terça-feira, 19 de maio de 2009

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - V

Ficamos amontoados na casa dos meus avôs maternos por um ano: papai, mamãe e os quatro filhos, todos em um quarto só (Tcheco 13 anos, eu 11, Anunciada 7 e Arlete 5). A minha irmã mais velha (Adília, 15 anos) e a minha tia solteira dormiam na sala ou no quarto dos meus avôs. A casa era parede/meia com a dos meus tios, proprietários do imóvel, provida de água encanada, rede de esgoto e luz elétrica. Localizava-se na Rua Brasílio Itiberê, no Rebouças. Papai ia a pé à oficina da rede ferroviária, a menos de um quilômetro. Eu, também, ia a pé ao grupo escolar Xavier da Silva, onde tudo era novidade: arquitetura, instalações, professoras, alunos e modo de falar. Essa escola situava-se na esquina das avenidas Floriano Peixoto e Silva Jardim (jornalista republicano do século XIX, que morreu ao visitar Pompéia, caindo na cratera do Vesúvio). Ico, um ano mais novo do que eu, filho da vizinha de vovó, ganhara uma bicicleta vistosa, vermelha; nela aprendi a andar. Na Rua Engenheiros Rebouças (irmãos construtores do trecho serrano da ferrovia Curitiba-Paranaguá) ele e eu revezávamos: duas ou três voltas cada um. Consegui a minha primeira bicicleta quatro anos mais tarde.

Terminado o curso primário em Curitiba, deixamos a casa dos meus avôs e nos mudamos para um bairro distante. A casa tinha quatro cômodos: cozinha, sala e dois quartos. Não havia luz elétrica, água encanada, rede de esgoto, nem ruas calçadas. Pisar no barro e saltar poças de água constantemente era experiência nova. À noite, acendíamos lampião e velas, coisas com as quais não estávamos acostumados. Depois do jantar, em que se aproveitavam as sobras do almoço, conversávamos antes de dormir. Quando os operários da companhia de força e luz fincaram os postes e estenderam a rede elétrica, o dia para nós foi de festa. Voltamos a escutar rádio: noticiário (repórter Esso), novelas (o direito de nascer, o sheik de agadir), humorismo (PRK 30), musicais (Francisco Alves, o rei da voz, Orlando Silva, o cantor das multidões). Quando Chico Alves morreu, foi uma choradeira coletiva. No acervo da Rádio Nacional, o disco com a música Adeus encimava a pilha, segundo informou a Revista do Rádio. A comoção foi geral no país. Já havíamos sofrido com a perda da copa do mundo de futebol de 1950. Poucas seleções a disputaram, pois a Europa ainda juntava os cacos da segunda guerra mundial. A seleção brasileira tinha um elenco notável; contava com a incrível habilidade de Ademir, o petardo de Jair e a maestria de Zizinho. Os brasileiros não esperavam o desastre na partida final. A nação ficou consternada. Depois, veio o suicídio de Vargas (1954). Nova comoção nacional. Papai ficou triste, pois admirava o presidente. Embora Graciliano Ramos tivesse escrito que Getúlio era um títere nas mãos dos militares, os trabalhadores assim não pensavam. Meu pai era um deles. Tal como acontecera nos anos 40, os EUA pressionavam para que Getúlio deixasse o governo. O setor industrial e o governo daquele país discordavam da política nacionalista de Getúlio em virtude da qual perderiam fatia do mercado do aço, dos minérios e do petróleo.

Colocávamos em lata grande e barrica a água trazida em baldes do poço perfurado no terreno vizinho (que também pertencia ao locador). O banho era tomado em bacia grande. Certa vez, por mera curiosidade, espiei pela fresta da porta, a minha mãe se depilar (dizíamos raspar os pelos do corpo). Ela notou: “Vá pra fora menino”. Saí de fininho. A minha curiosidade centrava-se na técnica de depilar, sem qualquer conotação freudiana. A latrina, apelidada de “casinha”, construída de madeira e telhado, ficava no quintal. Quando a fossa enchia, cavávamos outra; com a terra desta, cobríamos a anterior. Meu pai construiu paiol e forno à lenha. O paiol servia de depósito e de oficina. Ali meu pai montou a bancada de madeira, fixou o torno de ferro e colocou as demais ferramentas. No forno, a mãe assava o pão. Os bolos, manjares e mingau de maisena com capa cremosa, freqüentes na cidade natal, ficaram na saudade. A precariedade dos recursos e das instalações não permitia esse luxo. O óleo de rícino e o óleo de fígado de bacalhau não deixaram saudade. Já o biotônico Fontoura era bem aceito. Mamãe se esfalfava na tina de lavar roupa e a transitar pelo corredor, a céu aberto, até o poço. A alça do balde era presa à ponta de uma corda enrolada em um cilindro de madeira provido de manivela acionada por nossa força muscular. O cilindro situava-se na linha mediana acima da boca do poço. Peça de madeira fixada em cada lado da boca do poço sustentava o cilindro e a trava da manivela.

