sexta-feira, 22 de maio de 2009

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - VI

No período de 1946 a 1964, o Brasil só conheceu relativa tranqüilidade no governo de Eurico Gaspar Dutra (1946/1950). Esse presidente, que fora Ministro da Guerra no governo anterior, dirigia a nação brasileira com os olhos postos no texto constitucional. Na escola, além dos hinos, tínhamos de decorar os nomes do presidente, do governador e do prefeito e assistir ao hasteamento da bandeira nacional. O espírito cívico ainda era forte. O partido comunista foi colocado na ilegalidade (1947). A Constituição de 1946 ratificou a de 1934 e a de 1937, ao outorgar direito de voto às mulheres. A falta de emprego e de boas condições de vida nos Estados de origem provocou migração de nortistas e nordestinos para a região sudoeste e sul do Brasil. O excedente dessa população foi morar na periferia de São Paulo e nos morros do Rio de Janeiro. Cresceu o número de favelas e de cortiços nessas cidades. O processo de industrialização iniciado no primeiro governo Vargas prosseguiu no governo Dutra. Foi criada a Companhia Hidréletrica do São Francisco, construída a Usina de Paulo Afonso e as refinarias de Cubatão e Mataripe e organizada a frota nacional de petroleiros. O segundo governo Vargas (1951/1955) aumentou o salário mínimo em 100%, criou a Petrobrás e a Eletrobrás, fundou o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, investiu em setores básicos (siderurgia, construção naval e energia) buscou a emancipação nacional e a ascensão da classe trabalhadora. Ante a queda do preço do café, Vargas liberou as importações, a entrada e saída de capitais e facilitou o crédito à indústria mediante baixas taxas de juros. A imprensa oposicionista alardeava corrupção em negócios do governo e novo golpe de Estado planejado por Getúlio Vargas. O chefe da guarda pessoal do presidente, Gregório Fortunato, toma as dores de Vargas e resolve eliminar Carlos Lacerda. O pistoleiro contratado erra o alvo e acerta major da aeronáutica. Os militares instauraram inquérito e os políticos da oposição exigiram a renúncia do presidente. Vargas redigiu e assinou carta-testamento e se suicidou (24/08/54). O povo se revoltou, invadiu a embaixada dos EUA e empastelou o jornal “O Globo”, acusados de provocarem aquele estado de coisas. O funeral foi acompanhado por centenas de milhares de brasileiros. O vice-presidente Café Filho assumiu a presidência. Assassinaram Gregório Fortunato na prisão.

Realizadas as eleições, saíram vitoriosos das urnas Juscelino Kubitschek (presidente) e João Goulart (vice-presidente). Tentaram impedir a posse dos eleitos. Café Filho se licenciou alegando doença. Carlos Luz, presidente da Câmara dos Deputados, assumiu o governo e exonerou o general Henrique Lott do cargo de Ministro da Guerra. O general não acatou o ato do presidente em exercício e reagiu com força militar, pôs a correr os conspiradores (Carlos Luz e Carlos Lacerda) que se refugiaram no cruzador Tamandaré, ancorado na Baía da Guanabara. Lott obteve da Câmara dos Deputados o impedimento de Café Filho e chamou o senador Nereu Ramos (vice-presidente do Senado) para assumir a presidência da república até a posse dos eleitos. Juscelino Kubitschek, médico, otimista, empreendedor, político mineiro, cumpriu o mandato (1956/1960). O plano de metas do seu governo dava prioridade à base material da nação: aço, energia e transportes. A melhoria na saúde e na educação seria conseqüência. Os oposicionistas defendiam tese contrária: prioridade para educação e saúde; o progresso material seria conseqüência. JK incrementou a indústria automobilística, investiu em rodovias (negligenciou as ferrovias) construiu as centrais elétricas de Furnas e Três Marias, as siderúrgicas Cosipa e Usiminas, a refinaria Duque de Caxias e Brasília, mudando o distrito federal do litoral para o planalto central. JK optou pelo crescimento com inflação e rompeu com o FMI. Pesou sobre o governo de JK a suspeita de desvio de verbas e de material na construção de Brasília e a acusação de excesso de mordomias oferecidas aos agentes políticos e aos agentes administrativos para que se fixassem na nova capital.

