segunda-feira, 10 de março de 2008

Célula-tronco

A utilização de células-tronco obtidas de embriões humanos fertilizados in vitro foi amplamente discutida nos trâmites do projeto de lei no Congresso Nacional e da ação de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal. Lá e cá, foram ouvidas pessoas representativas no campo da ciência e da religião. O assunto circulou na rede de computadores, em jornais e emissoras de TV. A opinião do povo foi objeto de pesquisa. O dogma religioso, o conceito filosófico, a explicação científica e a opinião pública, embora não sejam determinantes, podem orientar o legislador na solução normativa do problema social. Em tese, a necessidade geral, a utilidade pública e o interesse social são os critérios determinantes na escolha da variável que se tornará lei. No Brasil, o interesse particular, argentário e politiqueiro tem sido o fator determinante nos últimos 13 anos. Apesar disso, a solução normativa pode contrariar interesses e opiniões setoriais a fim de cumprir a missão de pacificar o entendimento sobre questões controvertidas

Nessa toada, o legislador permitiu aquela utilização para fins de pesquisa e terapia, desde que os embriões sejam inviáveis ou estejam congelados por 3 anos ou mais, e que haja consentimento dos genitores. A lei (11.105/2005) considera atividade de pesquisa a realizada em laboratório como parte do processo de: (i) obtenção de organismo geneticamente modificável (ii) avaliação da biossegurança desse tipo de organismo. O Procurador-Geral da República, autor da ação judicial, alega violação da dignidade da pessoa humana e da garantia de inviolabilidade do direito à vida. O caráter teratológico da ação recomendava o indeferimento de plano. Inequívoca e indisfarçável a sua clerical e obscurantista inspiração. Se o STF não é academia de ciências, como disse a juíza-presidente, também não é tribunal eclesiástico. A veste constitucional da ação encobre o verdadeiro desiderato: impor o dogma católico à nação. Isto não se compadece com a liberdade de consciência e de crença (CF 5º, VI). O Brasil é uma república laica e democrática. Os brasileiros professam diferentes credos. Os valores comuns a todos os cidadãos devem prevalecer sobre os setoriais. A expressão “ética da responsabilidade”, com a qual se procura condenar a pesquisa científica, encerra um pleonasmo, apesar da autoridade de Max Weber. Responsabilidade é categoria própria de ciência normativa. Da norma deriva a responsabilidade dos seus destinatários, cuja atividade está submetida a controle ético e jurídico.

A destacada referência à vida humana nas diretrizes traçadas pela citada lei, tem remota origem religiosa. Supõe o ser humano criado diretamente por Deus. Inclui-lo no reino animal seria rebaixa-lo. Para a ciência, a espécie humana resultou de um processo evolutivo no reino animal. O ser humano é um animal racional, um animal político, segundo Aristóteles. No intuito de atenuar a servidão humana, o legislador cria um fundamento moral para distinguir a vida humana da vida animal: a dignidade da pessoa humana. Sem o reconhecimento desse princípio, o ser humano pode ser tratado como cachorro, como acontece com brasileiros em país estrangeiro ou nas delegacias de polícia e favelas.

Na sessão de julgamento (05/03/2008), atuaram o Procurador-Geral e os advogados do Legislativo, do Executivo e de instituições civis e religiosas. Após o voto do juiz-relator, o menos antigo dos juízes pediu vista dos autos. Devolvê-los-á até a segunda sessão ordinária subseqüente, consoante regimento interno (art.134). A juíza-presidente concordou com a decisão do relator de que não houve ofensa à Constituição e antecipou o voto. A inviolabilidade do direito à vida é assegurada aos brasileiros, ou seja, a quem nasce com vida (CF 5º,14; CC 2º). O nascituro não é sujeito de direito. Falta-lhe personalidade civil. O dispositivo legal impugnado refere-se ao embrião humano fertilizado in vitro e congelado, diferente, pois, do nascituro. Não tem cabimento equiparar ao aborto, a extração de células de tal embrião. Há diferença abissal entre o cilindro do laboratório e o útero da mulher. A tipificação do aborto na lei penal mostra essa evidência. No útero, o zigoto, o embrião e o feto são fases morfodinâmicas da gravidez. O resultado final desse processo é o ser humano, quando sai do ventre materno, respira pela primeira vez, desliga-se do cordão umbilical e entra no mundo natural e social com vida própria. O legislador brasileiro abstraiu aspectos religiosos e científicos da controvérsia. Para fins jurídicos, colocou o termo inicial da existência humana no nascimento com vida. Tollitur quaestio.

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