado Delair. Em Rio Negro/PR tomamos o café da manhã com leite, pão, manteiga, queijo, patê e chouriço. Seguimos viagem. Atravessamos a ponte que liga Rio Negro a Mafra e separa o Estado do Paraná do Estado de Santa Catarina. Perto dali, o meu cunhado deu carona a um senhor e a um menino que estava doente. Do menino exalava um odor horrível que me embrulhava o estômago até que não podendo mais segurar tentei avisar o meu cunhado, mas não houve tempo: vomitei ali mesmo na cabine do caminhão. Os odores se misturaram e o ar da cabine ficou irrespirável. O pai do menino exclamou: “Esse aí também está doente!”.

O meu cunhado cedia a direção para que eu aprendesse a manter o caminhão na estrada. Além disso, eu prestava atenção nos movimentos dos pedais e da alavanca de marchas assim como eu fazia no ônibus urbano. Depois os imitava no porão da minha casa, servindo-me da tampa circular do cesto de roupa como direção e de um pedaço de cabo de vassoura como alavanca das marchas. Papai construiu para mim um carrinho de descida. As quatro rodas, os eixos e a direção eram de ferro. A base era de madeira, tendo ao lado direito a alavanca do freio conectada com fio de aço ao dispositivo de frenagem. Os amigos admiravam o meu carro que era veloz, porém pesado. Os carros deles exigiam menos esforço para subir o morro depois da descida. Com essas experiências aprendi a dirigir veículos automotores.

Nas minhas últimas férias do curso ginasial ganhei algum dinheiro entregando produtos farmacêuticos a serviço de uma firma de representação, sem carteira profissional assinada. Curitiba estava faceira. O governo Munhoz da Rocha construíra o Centro Cívico (sede dos três poderes do Estado e do tribunal do júri) a Biblioteca Pública e o colossal Teatro Guaíra dividido em duas salas e respectivos palcos, uma grande e outra menor. Concluído o curso ginasial obtive emprego, aos 15 anos de idade, com carteira assinada, na firma S. Castro & Cia. Ltda., importadora das motoniveladoras Adams. O compadre do meu pai, engenheiro Robert, recomendou-me ao engenheiro Schwab que gerenciava o setor de peças. Comecei a trabalhar durante o dia e a estudar à noite. Estranhei a nova situação, agravada com a boemia. Experimentei a primeira reprovação no meu histórico escolar.

Por volta dos 14 anos de idade, na casa do tio Frederico, irmão mais novo da minha mãe, eu vi o pai tocar bandolim, o tio tocar violão e Arthur, amigo deles, a cantar. Fiquei fascinado. “Cante Rosa, Artur” pediu minha mãe. Cheia de modulações, letra extensa, essa música só teve um intérprete à altura: Orlando Silva. Recentemente, Mariza Monte a gravou, porém mais declamou do que cantou. Faltou o clima da época. Artur não se fez de rogado e musicou o vozeirão: “Tu és divina e graciosa, estátua majestosa do amor, por Deus esculturada...”

Aos 15 anos, comprei violão e método. Às vezes meu pai ensinava. Ligando o violão ao alcoolismo e à farra, minha mãe não via aquilo com bons olhos. Aprendi as posições básicas. Com dificuldade no solo, passei a cantar e a me acompanhar. Selecionei alguns tangos argentinos. Imitando Carlos Gardel, usava chapéu de feltro cinza e cachecol. Incluí músicas cantadas por Sílvio Caldas, Francisco Alves, Carlos Galhardo e Nelson Gonçalves. Mais tarde, boleros, guarânias e rancheiras mexicanas completariam o repertório. Nos dias atuais, esse repertório seria rotulado de brega. No Hugo Lange, bairro onde eu morava, começaram as serenatas sob janelas de amigas e de conhecidas cuja formosura me despertava o senso estético, sem que chovesse substâncias líquidas ou sólidas sobre nossas cabeças. Algumas vezes, eu e meus poucos companheiros éramos convidados a entrar nas residências. Evidente o anacronismo: voltava-me para os costumes do início do século XX, aos tempos em que meus pais eram solteiros, enquanto os jovens do mundo ocidental vibravam com o rock´n roll de Elvis Presley e com os personagens de Marlon Brando, no filme “Sindicato de Ladrões” e de James Dean, no filme “Juventude Transviada”.

De casa para o emprego, eu ia e voltava de bicicleta. A razão social da firma mudara para Diesel Máquinas. Um dos diretores, Evaldo Vita, ex-diretor de banco, admoestou-me porque me vira andar de bicicleta sem colocar as mãos no guidão. Isto lhe pareceu arriscado; poderia trazer incômodo na hipótese de acidente. Fora do centro da cidade, continuei a bicicletar daquele modo. Outro diretor que entrou na empresa, engenheiro Ivo Arzua, tempos depois foi nomeado prefeito de Curitiba e ministro de Estado pelo governo militar. De um vendedor de livros que visitou o escritório em 1957, adquiri a coleção denominada Fundo de Cultura Geral (Editora Globo, 1956) da qual faz parte o livro Ideologia e Utopia, de Karl Mannheim, que só li 20 anos depois. Fiz camaradagem na firma enquanto progredia da seção de peças à seção do faturamento e ao caixa. Manfred, chefe da seção, loiro, descendente de alemães, magro, alto, língua presa, gravava na memória o nome e as características das peças e os seus lugares no estoque. Jacy, morena, cabelos e olhos negros, seios fartos, solteira, veloz na datilografia e trabalho de boa qualidade. Rute, atarracada, nariz adunco, olhos pequenos, loira, solteira, contabilista, minha eficiente antecessora no faturamento e no caixa. Certa vez, ao fechar o caixa no final do dia, sobrou dinheiro. Algo estava errado. Fiz e refiz as operações sem êxito. Recorri ao Casemiro, contador da firma, a quem entreguei os documentos e a sobra. Ele disse que consertaria a escrituração. Saí da firma para servir o exército sem saber do resultado.

