terça-feira, 19 de maio de 2009

REMINISCÊNCIAS DE UM MAGISTRADO - IV

Em Ponta-Grossa, eu fazia compras miúdas para a matriarca da padaria (chamava-se Lúcia, o mesmo nome da minha avó materna) e para a esposa do “seu” Carnascialli. Recebia centavos de gratificação. Esta última censurava, fazendo careta, o fato de eu trazer o pacote de arroz preso sob a axila. “Será que ela não o cozinha?” indaguei a mim mesmo. Do monte de arroz sobre a mesa da cozinha, eu ajudava dona Lúcia a retirar os grãos escuros; o que restava era levado à panela. Com Glisson, filho mais novo de dona Lúcia, eu jogava bola e circulava nas dependências da padaria, em cujo terreno havia cavalos, arreios e charretes para entrega de pães e transporte de ração. Poucos veículos automotores circulavam na cidade: automóveis das famílias abastadas, caminhões e ônibus em número pequeno. Cavalos montados, carroças e charretes trafegavam pelas ruas. Os cascos ferrados dos cavalos escorregavam no calçamento. No furgão Chevrolet esverdeado, Glisson e eu acompanhávamos Rubens, irmão dele, nas visitas às vilas rurais. Rubens se mostrava feliz na direção do veículo novo. Os cestos com pães e bolachas deixavam um aroma agradável dentro do carro. Eu mirava os biscoitos de mel, porém não me atrevia a pedir ou a pegar; destinavam-se aos fregueses. Ademais, se eu começasse a pedir ou a pegar sem permissão, perderia os futuros passeios.

No mês de dezembro de cada ano, dona Lúcia me convidava para a chegada do Papai Noel. A forte batida na porta fazia Glisson chorar de medo. Meu coração acelerava. O velhinho entrava, os adultos comandavam a efusiva saudação, ele acenava, sentava-se e fazia recomendação de bom comportamento a cada criança enquanto distribuía os presentes. O meu era sempre o mesmo: barra de chocolate. Questionei: porque não brinquedo? Criança também capta sutilezas. Em minha casa, ganhávamos roupas e calçados; raramente um brinquedo, como bonecas para as meninas e bolas para os meninos. O Papai Noel visitava a casa do vizinho rico e não entrava na casa do pobre. A mente infantil concluiu: os brinquedos eram comprados; Papai Noel era de mentira. A memória fornece a lembrança: na missa, o padre dissera que Jesus era o aniversariante e que os presentes vieram alguns dias depois do nascimento pelas mãos de três reis magos. Raciocinei assim (criança também raciocina): Papai Noel faz o papel dos reis magos; o aniversariante é Jesus, mas como Jesus gostava das crianças, estas é que recebem presentes, desde que os pais tenham dinheiro para comprá-los. Nunca mais pedi presentes a esse Noel fajuto. Na maturidade, compreendi que os presentes dos magos eram coisas simbólicas: ouro do conhecimento, incenso da elevação espiritual e mirra dos mistérios da natureza.

Encontrei Glisson em Curitiba, na Rua Marechal Deodoro, por volta de 1956 ou 1957. Ele vestia a farda verde dos soldados do exército. A minha alegria no reencontro foi maior do que a dele; Glisson se mostrou sério e silente. As emoções do reencontro diferem de intensidade entre os protagonistas. Nem todos se encontram com o mesmo estado de espírito, nem as vicissitudes são assimiladas de igual modo. Glisson morreu cerca de três anos depois, em um dos rios da nossa cidade natal. Fora banhar-se com a namorada, entrara no rio após a refeição e morreu de congestão. Não souberam informar se a namorada participara da refeição.

Mishika, irmão de Glisson, Jofre, primo de mamãe e outros expedicionários retornaram da Itália. A cidade ficou em festa. A vitória mais cantada era a da tomada de Monte Castelo pelos soldados brasileiros. Esse território italiano estava dominado pelos soldados alemães. Oswald, pai de Glisson, se alegrava com as vitórias de Hitler. Alcoolizado, provocador, as cantava à luz do dia, sob a nossa janela, na Rua Teodoro Rosas. Silenciou quando a situação se inverteu no cenário da guerra. Certa casa, na quadra do colégio das freiras, exibia cruzes suásticas na parte superior frontal e lateral. Enquanto o nazismo se expandia na Europa, os alemães da cidade manifestavam alegria e arrogância, certos de que iriam influir nos destinos do Brasil. Antes da guerra, a Alemanha fora a principal parceira do Brasil nos negócios internacionais. O governo brasileiro simpatizava com o nazismo e só aliou-se aos EUA em função de tratado internacional e em troca de ajuda à nossa indústria. Vargas extraiu essa ajuda a fórceps, o que irritou governantes e industriais estadunidenses. Mancomunados com políticos e professores universitários brasileiros, os agentes daquele país, sedentos de vingança, conspiraram para tirar Vargas do governo em 1945. O ressentimento deles quanto ao nacionalismo de Vargas aflorou, novamente, no episódio que culminou em suicídio (1954).