Ir ao colégio implicava em caminhada longa. Por economia, dispensávamos o ônibus. Isto durou quase todo o curso ginasial. Na volta da escola onde eu apanhava minha irmã (grupo escolar professor Brandão) passávamos em frente a uma casa grande, de alvenaria, com garagem, muro baixo feito de pedras, atrás do qual se via grama cortada e jardim bem cuidado. Ali se postavam três meninos robustos (gordinhos, talvez) bem vestidos e calçados, a zombar de nós. Certo dia, perdi a paciência e os chamei para briga; que viesse um de cada vez. Eles toparam. Solicitei ao Valdo, garoto amigo e vizinho, que acompanhasse Anunciada (minha irmã) e aguardasse na esquina. Derrubei e soquei os dois primeiros. O terceiro desistiu. Nunca mais nos provocaram. Passados uns dias, eu voltava do armazém com as compras encomendadas por minha mãe, quando avistei na parte alta do morro quatro garotos conhecidos. Ao me aproximar, eles tomaram atitude ameaçadora. Os dois maiores seguravam paus cortados de árvore. Perguntei o que era aquilo. “Queremos ver se você é bom de briga como estão dizendo por aí” – um deles respondeu. Negociei com eles a entrega das compras à minha mãe e a volta ao local para acertarmos aquele assunto. Eles queriam partir para a briga naquele instante. Consegui convencê-los, dando-lhes a minha palavra de honra (na época, isto ainda valia, mesmo entre jovens). Depositei as compras na cozinha, entrei no porão, escolhi um pedaço de madeira que pudesse empunhar e fui ao encontro. “Aonde vai você, menino?” A mãe estranhou aquele entra e sai. “Vou levar essa madeira para os meus amigos e já volto”. Imaginei que seria atacado pelos dois armados de paus; os outros dois fariam o arremate com socos e chutes. Perguntei se eles atacariam juntos ou um de cada vez. Olhando o pedaço de madeira na minha mão, um porrete se comparado com os paus que eles seguravam, responderam: “Você disse que só deixaria as compras e voltava”. “Sim, mas eu não disse que voltaria de mãos vazias” respondi e perguntei “de onde essa idéia de jerico?”. Menos agressivos, explicaram: Valdo lhes contara sobre a minha briga com os meninos e eles resolveram tirar a prova.

Acalmados os ânimos, desistiram de testar as minhas habilidades guerreiras. Voltamos à camaradagem, a descer o morro com carrinhos de quatro rodas e a empinar papagaio, também conhecido, em outros rincões, como raia e pipa. Desprovido de rede elétrica e sem construção alguma (ainda não havia favela em Curitiba) o morro permitia liberdade ao vôo. Com paina ou taquara, papel colorido e fio de costurar roupa, cola, alfinete e tesoura, fabricávamos o papagaio e acrescentávamos um rabo de pano com peso, largura e comprimento adequados para evitar cambalhotas. O fio de empinar tinha de ser forte para não arrebentar ante a resistência do papagaio ao vento. Passávamos o fio do carretel para a carretilha feita para facilitar e apressar o recolhimento do papagaio empinado. Na mudança dos tempos, empinar papagaio ganhou outro significado: assinar nota promissória em banco.


Adelmar, apelidado de Adi, era jovem alfaiate; Wilson, comerciário e sanfoneiro; ambos nossos vizinhos e pretendentes ao namoro com minha irmã mais velha. Adi passava em frente à nossa casa com destino à casa do alfaiate onde trabalhava. Parava para conversar e flertar. Elogiada a brancura dos seus dentes, passou a escová-los debruçado na janela da sua casa, de onde podíamos vê-lo segurando enorme caneca de lata para mostrar que só usava escova e água. Wilson vinha em final de semana, à noite, com o seu acordeom, fazer serenata para minha irmã. Dê-lhe “assum preto” e outras músicas de Luiz Gonzaga, que Wilson tocava e cantava. Adília não namorou nenhum dos dois.



Tragédia no campo de futebol. Osmar, valentão, maior de 18 anos, irmão de Osmir, amigo da minha idade (15 anos), em terreno baldio que usávamos como campo de futebol, surrou Lourenço, também maior de 18 anos, na frente de todos, por motivo de somenos importância. O rapaz foi para casa, retornou armado de faca e lançou o repto: “Bate de novo se for homem”. Osmar avançou e levou facada mortal. O júri absolveu Lourenço. Antes do julgamento, a mãe dele passara nas casas do bairro com abaixo-assinado para comprovar os bons antecedentes do filho. Ao sair da prisão, Lourenço exibia dureza na fisionomia, amadurecimento precoce. Cumprimentamo-nos perto da minha casa, com um silencioso e breve movimento de cabeça. Ele nunca mais voltou a reunir conosco.

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