Arthur, economista, sobrinho do principal sócio da firma, meu parceiro em versão da música de Charlie Chaplin, proprietário da academia Hércules, convidou-me a freqüentá-la. Convite aceito, ele me explicou que havia dois modelos básicos: o francês (estética delgada) e o americano (estética volumosa). Optei pelo primeiro porque entendi mais adequado à minha compleição física. Artur concordou e preparou a série de exercícios. “Cabeleira”, negro forte, instrutor, orientava os praticantes. “Cabeleira” estava para Artur assim como Santana estava para Hélio Gracie. A nomenclatura mudou ao tempo em que lá me exercitava. Ao esporte de levantamento de peso reservou-se o termo halterofilismo; à modelagem do corpo, cultura física; ao estímulo sistemático da musculatura para fins terapêuticos ou bom desempenho físico, musculação. Destarte, segundo a nova classificação, eu praticava cultura física e não halterofilismo. Interrompi os exercícios e me licenciei do emprego para prestar serviço militar. Quando retornei à vida civil, na academia Hércules treinavam Paulo Afonso, dentista que obteve o título de Mister Brasil, Osmar Simões e Roberto Requião, estudantes universitários como eu. Certa noite, Simões e Requião tagarelavam enquanto eu silenciava. Ante a minha indiferença, Requião foi se impacientando até que desabafou: “quem cala, ou sabe muito, ou não sabe nada”. Ignorei a provocação. Continuei os exercícios como Artur recomendara, em silêncio e concentrado de modo a economizar energia e tirar o máximo proveito da série. A conversa deles definhou e os dois retornaram aos exercícios. Simões se deu bem na advocacia e Requião na carreira política.

Ao primo do Arthur e a outro colega, ambos da firma, falei sobre um lupanar que funcionava no bairro onde eu morava. Interessaram-se pelo assunto. Tinham 17 anos e não haviam transado com mulher. Pediram que os levasse. Fiz-me de rogado, de homem experiente. Valorizada a minha decisão, concordei. Os rapazes pareciam colegiais cheios de alegria e ansiedade a caminho de uma atividade externa agradável e eu parecia monitor da classe. A dona do pedaço percebeu que todos eram menores de 18 anos (eu já completara essa idade e me alistara no exército, porém minha aparência dava razão à mulher). A semana ia ao meio, fraco movimento, casa longe do centro da cidade, sem fiscalização. Ela permitiu a nossa entrada e permanência para os fins de direito. O leão-de-chácara nos advertiu: “Vocês não me enganam. Comportem-se bem.” Na verdade, ele fez a cena para nos intimidar e justificar o salário que recebia da dona do lupanar, pois a advertência era absolutamente desnecessária. Ninguém voltou o mesmo para casa. Os comentários na firma arrastaram-se por muitos dias. Os camaradas sentiam-se protagonistas de uma grande e marcante aventura.

Colegas da firma participavam de um grupo de excursionistas que viajava para a Serra do Mar em fins de semana com o propósito de escalar o Marumby. A ferrovia no trecho da serra proporcionava um espetáculo ímpar, belíssimo. Paisagem com vegetação exuberante, abismos entre montanhas e cachoeiras. O colossal trabalho de engenharia dos irmãos Rebouças embasbacava quem o visse. Época em que universidade era privilégio de brancos, eu não os imaginava negros. Nós saíamos bem cedo para retornar ao entardecer do mesmo dia. A serrana estação era pequena, mas bem arrumada. Estávamos informados sobre o horário do trem que vinha de Paranaguá puxado por duas locomotivas, subindo a serra lenta e penosamente. Pelas trilhas batidas escalávamos as montanhas dos abrolhos e do pico. Pela chaminé ou pelo outro lado da montanha, só com equipamento apropriado.

Em uma dessas excursões me preparei para pernoitar na montanha. Ao chegar ao topo, registrei o meu nome no livro guardado no interior de uma pequena caixa de madeira com cobertura imitando telhado, sustentada por um pilar de madeira. Arrumei o bivaque. Do ponto mais alto da serra contemplei o crepúsculo. Raios do sol contra o rosto. Céu colorido. A alma vibrava de mística alegria. O horizonte acolheu o astro-rei. À noite, corpo cansado, deitado sobre uma cama de pedra forrada com o cobertor, olhava as estrelas. O aroma do mato era como perfume trazido por suave brisa; ouvia-se o farfalhar da vegetação. Meus olhos perscrutavam o firmamento. Senti a proximidade dos astros. Internava-me naquele céu sem nuvem. Relaxei. Detive o olhar num só ponto, toquei na estrela mais brilhante e naveguei no oceano cósmico em profunda paz. Quando acordei ainda estava escuro. Começou a clarear. Céu límpido. Lembrei estar em jejum. Bebi água do cantil. Do alto da montanha contemplei a alvorada. A sensação foi de paz e êxtase. O eu interior regozijou-se como se participasse de uma cerimônia mística. Nenhum pedido a Deus. Só agradecimento.

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