domingo, 9 de novembro de 2008

DISCÓRDIA ENTRE OS PODERES DA REPÚBLICA
Antonio Sebastião de Lima

O presidente do Senado acusa o Supremo Tribunal Federal de exorbitância. No que tange às súmulas expedidas fora das condições constitucionais, o senador tem razão. O presidente do STF nega exorbitância e sustenta o seu ponto de vista na ação direta de inconstitucionalidade por omissão e no mandado de injunção. Sob este ângulo, o ministro tem razão. Cabe aos juízes, no devido processo, preencher as lacunas do ordenamento jurídico enquanto os legisladores se mantiverem omissos. Com essa finalidade há, por exemplo, o mandado de injunção 860, no STF, para regulamentação judicial da norma sobre moralidade para o exercício do mandato eletivo (o agravo regimental interposto da decisão monocrática aguarda despacho do relator desde 04.09.2008).
A chamada “judiciarização” da política brasileira encerra equívocos. No Estado democrático os assuntos políticos não estão desgarrados do direito. A separação dos Poderes convive com o mecanismo de freios e contrapesos (controle recíproco). Os atos do Legislativo e do Executivo que não se harmonizarem com a letra e o espírito da Constituição podem ser anulados pelo Judiciário. A este cabe o controle da constitucionalidade e da legalidade das ações e omissões dos agentes do Poder Público. A Suprema Corte dos EUA, quando decidiu o caso Marbury x Madison (1803), firmou a doutrina da supremacia da Constituição e outorgou a si própria, competência para anular qualquer lei incompatível com a Constituição. Ao contrário dos EUA, a competência dos juízes para declarar a inconstitucionalidade das leis, no Brasil, resultou da decisão do legislador constituinte.
A ministra do gabinete civil da presidência da República afirma que a tortura é imprescritível. Sendo assim, os torturadores que atuaram no regime autocrático devem ser punidos. Em resposta, certamente lembrado de que a ministra foi guerrilheira, o presidente do STF afirma que o terrorismo é imprescritível. Fica implícito que ela também deverá ser punida. Dilma e Gilmar estão equivocados. A prescrição é regra geral do ordenamento jurídico. A Constituição admite duas exceções: racismo e ação de grupos armados contra o Estado democrático (5º XLII + XLIV). Os demais delitos são prescritíveis (inclusive tortura e terrorismo). Da anistia e da prescrição resulta a extinção da punibilidade (CP 107, II + IV). A anistia decorre de decisão política condicionada ao preenchimento das condições legais. A prescrição tem como fator o decurso do tempo e como base o máximo de pena privativa de liberdade cominada ao crime. Ambas são produtos da política do direito. O agente fica livre da punição quando anistiado (ainda que o prazo prescricional não tenha se exaurido) ou quando ocorre a prescrição (ainda que o agente não tenha sido anistiado). Desde 1988, tortura e terrorismo são inafiançáveis e insuscetíveis de anistia ou graça. Isto não significa que sejam imprescritíveis (CF 5º, XLIII). Esses preceitos são prospectivos; não retroagem in pejus, nem invalidam o ato jurídico perfeito consumado no período anterior a 1988. Os beneficiários da anistia concedida nesse período (civis, militares, religiosos), rotulados de torturadores, terroristas, seqüestradores, assaltantes, homicidas, não podem mais ser punidos pelos crimes que lhes são atribuídos. Agentes da guerrilha e agentes do governo praticaram tortura e atos terroristas nos anos de chumbo. Tortura vem tipificada como crime na lei 9.455/1997. Antes dessa lei, tortura física e mental, seqüestros, estupros, atentados a bomba, foram praticados pelos dois lados. No sentido político, terrorismo engloba ações contra a sociedade e o Estado. No ordenamento jurídico brasileiro tais ações vêm tipificadas em diplomas distintos (CP 250/272 + lei 7.170/83, 15/29 + decreto 5.639/2005). As ações de ambos os lados geraram terror, tiveram motivação política e ideológica, colocaram em perigo a incolumidade pública. Uns queriam instaurar a ordem democrática; outros queriam preservar a ordem autocrática; todos como defensores do bem comum. Não há santos nem heróis nesse capítulo da história brasileira. Por ação ou omissão, todos são pecadores. Inocentes, só as crianças e os que nasceram depois. Trata-se de experiência política e social que faz parte da vida de um povo. O Brasil foi colônia, reino unido, reino independente e república, alternando autocracia e democracia. Procurar culpados e inocentes por essas vicissitudes históricas é insensatez. As causas políticas, sociais e econômicas desses acontecimentos hão de ser pesquisadas com lucidez e visão de futuro, no espírito de fraternidade e solidariedade que fortalece os laços nacionais. O espírito de vingança é destrutivo. Remoer o passado e alimentar rancor é próprio das almas entrevadas. Vade retro.

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