terça-feira, 19 de agosto de 2008

MAGISTRATURA ALGEMADA

O Supremo Tribunal Federal (STF) desceu do Olimpo ao Tártaro. Escreveu uma página divina (célula tronco) seguida de duas infernais (ficha suja + algemas). Refletiu a dualidade do ser humano: anjo e demônio. Tirou as algemas dos pulsos do criminoso e as colocou nos pulsos do magistrado. No caso da ficha suja (ADPC 144), o efeito vinculante tolhe a independência dos juizes e tribunais (lei 9.882/99, 10, §3º). Diante dessa violência, a magistratura pode: (i) dar prioridade à sua independência (garantia dos jurisdicionados), ignorar o efeito vinculante e julgar pedidos de registro de candidatura em sintonia com a Constituição e as exigências do bem comum (ii) pleitear a expedição de emenda constitucional revogadora das normas sobre efeito vinculante, a fim de evitar a ditadura da toga e assegurar a independência dos juízes. Associações e presidentes de tribunais poderão instruir a petição ao Legislativo e/ou ao Executivo, com anteprojeto de emenda à Constituição (CF 60, I + II).

A decisão do STF sobre ficha suja, além de contrariar os justos anseios da sociedade, mostrou uma face beligerante: exibição de força diante dos 26 tribunais eleitorais dispostos a indeferir o pedido de registro de tais candidaturas. Depois de uma centenária experiência republicana de política sem ética, o povo, titular da soberania, passou a exigir ética na política. Vox populi vox Dei. Os juízes e tribunais tentam, em atenção ao clamor popular, fechar as porteiras. O STF as mantém abertas. A Constituição enuncia proteção à probidade administrativa e à moralidade no exercício do mandato. Sair do papel e entrar no mundo político está difícil. Há 14 anos aguarda-se lei complementar que regulamente tal preceito. Tribunais eleitorais e associações de magistrados movimentaram-se em direção às aspirações éticas do povo, com o propósito de dar eficácia à norma constitucional mediante filtragem judicial. Pedidos de registro de candidatura foram indeferidos.

O ordenamento jurídico não exige do magistrado submissão constrangedora. Os juízes, isolados ou em colegiado, decidem as demandas segundo as leis do Estado e a consciência de cada um. A divergência, normal e saudável, ocorre com freqüência no interior da mesma câmara, do mesmo plenário e entre graus distintos de jurisdição. Cumprir decisão judicial proferida em determinado caso é uma coisa; outra, bem diferente, é perfilhar o seu entendimento. Haverá, sempre, a probabilidade de mudança desse entendimento no futuro. Pouco importa se as decisões dos órgãos menos graduados forem reformadas pelos mais graduados. O erro pode estar na cúpula e não na base. O que importa é que as decisões sejam proferidas no espírito de justiça, em sintonia com a realidade do seu tempo, com base nos fatos e no direito, segundo o entendimento e a consciência do magistrado.

No Rio de Janeiro, anos 80, o promotor de justiça impugnou queixas desprovidas de certo requisito legal. O juiz atendeu à promoção. Fundado na isonomia, o juiz exigiu que as denúncias também observassem aquele requisito. O promotor se negou. O juiz as rejeitou. Câmaras do Tribunal de Alçada e do Tribunal de Justiça determinaram ao juiz que as recebesse. O juiz se recusou a cumprir a determinação e devolveu os autos aos tribunais afirmando que a estes cabia receber as denúncias rejeitadas em primeiro grau. Os tribunais acataram o entendimento do juiz. Reconheceram que o juiz não estava obrigado a julgar de acordo com decisões, opiniões e determinações dos tribunais. Tal subordinação era incompatível com a independência própria do poder jurisdicional em cada instância. Se, em decisão alicerçada no direito, o juiz não recebe a denúncia, ninguém poderá obrigá-lo a decidir em contrário. Cabe ao tribunal ad quem proferir decisão substitutiva, se discordar.

O mesmo juiz absolveu, por insuficiência de provas, Denis da Rocinha, notório traficante de drogas. A presunção de inocência se sobrepôs à vontade de condenar. A notoriedade dos fatos não dispensa a produção de prova na esfera penal. Já na esfera civil, os fatos notórios independem de prova. Se Denis se candidatasse a cargo eletivo, aquele mesmo juiz que o absolvera na esfera criminal, teria negado o registro da candidatura tendo em vista a vida pregressa marginal notória. A moralidade no exercício do mandato interessa à nação e, por isso mesmo, se sobrepõe à pretensão individual a cargo eletivo. Além de outros itens, o exame da vida pregressa incluía a folha penal. Como o STF a excluiu, salvo se dela constar sentença condenatória transitada em julgado, far-se-á o exame apenas dos demais itens (deveres para com a família, a sociedade e o Estado).

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