sexta-feira, 5 de junho de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - VIII

Antes de ingressar no exército, nova mudança: da casa da Rua Beaurepaire, no Hugo Lange, para a casa da Rua Paraguaçu, no Juvevê, bairro mais próximo do centro da cidade, com água encanada, luz elétrica e rede de esgoto. Depois de ingressar no exército e obter a graduação de cabo, equipei a nossa casa com fogão a gás, geladeira e um faqueiro de lambuja, tudo adquirido em prestações mensais. O dono da loja me concedeu crédito e não se arrependeu. O fogão a lenha foi aposentado. Sofri com a marcha militar: mochila, mosquetão (que aprendi a desmontar e montar), cantil, coturno. Os plantões de sentinela no quartel, principalmente no inverno, eram bem desagradáveis. Permaneci três anos na caserna. O soldo era bom para o meu padrão de vida. Após receber o primeiro soldo de cabo do exército exibi o dinheiro à minha mãe e joguei as notas para o alto. Foi uma festa. Cerca de 2/3 ficava para ela. Papai comentou: “Trabalho há 30 anos como artífice e não ganho essa quantia por mês”. O sistema bancário ainda não era utilizado para pagamento de salários, vencimentos e soldos. A fonte pagadora remunerava em notas e moedas. De um capitão comprei a coleção de obras primas da literatura mundial que só li depois de alguns anos e ainda releio esporadicamente.

O coronel Breno Perneta me ofereceu a chance de ser o motorista do jipe que o conduzia. Era a primeira vez que eu dispunha de um veículo para dirigir regular e constantemente. Prestei exames e obtive a carteira profissional de habilitação. Diferentemente da carteira de amador, para obter a profissional o motorista tinha de conhecer mecânica de automóvel. Aprendi a parte prática com o Tcheco, meu irmão, mecânico exímio; a parte teórica eu aprendi com meu professor de Física, no curso científico, que nos deu aula completa sobre motor de combustão. Por mais de ano, até a baixa do exército, dirigi o jipe. Certa vez, quase causei acidente grave ao passar entre um ônibus que descia e um caminhão que subia a Avenida João Gualberto, em frente ao Country Club. O gancho da carroceria do caminhão enroscou na armação de cano da tolda do jipe arrancando-a com violência. A armação passou perto do rosto dos dois oficiais sentados no banco traseiro. O susto foi enorme. À nossa frente, o coronel Breno viajava com o seu carro particular. No dia seguinte, ele me disse: “Falei para mim mesmo: quer ver como o cabo Lima vai querer passar entre o ônibus e o caminhão?”.

Na casa do Juvevê, duas irmãs casaram. A caçula ficou solteira. Aparelho de televisão só entrou em nossa casa por volta de 1962/3, adquirido com o pecúlio relativo à morte do meu pai. Ali morreram papai e mamãe, com menos de 55 anos de idade. Dali eu saí para morar em Pato Branco, como juiz substituto e Sandra para morar em Joinville/SC e cursar Educação Física. Demoliram a casa. No terreno, construíram um edifício de apartamentos.

Duas casas depois da nossa morava Zezinho com seu acordeom. Na mesma quadra, porém na rua principal (Augusto Stresser) morava Tinho com seu saxofone. Formado o trio, tocávamos em festas de aniversário e casamento. Tinho namorava e casou com a filha mais velha de Abdo, libanês dono de uma mercearia próxima do Hospital São Lucas. Eu mantive breve namoro com a outra filha de Abdo. Zezinho namorava Luci, irmã do Ladiér. Oriundo de Corupá/SC, logo que chegou a Curitiba Ladiér se empregou na firma importadora em que eu trabalhava. Vizinha à casa dele, morava Lígia Maria. Ela se enamorou do seresteiro. O pai dela era contra o namoro. A filha era muito nova e eu um boêmio sem eira nem beira. A cada final de ano a companhia de seguros onde Ladiér trabalhava reunia os funcionários em um jantar no bairro de Santa Felicidade. Zezinho e eu éramos convidados. Alegrávamos a reunião com música e cantoria. Bebíamos vinho da colônia italiana e voltávamos no calhambeque do meu cunhado Carlito. Meu irmão, meu cunhado e respectivas famílias utilizavam o calhambeque para ir às pescarias.

