terça-feira, 19 de maio de 2009

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - III

Em Ponta-Grossa, cidade que se intitulava “capital cívica do Paraná”, a nossa família desfrutava de boa qualidade de vida, apesar do padrão modesto. O pai era o único provedor e seus ganhos eram de operário qualificado. As compras do mês, em quantidade pequena, mas suficiente, eram feitas na Cooperativa dos Ferroviários; de básico, nada nos faltava. Morávamos no centro da cidade, em pequena casa de quatro cômodos, geminada com a padaria, rua calçada, luz elétrica, água encanada, rede de esgoto. No rádio, mamãe ouvia a hora da Ave Maria e papai, a BBC de Londres, a hora do Brasil e os discursos de Vargas, que sempre começavam assim, no sotaque gaúcho: “Trabalhadores do Brazzillll”. Frutas, legumes, verduras eram oferecidos na porta de casa a preços módicos. Mamãe comprava só quando havia alguma reserva de dinheiro. Laranjas e mimosas, ela comprava em centos, por ser mais vantajoso do que em dúzias. Em poucos dias, consumíamos tudo.

Nos fundos do quintal havia um cercado onde eram criadas galinhas. Um pé de romã no espaço entre a casa e o cercado, alegoria maçônica erguida pela natureza (papai e vovô eram maçons). Sob a árvore, um cepo onde meu pai partia lenha para o fogão. O maquinista cedia achas destinadas a alimentar a fornalha do trem. Papai as carregava nos ombros, desde a oficina até a nossa casa, percurso de mais de um quilômetro. No final da semana, ele cortava as achas em pedaços do tamanho adequado ao fogão. Minha mãe assava pão, bolos e fazia manjares deliciosos, como os de coco e de laranja. Do lado oposto ao pé de romã havia um paiol que servia de depósito e de oficina para o meu pai consertar coisas. Ele fazia suportes decorativos para vasos de flores. Nada cobrava. Arte sem fins lucrativos.

Uma vez papai me levou para assistir ao jogo de futebol em modesto estádio. União versus Operário; não lembro o nome completo dos clubes. Simpatizei com o clube União; papai, com o Operário. Ao voltarmos para casa, mamãe perguntou: “ele se comportou?”. “Sim, ele nunca pede nada”, respondeu papai. Comportar-se era não pedir sorvete, pipoca, doce, qualquer coisa que implicasse dispêndio. O dinheiro era curto. Eu sabia disso. Meu pai se sentia amargurado quando não podia atender aos pedidos dos filhos. Por isso mesmo, eu nada pedia. Evitava constrange-lo. Eu desconhecia essa palavra, mas vivenciava o seu significado.

Para ganhar dinheiro extra, meu pai organizou uma banda denominada “Jazz Band Santana”. O nome era do bairro da cidade de São Paulo onde ele nascera. De estatura baixa e compleição miúda, o pai recebeu o apelido de “paulistinha”. Em São Paulo, ele aprendera a tocar bateria, bandolim e outros instrumentos de cordas. Lá, com proveito, cursou o Liceu de Artes e Ofícios. O conjunto musical tocava em bailes e circos. Na apresentação do trapezista, papai fazia rufar a caixa da bateria e, no final, sincronizava com o bumbo e com o prato. Depois, ao tocar com a banda, jogava as baquetas para o ar e as apanhava sem perder o ritmo. No meio da música, fazia solo de bateria, um pequeno show à parte. Meu pai era uma figura. Até hoje eu sinto a falta dele. Contou um médico, na rede de computadores, ter ouvido de uma menina a seguinte definição: “saudade é o amor que fica” (pela pessoa que partiu).

Nas tardes de verão, minhas irmãs e eu brincávamos com as crianças vizinhas no meio da rua. Em casa, brincávamos de missa. Eu era o padre. As fiéis eram a minha irmã mais velha e Rosemay, vizinha, neta da matriarca da padaria (os meninos não topavam a brincadeira). Eu seguia todos os passos da missa o que impacientava as fiéis. Resolvi ser coroinha. Fui à igreja do rosário e pedi ao padre para atuar. Tipo alemão, com olhos cinzentos e olhar metálico, o padre consentiu friamente. Atuei com alegria e fervor no peito. Atuação única. Nenhum dos coroinhas me dirigiu a palavra; olhavam-me de cima, todos exibindo padrão de vida superior ao meu. Não voltei mais. As aulas de catecismo, dois anos antes, preparatórias à primeira comunhão, eram dadas no lúgubre sótão da catedral, por uma jovem sem didática. Verdadeiro suplício. Abandonei o recinto. Mamãe obrigou-me a voltar. Concluí o catecismo sem entender coisa alguma. Primeira comunhão de terno branco, calça curta, rosário em contas brancas e pingente de cruz prateada. Eu adorava aquele rosário; não sei que fim levou.

Meu irmão, eu e os amigos, jogávamos bolinha de gude e tomávamos banho nos rios. Ao voltarmos, entrávamos na lenha, eu e meu irmão, por desobedecermos a proibição decretada por mamãe. Nós não sabíamos como ela descobria. Já adulto, lhe fiz a pergunta. Resposta: pela cor cinzenta da pele, marca da água arenosa do rio. E nós não notávamos! Um dia, o grupo de meninos da parte alta da rua desafiou o nosso. Marcamos o duelo. Chefiados pelo italiano Vicente Franceschini, o mais forte do nosso grupo, digladiamos com os desafiantes. O pau comeu solto. Ninguém saiu ferido gravemente. Todos se diziam vitoriosos.

Antes dessa memorável batalha, estava eu no pátio da Escola de Aplicação com meu amigo Luciano, quando os nossos irmãos mais velhos começaram a discutir qual de nós dois brigava melhor. Atiçaram um contra o outro. Entramos em luta corporal. Luciano, ligeiro, forte na pegada, me derrubou; eu o trouxe comigo na queda, agarrado pelo avental; tão logo minhas costas tocaram o chão, virei o corpo e montei sobre ele. Recusei-me a socá-lo e me levantei zangado com o meu irmão por ter provocado a luta com o meu amigo. Levei bronca da minha mãe seguida de algumas varadas por ter chegado com o avental sujo. Segundo contava a minha avó materna, a vara de marmelo era abençoada, pois com ela Maria esquentava o lombo de Jesus quando, menino, aprontava alguma travessura. Por isso, minha avó educara os filhos servindo-se daquela vara. Mamãe seguiu-lhe o exemplo.

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