Na década de 50, na pequena casa da Travessa Aguinelo, bairro Hugo Lange, nasceu a irmã caçula, Sandra Regina. Agora, éramos seis irmãos. Essa casa foi palco de uma tragédia depois que de lá nos mudamos. A filha do proprietário casou e ali foi morar com o jovem marido, conhecido morador do bairro e que jogava futebol conosco (Adi o chamava de “cunhado” por causa da bonita irmã e os demais amigos também passaram a assim chamá-lo). A casa incendiou e o casal morreu queimado. As circunstâncias permaneceram na penumbra. A comunidade ficou abalada. Nos primórdios, o ônibus não ia além dos trilhos da linha férrea Curitiba - Rio Branco do Sul. Longo trecho em aclive tinha de ser percorrido a pé morro acima. Quando a população do bairro cresceu, o ponto final do ônibus deslocou-se para perto da nossa casa. Ali, em certos fins de semana, para visitar as tias, desembarcava Suilita. Mais nova do que eu, bonita, morena, olhos castanhos expressivos, coquete, atormentava-me ao falar de Miguelito, que ela conhecera em Buenos Aires. O ciúme foi o caruncho daquele amor ingênuo. Renunciei à mulher amada; o coração dela pertencia a outro. Um alemão roubara a minha primeira paixão infantil; agora, um argentino roubava a minha primeira paixão juvenil. Flertei com Vanda, hóspede da família Souza Franco, cujo chefe era diretor da Indústria Klabin de Celulose. A menina-moça viera de Monte Alegre, no centro do Estado do Paraná, onde se localizava a fábrica de papel e celulose, para estudar em Curitiba. Suilita queria saber se os predicados de Vanda eram superiores aos dela. A intermediária foi minha irmã Anunciada, amiga de Suilita, ambas da mesma idade. Surpreendi-me com o questionamento. Não se tratava do que Vanda tinha a mais e sim do que tinha a menos: paixão por aquele maldito argentino. Paixões e renúncias se sucederam mocidade afora. Descendentes de europeus de pele alva se preocupavam com o afeto das filhas por um mestiço brasileiro de pele morena e bolsos vazios. Lição da experiência: o amor pode ofender. Notei que era necessária cautela para não injuriar pessoas com o atrevimento do meu bem querer. Algumas pessoas esperavam servilismo da minha parte; o meu afeto lhes parecia abusiva pretensão à igualdade, expediente para indevida ascensão social.

O Colégio Estadual do Paraná fora inaugurado há um ano quando ingressei na primeira série do ginásio. Tudo era novo e moderno. Piscina olímpica, outra piscina menor, campo de futebol, pista de atletismo, quadras cobertas para basquete e vôlei, chuveiros, pias e vasos sanitários de louça. Usávamos tudo isso nas aulas de educação física. No inverno, enfrentar chuveiro e aula de natação era de arrepiar, preferível correr na pista, arremessar dardos e pesos, saltar distâncias e obstáculos, jogar futebol, vôlei ou basquete. Salas de aula arejadas, bem iluminadas, janelas amplas, carteiras confortáveis, lousa verde com amparo na base para apagador e giz. Corredores com piso de granito, amplos e limpos, assim como os banheiros. Biblioteca sortida e bem organizada, em cujas mesas li dois grandes livros: um sobre a vida de Jesus e outro sobre a vida de Napoleão Bonaparte. No subsolo, ficava a cantina. Com o produto da venda das bolinhas de gude, lá estava eu comprando ficha para sonho e copo de leite; o sonho era grande, macio, capa bordeaux, a indicar fritura no ponto certo.

