sábado, 23 de março de 2024

EU E A ROSA-CRUZ II

A concordância e a discordância frequentam as relações humanas. A primeira, conduz à amizade e à paz; a segunda, à inimizade e à guerra. Fora dos extremos. a concordância pode ser diplomática, conciliadora, no intuito de encerrar o debate e preservar a amizade; a discordância pode ser conveniente ao encorpar o debate na busca da verdade, do esclarecimento ou do consenso, sem provocar inimizade. 
Instituições religiosas e místicas apresentam seus mandamentos e ensinamentos como verdades incontestáveis, escritos sob inspiração divina quando não ditados diretamente pela divindade. As contradições e as falsidades contidas nesse material são resolvidas mediante a interpretação: (i) dos sacerdotes, pastores e teólogos, condicionada pela fé (ii) dos intelectuais, cientistas e filósofos, condicionada pela razão. Os religiosos consideram a fé, caminho da verdade absoluta e a razão, caminho da verdade relativa. Os fiéis são vistos como dignos das recompensas que recebem na Terra e que receberão no Céu. Os infiéis são vistos como livres pensadores, ateus e arrelientos, merecedores dos castigos na Terra e no Inferno. 
Nessa matéria, a principal discordância está na essência e não na existência. Os descrentes sabem da influência social e política do pensamento e da prática das organizações religiosas e místicas no curso da história. No entanto, a fé religiosa e mística é matriz da ilusão, obnubila o cérebro dos crentes e sustenta a vigarice das elites religiosas e políticas. Alicerçadas nas ilusões metafísicas, as instituições religiosas, desde as antigas civilizações até as modernas, exploram a população, acumulam tesouros e exercem os  poderes espiritual e secular. 
Ainda jovem e solteiro (26 a 28 anos de idade), frequentei, aos sábados, de 1965 a 1967, as convocações ritualísticas da Loja Curitiba. Em diferentes ocasiões, a convite do mestre, atuei como guardião externo, guardião interno, cantor, capelão e sonoplasta, embora sem pertencer ao quadro de oficiais. Eu atuava como coringa, sentia-me útil, agradecido e integrado. Todavia, passadas algumas décadas, o meu entendimento entrou em rota de colisão com a doutrina rosa-cruz. Inobstante os 55 anos em que estive filiado à venerável fraternidade, ruiu a minha crença nos profetas, nas profecias post factum, nas narrativas da Bíblia e da literatura mística.
Vejo o Antigo Testamento – parte judaica da Bíblia – como um códex resultante da compilação de tradições orais feita por Esdras, sacerdote judeu, na Babilônia, nos anos 500 a 401 antes de Cristo (a.C.). Trata-se do esforço do sacerdote para unir e disciplinar os judeus no retorno à Palestina, depois de autorizados por Ciro, rei da Pérsia que havia conquistado a Babilônia em 538 a.C. A maioria daqueles judeus era ignorante; mesclava-se com outras raças cujos deuses passava a cultuar. Esdras impôs um monoteísmo exclusivista, racial e nacional. Aliou a isto, um tom de superioridade ao inventar que os judeus eram um povo escolhido pelo deus Javé e que esse deus os colocou acima dos outros povos. Essa parte foi bem recebida e nela os judeus acreditam até hoje. Esdras copiou o monoteísmo posto no Egito cerca de 1375 a 1355 a.C., pelo faraó Aquenaton [grafia portuguesa]. Apesar das periódicas recaídas no politeísmo, a monolatria ficou sendo a base da religião. As religiões dos coetâneos também eram nacionais: cada povo tinha seus próprios deuses e suas liturgias. 
Vejo o Novo Testamento – parte cristã da Bíblia – como fruto da mentalidade judaica dos apóstolos. Segundo os evangelhos, Jesus criou nova seita, com novos preceitos e um novo deus denominado Pai Celestial, poderoso, amoroso, misericordioso, diferente do deus Javé (ou Jeová), satânico, cruel, vingativo, genocida, exclusivo da nação hebraica. Inicialmente, a seita de Jesus tinha caráter nacional palestino. Entretanto, depois da sua morte, alguns dos seus discípulos atravessaram as fronteiras da Palestina e difundiram a doutrina por outros países. À medida que o cristianismo foi se expandindo na Ásia e na Europa, o Pai Celestial foi assumindo extensão universal, deus da humanidade e do mundo. Apesar desta expansão, a maior parcela da humanidade não é cristã.  
Os evangelhos mostram um Jesus: (i) divino, humano e ungido (ii) sábio, amoroso, terapeuta fabuloso (iii) mestre radical e violento (iv) apreciador de vinho, boa comida e de companhia masculina e feminina (v) protetor dos pobres, mulheres e crianças (vi) crítico dos costumes judaicos e da riqueza (vii) opositor ferrenho dos fariseus e saduceus (viii) político astuto que distingue o reino dos homens do reino de Deus e contesta a autoridade do estado. 
Ao contrário do que pensam os cristãos, Jesus não é Deus e tampouco filho unigênito de Deus. Todos os seres vivos são filhos de Deus. Se Jesus existiu biológica e historicamente, então ele foi um ser vivo, do gênero animal, da espécie racional, do tipo semita, nascido na Palestina em local e data desconhecidos. Nazaré não existia, quer como cidade, quer como aldeia ou  simples povoado. Nazareno era apelido do filho hebreu que os pais entregavam ao serviço de Deus. A data 25 de dezembro foi adotada pela igreja cristã para substituir o culto que nesse dia era prestado ao deus Mitra, na Roma imperial. Depois de cinco séculos, o cristianismo superou o mitraísmo na Europa. Aparência física desconhecida. Jesus não foi retratado em pintura, escultura, desenho ou texto enquanto vivia, até porque, naquela época, ele não tinha a importância social e religiosa que adquiriu séculos depois. Ele era tão banal quanto os outros indivíduos que circulavam na Palestina e se diziam mensageiros da verdade divina. Se existiu de fato, então Jesus tinha a aparência do homem hebreu: dolicocéfalo, olhos e cabelos castanhos, nariz adunco, pele morena, estatura mediana, compleição robusta, diferente dos galãs que o representam nos filmes de Hollywood.

Bíblia Sagrada. São Paulo. Editora “Ave Maria”. 1987.
Burns, Edward McNall - História da Civilização Ocidental. PA. Globo. V. 1. 1955.
Jaguaribe, Hélio - Um Estudo Crítico da História. SP. Paz e Terra. V.1. 2001.
Josefo, Flávio – Antigüedades Judias. Madri. J.V. Donado. 2013.
Kempis, Tomás de – Imitação de Cristo. Petrópolis/RJ. Vozes. 2015.Lewis,
Harvey Spencer – La Vida Mística de Jesús. Califórnia. Amorc. 1967.
Mahfuz, Naguib – Akhenaton, O Rei Herege. Rio. Record. 2005.
Stewart, Ian - Será que Deus Joga Dados? Rio. Zahar. 1991.  


Nenhum comentário: