terça-feira, 19 de maio de 2009

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - II

Os fundadores discordavam sobre o nome que iriam dar à cidade. Passaram a incumbência a um pássaro. Observaram o vôo e eis que ele pousa na ponta mais grossa de uma árvore. Até hoje, não sei se isto é lenda ou se é história. O certo é que na vitoriosa revolução de 1930, Getulio Vargas, vindo do Rio Grande do Sul com destino ao Rio de Janeiro, onde assumiria o governo do Brasil, pousou na cidade de Ponta-Grossa, no Estado do Paraná, onde instalou o comando provisório. O entroncamento ferroviário localizado na cidade constituía um ponto estratégico favorável aos propósitos de Vargas. O período de 1931 a 1945 fluiu sob os auspícios do trabalhismo e do personalismo de Getúlio Vargas, apesar do magnetismo pessoal de Luiz Carlos Prestes à esquerda do espectro político e do fascismo de Plínio Salgado à direita. O governo era para o povo, mas não pelo povo. Aproveitando-se da tensão entre esquerda e direita, Vargas outorga uma carta constitucional em 1937, nos moldes da polonesa de 1935, cujos preceitos favorecem os seus propósitos e asseguram a sua permanência no governo até 1945, quando perde o apoio dos militares subalternos aos interesses dos EUA. Nesse período, os Estados eram governados por interventores, gente da confiança do presidente. Houve prisões ilegais, torturas, exílios e mortes resultantes da ação da polícia motivada politicamente. O livro “Memórias do Cárcere”, de Graciliano Ramos, retrata essa realidade por ele vivenciada. A educação e a cultura receberam especial atenção. Nas escolas, os currículos consideravam a formação moral, profissional e cívica do aluno. Hinos eram cantados e bandeiras hasteadas. A economia brasileira, apesar dos efeitos da crise do capitalismo gerada nos EUA em 1929, soergueu-se, com a criação do Departamento Nacional do Café, dos institutos do álcool, do pinho e do mate, do Conselho Nacional do Petróleo, embrião da Petrobrás, da Companhia Siderúrgica Nacional e da Companhia Vale do Rio Doce. Apesar de adotada nova moeda (cruzeiro) o povo ainda falava em réis e tostões. Durante a guerra mundial (1939/1945), o governo brasileiro exportou material estratégico para os EUA (borracha e minérios) e permitiu a instalação de bases aéreas estadunidenses em Belém, Natal e Recife. No terreno social, o governo Vargas criou os institutos de aposentadorias e pensões dos marítimos, dos industriários, dos comerciários, dos bancários, dos estivadores e dos trabalhadores em trapiches e armazéns de café, bem como, elaborou e promulgou a legislação trabalhista. Incentivou a formação de cooperativas dos trabalhadores e construiu hospitais públicos. Havia contentamento popular. O descontentamento sediava-se na camada alta e em parte da camada média da sociedade.

João, ferroviário, artífice primoroso, e Maria, esposa incansável na cozinha, no tanque de lavar, no ferro de passar, na limpeza da casa, no parir e no cuidar da prole, sonhavam com uma vida melhor para a família. Sonhar atenua a dureza da vida. O regime de casamento era o da comunhão de bens, porém não existia patrimônio, salvo o moral. Matriculavam os filhos na escola pública à medida que atingiam a idade mínima estabelecida em lei. Avental branco e sapatos limpos guardados na volta da escola. Nas demais horas do dia, os meninos andavam descalços. Fora da escola, sapatos só aos domingos para ir à missa pela manhã e à sessão de cinema depois do almoço, se dinheiro houvesse. Quando comungava na missa, eu sentia certo constrangimento posterior, nos passos em direção ao cinema. Parecia que eu estava pecando. As meias dos outros meninos colavam à perna, enquanto as do Tcheco (apelido do meu irmão, dado por meu avô paterno) e as minhas desbordavam e escorregavam para dentro do sapato ao caminhar. Aquilo me incomodava e intrigava.