Os professores eram excelentes. Aulas de latim com Oswaldo Arns, cujo irmão cardeal se tornaria célebre na defesa dos direitos humanos durante a ditadura militar. Ludus primus, secundus, tertius, lições que eu não imaginava me servirem no futuro. Aulas de música e canto orfeônico com o maestro Bento Mussurunga. Escrever as notas musicais nas pautas em clave de sol e aprender o valor das notas musicais. Cantar ao som do piano, acompanhando o movimento das envelhecidas mãos do maestro e o balançar dos seus cabelos longos e brancos no mesmo compasso. Aulas de geografia ministradas por uma professora de tailleurs justos, preenchidos por pernas bem torneadas, cintura fina, seios arremetidos contra blusa de seda, ameaçando arrebentar os botões. Requebro dos quadris ao andar e escrever no quadro. A atenção do adolescente vagava do real ao imaginário. Meu irmão dizia que a professora de história, linda e de corpo escultural, disputava com a minha professora de geografia as atenções de certo professor. Infelizmente, não tive aulas com a professora Gema, mas por curiosidade, passava pela sala dos professores só para vê-la, porém, envergonhado pela bisbilhotice, não conseguia fixar-me na fisionomia. Fiquei com a imagem de um corpo sem cabeça. As aulas de trabalhos manuais exigiam vigilância constante, pois a qualquer momento poderia passar voando um apagador em direção à fonte de conversas e risos. Voltaria para casa com um galo na cabeça se ficasse na trajetória do apagador. O professor baixinho e gordinho era pavio curto. O filho dele, Ariosto, da minha classe, formou-se em direito e advogava no Rio de Janeiro quando o encontrei anos mais tarde. As aulas de ciências naturais ministradas pelo professor Bettes eram gratificantes. Ele gostava de lecionar e tinha paixão por sua matéria. Caprichosamente, desenhava órgãos no quadro com giz colorido, cores diferentes para cada parte que merecia destaque e explicava a anatomia e a fisiologia do corpo humano. Certa vez, nervoso, quase bateu em meu colega que conversava e ria durante a aula. Exigia silêncio e atenção. O filho dele, Carlos Artur, da minha classe, cursou direito e se tornou delegado de polícia. Apesar de haver turmas mistas, no pátio de recreação a ala das moças era separada da ala dos moços. Do nosso setor flertávamos com elas. Vindo de São Paulo, novo colega da classe ginasial, Rafael Iatauro, bem humorado, em reunião festiva no auditório do colégio, exibiu sua arte ao arrastar os pés sobre o tampo da mesa imitando o som do trem. O artista virou conselheiro do Tribunal de Contas do Paraná.

Participei da fundação do grupo de escoteiros do Colégio Estadual do Paraná. O uniforme foi comprado com sacrifício; o chapéu, semelhante ao da polícia montada do Canadá, foi a peça mais cara. O grupo se reunia no subsolo do colégio. O bairro de Santa Felicidade era o lugar preferido para os acampamentos, o que implicava caminhada com mochila nas costas, meias até os joelhos, cantil e faca na cintura. Em um deles, tirei da barraca o escoteiro de flatulência incessante. O volume de gases era tanto que se acendêssemos fósforo a barraca explodiria. Deixei-o na chuva o resto da noite. Ele pegou pneumonia. Fui visitá-lo. Mostrou-se amigável e alegre. O meu sentimento de culpa agravou-se; descobri a minha veia autoritária. Para ser guia escoteiro exigia-se certo número de especialidades. Na oficina do meu pai fiz uma caneca com lata de azeite. Assentei bem as bordas. Cortei outra lata e preparei o cabo no torno, a marteladas. Poderia parafusá-lo na lata, porém o mais seguro para evitar vazamento era soldá-lo. Usei o ferro de soldar a estanho, como eu via meu pai fazer. Deu certo. Trabalhei um pedaço de madeira com o cepilho, formão, lima e serra. Sobre um quadrado de madeira bem cortado, fixei um bocal e nele prendi fio de eletricidade; na outra extremidade do fio prendi o pino duplo (negativo e positivo). Coloquei lâmpada no bocal e introduzi o pino duplo na tomada. O foco acendeu. Ante esses feitos prodigiosos, o chefe dos escoteiros me outorgou as especialidades de latoeiro, carpinteiro e eletricista, para fins de habilitação a guia. O chefe me nomeou monitor. Comandei a patrulha que participou do acampamento internacional, o jamboree de Interlagos, SP, 1954. Lá, aprendi a fazer panquecas, mais pelo gosto de lançar a massa ao ar e apará-la na frigideira. Tomei conhecimento da existência dos corn flakes, fornecidos pelos organizadores do evento. Fotografia minha em frente à barraca, conversando com um escoteiro nissei, do grupo de São Paulo, foi tirada por um repórter e publicada na Revista Esso. O tio Joãozinho, casado com a irmã da minha mãe, recortou a fotografia, colocou-a em um quadro e me presenteou. Por coincidência, eu exibia no pulso o meu primeiro relógio, que fora do tio e que ele me presenteara ao adquirir um novo.

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