Zezinho e eu passamos bocados difíceis com a ximbica (apelido que meu pai dera ao calhambeque) na viagem a Bocaiúva do Sul, cidade próxima de Curitiba. Em dois trechos de subida íngreme ela se recusou a ir até o fim. O primeiro trecho foi na estrada interna. Ligia Maria, Ladiér e Heloísa, noiva dele, nos acompanhavam. Encostei a ximbica no barranco para não cair de considerável altura. Naquela estrada de terra, estreita, com todos ajudando, conseguimos retornar à casa em que estávamos hospedados e que pertencia a um político da região. Além do susto, ficamos estropiados. O segundo trecho foi no regresso a Curitiba, na estrada principal. Só eu e Zezinho no carro. Quase no final do aclive a ximbica resolveu empacar. Haja freio e barranco enquanto a danada retrocedia. A palidez de Zezinho me impressionou. Atendida e descansada, com carburador limpo e desafogado, água no radiador, gasolina no tanque, a ximbica terminou de subir a ladeira e continuou viagem. Um cheiro de esgoto nos acompanhava. Zezinho olhava a paisagem.

Apesar do anacronismo, fiz serenatas em bairros curitibanos e praias paranaenses. Nos anos 60 do século XX, as músicas podiam ser ouvidas pelo rádio e em discos, cuja indústria se expandira. Radiolas estavam na moda, móveis bonitos fabricados para acolher o conjunto de rádio e toca-discos, com prateleiras internas para o estoque de discos. Os artistas podiam ser vistos e ouvidos na televisão que começava a se vulgarizar e a entrar nos lares de famílias remediadas. A novidade musical vinha por meios eletrônicos. Aproximava-se o ocaso das grandes orquestras (Glen Miller, Javier Cugat, Ray Connif, Românticos de Cuba, Severino Araujo), que passaram a sobreviver nos discos, pois os bailes foram diminuindo até se reduzirem aos de formatura. A juventude preferia festinhas musicadas com long-plays. Os moços fumavam, tomavam cuba-libre, gim-tônica e hi-fi. As moças consumiam refrigerantes.

Indiferentes ao progresso, as serestas se multiplicaram nas casas de amigos e nas rodas de bar. Uma das casas, próxima à Praça Carlos Gomes, era a de João Olavo e Marisa, irmãos que gostavam de tocar violão e cantar. Fazíamos périplo pelas casas das primas deles, em pontos diferentes da cidade: Praça do Expedicionário, a do deputado João Ribeiro; Bacacheri, a do proprietário de tradicional farmácia curitibana; Mercês, a do proprietário de imobiliária. Reuniões agradáveis aos sábados ou domingos, algumas vespertinas, outras noturnas. Marisa tentou aproximar o meu grupo de outro em determinada reunião na casa do deputado. Não deu certo. Faltou o elo simpático. Os componentes do outro grupo eram do estrato alto da sociedade. Tribos urbanas não se misturam, ainda mais com desnível econômico.

Zé Macedo, colega da faculdade de direito, gostava da seresta e de cantar. Ele e eu cantamos no programa de TV apresentado pelo saudoso Tônio Luna. Com os colegas da faculdade fiz serestas até na zona do meretrício. O futuro meritíssimo cantando para as meretrizes na sala principal do lupanar. Meretríssimo violeiro cantador. Albino, membro conspícuo da confraria, contou que ouvia a minha voz, lá do cômodo em que ele cumpria missão evangelizadora, na catequese de uma ovelha desgarrada, em pleno ato de contrição. Oh tempora! Oh mores!