Meninos e meninas com menos de 7 anos de idade eram matriculados no jardim da infância da Escola de Aplicação. No baile infantil de fim de ano, meu rival, o alemãozinho Fritz, aprendiz de violinista, se adiantara e tirara para dançar a minha adorada Marisa. Bailava com ela, olhava para mim e ria com ar de triunfo e zombaria. Coração apertado e doído, eu comecei a chorar, morto de ciúme. Minha irmã mais velha (Adília) e a professora tentavam me consolar e me indicavam Sônia, disposta a dançar comigo. Resisti. Só Marisa importava. O olhar meigo de Sônia, entretanto, acabou com a minha teimosia. Dançamos e eu parei de chorar por quem não gostava de mim. Ingressamos no primeiro ano da Escola de Aplicação. Punia-se conversa em aula. O castigo era o menino sentar ao lado de menina. Fui castigado e posto ao lado de Sônia. Olhei para Marisa. Ela me dirigia o olhar. Nada senti. Estranhei esse vazio. Eu gostaria que o meu olhar fosse de perdão ou de carinho, mas o amoroso coração não suportara o golpe mortal. Eu e Sônia entabulamos conversa. A professora desistiu do castigo, mas nos deixou juntos. Incongruência! Chamava-se Irene. Dela ganhei o livro Pinóquio, colorido, com texto em letras grandes, gravuras e dedicatória, como prêmio pelo primeiro lugar nos exames de fim de ano. Mostrei-o aos meus filhos, passados muitos anos. Em uma das mudanças de domicílio, 40 anos depois, o livro se extraviou. Lamentei a perda da prova documental de um dos pedaços marcantes da minha vida.

A professora do 3º ano primário era jovem, bonita e bem feita de corpo. Foi eleita rainha do carnaval. Coroada, desfilou pela Rua XV de Novembro em um carro alegórico, sentada em trono bem alto, impávida, semblante altivo, bela e soberana. Na sala de aula, mostrava-se antipática. Eu a olhava, embevecido, em percurso de ida e volta do rosto para os seios, cintura e tornozelos. Parece que ela tinha imã nos seios, tal a força com que atraíam o meu olhar. Quando ela escrevia no quadro negro, os meus olhos, ao invés de acompanharem a escrita, fixavam-se nos quadris, absorvidos naquele movimento oscilatório e gracioso. Eu acho que ela percebia o foco da minha atenção, pois se virava e me dirigia um olhar zangado. Ela não entendia que a minha observação era puramente estética, sem conotação sensual ou efeito fisiológico. Afinal, eu era uma criança de 10 anos que deixara de se nutrir no seio materno com menos de 1 ano de idade!

O conservatório de música ficava a uma quadra da nossa casa. Minha irmã mais velha tinha aulas gratuitas de piano. Aprendia rápido e gostava de música. Tinha vocação e talento. O colégio Regente Feijó, onde ela estudava, ficava logo adiante, próximo da praça em que se localizava a Igreja do Rosário. A Escola de Aplicação situava-se duas quadras acima da praça. Tudo perto da nossa casa. A janela da sala de aula do meu irmão ficava rente à calçada. Eu ia até lá e pedia a tábua de trabalho manual. Autorizado pela professora, o meu irmão me atendia. No parapeito da janela, com o martelinho e o prego, eu começava a furar a tábua seguindo as linhas do desenho. Depois a devolvia e retornava para casa. Passei a freqüentar o jardim da infância. Eu gostava da escola, dos amigos e não discriminava as meninas, porém elas eram esquivas. A partir daquela festa de fim de ano do jardim de infância, Sônia foi exceção, eis que nos sentíamos bem um na companhia do outro.

O curso primário foi concluído em Curitiba, no grupo escolar Xavier da Silva. Fui aprovado no exame de admissão ao ginásio. Elogiado pelos adultos, passei a ser visto de um modo especial pelos irmãos e primos. Não gostei. Jurei a mim mesmo nunca mais disputar o primeiro lugar nos exames escolares. Cumpri o juramento. Situei-me sempre entre os extremos. Aprovação e classificação média me bastavam.

Equívoco semelhante ao da minha professora do 3º ano primário ocorreria em Curitiba, um ano depois, na sala da casa da minha avó. Elogiei o corpo da minha jovem tia solteira, de nome Leocádia. O vestido lhe caía bem. A então vigente regra da boa educação vedava esse tipo de manifestação. Gerei um pandemônio. Sob algaravia da minha avó, levei cascudos da minha mãe. Elas maliciaram um singelo comentário, fruto de uma observação estética.

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