Aos 10 anos de idade, eu percorria as ruas de Ponta-Grossa, inclusive dos bairros mais afastados, a vender vassoura de piaçaba produzida pelo “seu” Carnascialli, sexagenário de rosto cavado, mascador de ervas, que morava na esquina da nossa rua. Ao oferecer o dinheiro ganho à minha mãe, ela afagava a minha cabeça e mandava guardá-lo. Com poupança superior a dois cruzeiros, convidei o meu irmão para tomar lanche na Leiteria Batavo, na Avenida Vicente Machado. O garçom, ar desconfiado, louro, cara de holandês, atendeu ao nosso pedido: uma garrafa de leite e dois sonhos. Eu sempre gostei de sonhos e de sonhar acordado. Comemos e bebemos tudo. Paguei com o meu dinheiro com enorme satisfação, como se transposto grande obstáculo. Minhas atividades foram acrescidas de outra: meu irmão e eu decidimos engraxar sapatos aos sábados no Ponto Azul, estação inicial de ônibus urbanos. O primeiro freguês, moço, todo pimpão para ir ao cinema, terno alinhado, camisa branca, gravata vermelha, sapatos pretos e meias brancas, puxa para cima a barra da calça e conversa com o amigo que o aguarda em pé enquanto executo a tarefa. Manchei a meia. Fulo de raiva, quase me bateu. O amigo pedia para ele se acalmar, apontava para mim e dizia: “É só uma criança”. Não me atrevi a cobrar. Os engraxates disputavam quem deixava os sapatos dos fregueses mais brilhosos. Primeiro tirávamos a poeira; depois, passávamos a graxa; a seguir, a escova. Então, usávamos duas tiras de pano, uma seca, outra molhada. Haja esfregar e estalar o pano. Os sapatos saíam brilhando. A renda era aplicada na aquisição de bilhetes de ingresso às sessões domingueiras do Cine Império. Assistíamos aos seriados (Tambores de Fu-Manchu, Flash Gordon, Charlie Chan), faroestes, comédias (O Gordo e o Magro), filmes de ação (Tarzan, Lanceiros da Índia). Quando sobrava troco, comprávamos picolé de duas cores. Às vezes, não sobrava nem para o pacote pequeno de pipoca. Na parte superior da cidade havia outro cinema que passava filmes para adultos da elite urbana.

Instado por minha mãe, papai pediu e obteve transferência para Curitiba. Viajamos de trem, aspirando fumaça, mamãe vomitando, o chefe passando com a cesta de guloseimas e nós a salivar. Eu gostava de ver a locomotiva nas curvas para o lado em que estava sentado. Isto me custava, às vezes, fuligem nos olhos. Tantas curvas me intrigavam (já adulto, soube que isso rendia mais dinheiro às firmas construtoras; quanto maior a quilometragem de trilhos assentados, maior o ganho). Acompanhava a altura da fumaça; observava o movimento conjunto das rodas ligadas por uma barra de ferro; admirava a força para puxar todos aqueles vagões. Lá fora, campos e fazendas, plantações e gado na planície e nos morros. Nas estações, desciam e subiam passageiros e bagagens. Depois de uma eternidade, chegamos a Curitiba.

Aquela não fora a primeira viagem de trem. Esporadicamente, em férias escolares, íamos a Curitiba visitar os avôs maternos. Entretanto, aquela fora a última viagem em família. Depois disso, excursionamos à Lapa (não a boêmia carioca, mas a paranaense histórica). Viajamos de ônibus fretado, com avós, pais, tios, irmãos, primos, compadres, comadres, frango com farofa, engradado de cerveja e gasosa. Visitamos a gruta do monge. Na verdade, tratava-se de homem sem filiação a ordem religiosa, que se intitulava monge, à moda de Antonio Conselheiro. A sua liderança de teor místico encontrou terreno fértil na disputa territorial entre o Paraná e Santa Catarina, levada ao Supremo Tribunal Federal em 1901, cuja área se intitulou Região do Contestado. O Paraná não se conformou com a decisão do tribunal. O clima de beligerância permaneceu. Disto se aproveitaram políticos e grileiros para reivindicar propriedade sobre as glebas. Contra a ameaça de expulsão, ferroviários desempregados e camponeses se uniram sob a chefia de José Maria, o monge, para defender aquelas terras sobre as quais tinham a posse. O governo do Paraná manda expedição militar contra os rebeldes. Na refrega, o chefe militar João Gualberto e o chefe rebelde José Maria perecem (1912). O governo federal intervém com milhares de soldados. Os governadores do Paraná (Afonso Carmargo) e de Santa Catarina (Filipe Schmidt) firmam acordo, sob a mediação do presidente Venceslau Brás, colocando fim ao conflito (1916). O governo prestou homenagem a João Gualberto, ao batizar avenida, com o seu nome, em Curitiba. O povo homenageava José Maria visitando a gruta em que o beato morava, acendendo velas e rezando.

Segundo a lenda, quem tivesse fé enxergaria o monge José Maria. A parte da frente da gruta era estreita na base e larga do meio para cima; parecia uma janela, diante da qual se aglomeravam adultos e crianças. Papai surucou pela parte de trás da gruta, às escondidas, aproveitando-se da distração daquele pessoal. Vovó, espírita kardecista, benzeu-se ao ver o monge no fundo da gruta. Emocionada, acendeu vela de metro e meio de altura enquanto rezava. Creio que mamãe nunca passou à vovó, a informação segredada por meu pai. Outra excursão, agora a São José dos Pinhais. O mesmo grupo, o mesmo cardápio. Visitamos o aeroporto e fizemos piquenique no bosque. Próximo dali, com esposa e filhos, morava Aristides, apelidado Nagib, cunhado da minha tia. A filha dele, Jussara, com 2 anos de idade, cabelos louros, casou comigo 20 anos depois. O cabelo ficara castanho, da mesma cor dos seus olhos bonitos.

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