Nas serestas e serenatas raramente havia confusão. Certa noite, porém, fora do bar, na esquina da Avenida Presidente Faria, defronte à Universidade Federal, o pau comeu entre meus amigos Hildebrando e Horácio de um lado e alguns freqüentadores, de outro. Sem nada perceber, eu tocava e cantava no interior do bar quando notei aquela correria com polícia chegando. Eu e outro colega entramos no camburão sob comando de um policial. A porta do camburão ficou aberta enquanto os policiais corriam para todos os lados perseguindo os briguentos. Com tal facilidade nós dois desembarcamos e andamos calmamente pela rua sem sermos molestados. Meu violão sumiu. Os gladiadores amanheceram na delegacia. Em outra ocasião, Hildebrando e Horácio me convidaram para ir à praia, no litoral paranaense, com três bailarinas da Caverna Curitibana. Essa boate localizava-se no subsolo do edifício do Clube Curitibano. Esse clube era freqüentado pela camada alta da sociedade. A camada menos alta da sociedade freqüentava a Caverna. Cada minuto de dança era registrado no taxímetro; na saída, a nota de consumo incluía os minutos dançados.

Recusei o convite apesar da insistência daqueles dois amigos. Meu pai não estava bem. No dia seguinte ele foi hospitalizado. Diante do seu estado, meu cunhado Delair e eu saímos a procura de lote no cemitério. No municipal não havia lote disponível. Rumamos para o da Água Verde. Havia dois lotes disponíveis, um ao lado do outro. Comprei os dois com o salário que ganhava na cervejaria. Ali foram sepultados meu pai, minha mãe, meu irmão, avós e tios. Quando a enfermeira desligou os aparelhos, levei um choque. Tia Alda, casada com Manoel, irmão mais velho da minha mãe, vendo o meu semblante transtornado, disse com voz meiga: “A enfermeira desligou porque o seu pai já não vive mais”. Profunda sensação de abandono tomou conta de mim. Ali estava o meu pai e eu não lhe sentia a presença. Vieram ao funeral, além dos parentes e amigos, representantes da cervejaria em que eu trabalhava. Entre eles, o chefe de escritório que muito me considerava. Baixo, cabelos brancos, curtos, rosto arredondado, feições germânicas, compleição forte, o senhor Bettinghausen dizia que, na fábrica, eu era o único a pronunciar corretamente o seu nome.

O irmão de Horácio me substituiu no passeio. Antes de chegar à praia, o carro despencou da ponte e afundou no rio Nhundiaquara. Uma das bailarinas morreu. Hildebrando e Horácio foram indiciados por homicídio culposo. Do acidente seguinte eu não escapei. Na parte montanhosa do litoral paranaense, entre o ancoradouro das balsas e a praia de Caiobá, Hildebrando, com novo automóvel, perde a direção e cai num despenhadeiro. O carro ficou todo arruinado. Ferimentos leves nos ocupantes. Na minha mão restou o pedaço superior do braço do violão com as cordas dependuradas; o resto se despedaçara.

Hildebrando e eu curtíamos uma boate no centro da cidade quando entra Horácio. Fui ao seu encontro convidá-lo para se reunir conosco. Halterofilista, alto, briguento, ele segura a lapela do meu paletó em atitude inamistosa. Fiquei atônito. “O que é isso?” perguntei. Enfezado ele respondeu: “Ainda vou te arrebentar a cara e a do teu amigo”. Na casa de Horácio fazíamos serestas, reunidos com a mãe e as irmãs dele, mais amigos, inclusive Hildebrando. Por isso, fiquei desnorteado e sem reação diante daquela atitude inesperada. Balbuciei alguma coisa e me retirei do local muito abalado. Passadas algumas semanas, veio a explicação pela voz de Hildebrando: o processo judicial sobre a morte da bailarina causara rompimento da amizade entre os dois. Horácio considerava inimigo quem tivesse amizade com Hildebrando. Fiquei fulo de raiva. Felizmente para mim (ou para ele) nunca mais os nossos caminhos se cruzaram. Halterofilista eu também era; a lutas corporais, me acostumara desde criança. Ele tinha 99% de chance para me derrubar, por ser mais alto e forte, porém eu contava com aquele 1% de chance que derrubou Hélio Gracie e que derrubaria Mike Tysson 30 anos depois.

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