Carmen Lúcia, ministra do Supremo Tribunal Federal, disse, nesta semana, quando trabalhava no Tribunal Superior Eleitoral, não gostar de ser juíza num mundo louco. De fato, em tal mundo, afigura-se mais apropriada justiça cibernética do que justiça humana convencional. Na extensão daquela frase é possível incluir: (i) o morticínio na Ucrânia e em Gaza (ii) as portas abertas à guerra nuclear (iii) a animosidade entre Putin e Biden (iv) a sanha assassina de Netanyahu (v) a competição entre as seitas religiosas e a imersão delas na política partidária (vi) o ódio e a intolerância grassando na sociedade brasileira.
Tolerar significa: (i) estar disposto a ouvir pacientemente opiniões contrárias às suas (ii) ser indulgente com o que desagrada, com as crenças alheias, com as ofensas pessoais, com as violações às regras vigentes. Tolerância consiste na disposição de espírito para tolerar. A sua presença nas relações humanas contribui para a coexistência pacífica entre pessoas, nações e estados. A ultrapassagem de limites faz da tolerância frouxidão moral. Através da análise racional e circunstancial dos atos e fatos traçam-se limites.
A tolerância civil não deve chegar ao ponto de minar a forma de governo estabelecida na Constituição. A sociedade convive com zonas de prostituição e casas de tolerância onde homens casados transam com mulheres sem a mácula do adultério. O Congresso Nacional se compõe de duas casas de tolerância onde opiniões contrárias são debatidas e criminosos anistiados. Os tribunais judiciários são casas de intolerância onde, mediante o devido processo, pessoas são condenadas por ações e omissões contrárias ao direito.
A tolerância religiosa não deve chegar ao ponto de minar os bons costumes vigentes na sociedade, o que (i) exige autodomínio dos fiéis e dos líderes das diversas seitas (ii) evita confronto bélico (iii) facilita a coexistência fraterna. O espírito de tolerância religiosa orientou a assembleia constituinte brasileira de 1988. Os deputados instituíram a liberdade de consciência e de crença. Desde o golpe republicano de 1889, tal liberdade vem declarada nas diversas leis orgânicas do estado brasileiro. Não há religião oficial. O estado brasileiro é laico. A nação brasileira é religiosa. A Constituição assegura liberdade de culto. A parcela maior da nação brasileira compõe-se de católicos, protestantes, kardecistas e umbandistas; a parcela menor, de judeus, muçulmanos, budistas e hinduístas.
O direito à liberdade religiosa implica o dever de tolerância. Havendo intolerância explícita entre seitas, o estado pode intervir mediante o devido processo jurídico a fim de assegurar a eficácia da norma constitucional que a todos garante aquela liberdade. Atualmente, a coexistência pacífica entre religiões está ameaçada pela agressiva busca de hegemonia e de domínio político encetada por seita evangélica pentecostal. Isto lembra 1980, quando o líder sindicalista Luiz Inácio da Silva e companheiros perceberam que só atividade sindical era insuficiente para colocar em nível de igualdade os termos do binômio capital + trabalho. Precisavam de poder político. Então, apoiados pela igreja católica, fundaram o partido dos trabalhadores. Agora, os evangélicos pentecostais, apoiados pela igreja protestante, têm partido político e desafiam a laicidade do estado.
A manifestação política e religiosa na Avenida Paulista em 25/02/2024, exibiu o inconstitucional amálgama religião/política. O episódio evidenciou (i) a intolerância dessa parcela minoritária do povo brasileiro com os valores democráticos e com as crenças de outras seitas religiosas (ii) a pretensão de anistia para os agentes dos crimes praticados contra o estado democrático de direito (iii) a participação ativa de lideranças civis e religiosas no fracassado golpe de 08/01/2023.
A civilização ocidental traz no seu bojo a tolerância recomendada por Jesus no sermão da montanha: amai os vossos inimigos; fazei bem aos que vos odeiam; abençoai os que vos maldizem; orai pelos que vos injuriam; ao que te ferir numa face, oferece-lhe também a outra; ao que te tirar a capa, não impeças de levar também a túnica; ao que tomar o que é teu, não lho reclames. (Lucas 6: 27/30). Utópicos mandamentos diante da real incapacidade humana de amar e tolerar incondicionalmente. A humanidade não é, nunca foi e jamais será comunidade de anjos e santos. Ao criar seita hebraica com nova imagem de deus e novos preceitos, o profeta galileu mostrou-se tolerante com a seita dos essênios e intolerante com as seitas dos fariseus e dos saduceus. Estas duas seitas predominavam na vida religiosa e política da Palestina. Naquela época, os galileus ao norte, os samaritanos ao centro e os judeus ao sul, habitavam a Palestina, todos sob a lei mosaica (Pentateuco). Lei mosaica escrita no século IV a.C., na Babilônia, por Esdras, sacerdote judeu, vinte séculos depois da morte de Moisés (2.500 - 500 = 2.000 = 20 séculos).
A divergência entre a seita do galileu e as seitas dos judeus residia na liturgia, na interpretação e na aplicação do Pentateuco. Valendo-se da sua autoridade de profeta hebreu, Jesus xingava fariseus e escribas: víboras, hipócritas, sepulcros caiados, e quejandos. Hoje, se algum missionário for pregar o evangelho no Irã, criticar o Islã, ou ofender os aiatolás, será morto. Transpor os limites da tolerância pode gerar consequências funestas. Jesus, quiçá pela impulsividade da sua juventude, sem a prudência da maturidade, atacou adversários poderosos. Fê-los inimigos. Foi por eles condenado à morte como blasfemo e subversivo. A sentença do Sinédrio foi executada por crucifixão na forma da lei romana. Apedrejamento era o modo hebreu de executar a pena de morte sem as formalidades jurídicas de Roma.
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