domingo, 3 de março de 2024

TOLERÂNCIA

Carmen Lúcia, ministra do Supremo Tribunal Federal, disse, nesta semana, quando trabalhava no Tribunal Superior Eleitoral, não gostar de ser juíza num mundo louco. De fato, em tal mundo, afigura-se mais apropriada justiça cibernética do que justiça humana convencional. Na extensão daquela frase é possível incluir: (i) o morticínio na Ucrânia e em Gaza (ii) as portas abertas à guerra nuclear (iii) a animosidade entre Putin e Biden (iv) a sanha assassina de Netanyahu (v) a competição entre as seitas religiosas e a imersão delas na política partidária (vi) o ódio e a intolerância grassando na sociedade brasileira.
Tolerar significa: (i) estar disposto a ouvir pacientemente opiniões contrárias às suas (ii) ser indulgente com o que desagrada, com as crenças alheias, com as ofensas pessoais, com as violações às regras vigentes. Tolerância consiste na disposição de espírito para tolerar. A sua presença nas relações humanas contribui para a coexistência pacífica entre pessoas, nações e estados. A ultrapassagem de limites faz da tolerância frouxidão moral. Através da análise racional e circunstancial dos atos e fatos traçam-se limites. 
A tolerância civil não deve chegar ao ponto de minar a forma de governo estabelecida na Constituição. A sociedade convive com zonas de prostituição e casas de tolerância onde homens casados transam com mulheres sem a mácula do adultério. O Congresso Nacional se compõe de duas casas de tolerância onde opiniões contrárias são debatidas e criminosos anistiados. Os tribunais judiciários são casas de intolerância onde, mediante o devido processo, pessoas são condenadas por ações e omissões contrárias ao direito. 
A tolerância religiosa não deve chegar ao ponto de minar os bons costumes vigentes na sociedade, o que (i) exige autodomínio dos fiéis e dos líderes das diversas seitas (ii) evita confronto bélico (iii) facilita a coexistência fraterna. O espírito de tolerância religiosa orientou a assembleia constituinte brasileira de 1988. Os deputados instituíram a liberdade de consciência e de crença. Desde o golpe republicano de 1889, tal liberdade vem declarada nas diversas leis orgânicas do estado brasileiro. Não há religião oficial. O estado brasileiro é laico. A nação brasileira é religiosa. A Constituição assegura liberdade de culto. A parcela maior da nação brasileira compõe-se de católicos, protestantes, kardecistas e umbandistas; a parcela menor, de judeus, muçulmanos, budistas e hinduístas. 
O direito à liberdade religiosa implica o dever de tolerância. Havendo intolerância explícita entre seitas, o estado pode intervir mediante o devido processo jurídico a fim de assegurar a eficácia da norma constitucional que a todos garante aquela liberdade. Atualmente, a coexistência pacífica entre religiões está ameaçada pela agressiva busca de hegemonia e de domínio político encetada por seita evangélica pentecostal. Isto lembra 1980, quando o líder sindicalista Luiz Inácio da Silva e companheiros perceberam que só atividade sindical era insuficiente para colocar em nível de igualdade os termos do binômio capital + trabalho. Precisavam de poder político. Então, apoiados pela igreja católica, fundaram o partido dos trabalhadores. Agora, os evangélicos pentecostais, apoiados pela igreja protestante, têm partido político e desafiam a laicidade do estado. 
A manifestação política e religiosa na Avenida Paulista em 25/02/2024, exibiu o inconstitucional amálgama religião/política. O episódio evidenciou (i) a intolerância dessa parcela minoritária do povo brasileiro com os valores democráticos e com as crenças de outras seitas religiosas (ii) a pretensão de anistia para os agentes dos crimes praticados contra o estado democrático de direito (iii) a participação ativa de lideranças civis e religiosas no fracassado golpe de 08/01/2023.
A civilização ocidental traz no seu bojo a tolerância recomendada por Jesus no sermão da montanha: amai os vossos inimigos; fazei bem aos que vos odeiam; abençoai os que vos maldizem; orai pelos que vos injuriam; ao que te ferir numa face, oferece-lhe também a outra; ao que te tirar a capa, não impeças de levar também a túnica; ao que tomar o que é teu, não lho reclames. (Lucas 6: 27/30). Utópicos mandamentos diante da real incapacidade humana de amar e tolerar incondicionalmente. A humanidade não é, nunca foi e jamais será comunidade de anjos e santos. Ao criar seita hebraica com nova imagem de deus e novos preceitos, o profeta galileu mostrou-se tolerante com a seita dos essênios e intolerante com as seitas dos fariseus e dos saduceus. Estas duas seitas predominavam na vida religiosa e política da Palestina. Naquela época, os galileus ao norte, os samaritanos ao centro e os judeus ao sul, habitavam a Palestina, todos sob a lei mosaica (Pentateuco). Lei mosaica escrita no século IV a.C., na Babilônia, por Esdras, sacerdote judeu, vinte séculos depois da morte de Moisés (2.500 - 500 = 2.000 = 20 séculos). 
A divergência entre a seita do galileu e as seitas dos judeus residia na liturgia, na interpretação e na aplicação do Pentateuco. Valendo-se da sua autoridade de profeta hebreu, Jesus xingava fariseus e escribas: víboras, hipócritas, sepulcros caiados, e quejandos. Hoje, se algum missionário for pregar o evangelho no Irã, criticar o Islã, ou ofender os aiatolás, será morto. Transpor os limites da tolerância pode gerar consequências funestas. Jesus, quiçá pela impulsividade da sua juventude, sem a prudência da maturidade, atacou adversários poderosos. Fê-los inimigos. Foi por eles condenado à morte como blasfemo e subversivo. A sentença do Sinédrio foi executada por crucifixão na forma da lei romana. Apedrejamento era o modo hebreu de executar a pena de morte sem as formalidades jurídicas de Roma. 

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