domingo, 22 de dezembro de 2024

257 TIROS

Na sessão plenária de 18/12/2024, o Superior Tribunal Militar (STM) concluiu o julgamento do Caso Guadalupe, referente a dois homicídios ocorridos em 07/04/2019, numa das ruas de Guadalupe, bairro da capital do Rio de Janeiro. O músico Evaldo e sua família passavam por ali quando o automóvel em que estavam foi alvo de 257 tiros disparados por uma patrulha do Exército. Ele morreu. O sogro saiu ferido. A esposa, o filho e a amiga salvaram-se. Luciano, catador de material reciclável, morreu ao socorrer aquela família durante os disparos. Nenhuma das vítimas portava armas; nenhuma agrediu a patrulha. Os patrulheiros, para garantia da lei e da ordem, estavam no Rio de Janeiro em missão oficial autorizada por decreto expedido pelo governo federal com base no artigo 142 da Constituição da República. A ocorrência ensejou processo criminal contra os patrulheiros. Materialidade e autoria dos crimes incontroversas. Fatos públicos, notórios, registrados e divulgados pela imprensa e canais de televisão. Debate circunscrito à culpabilidade. O Ministério Público denunciou os patrulheiros por crime doloso. Os advogados levantaram teses excludentes dos crimes, tais como: legitima defesa putativa por erro de fato, estrito cumprimento do dever legal. 
No primeiro grau de jurisdição, todos os réus foram condenados às penas de 20 a 30 anos de reclusão, por homicídio doloso consumado, em relação às vítimas Evaldo e Luciano; e tentado, em relação ao sogro de Evaldo. No segundo grau de jurisdição, pelo voto da maioria dos juízes do STM, os delitos foram classificados como culposos e não dolosos. Do homicídio do qual Evaldo foi vítima, os patrulheiros foram absolvidos por insuficiência de provas. No seu voto, acompanhado pela maioria dos juízes, o relator vislumbrou a possibilidade de Evaldo, quando atingido pelos disparos dos patrulheiros, já estar morto por tiro anteriormente disparado pelos bandidos. In dubio pro reo. Dependendo de exames periciais idôneos (prevenidos contra a notória corrupção nos diversos setores da administração pública) o aforismo aplicável poderia ser: in dubio pro societate. A versão do réu, tenente que comandou a patrulha, tem pouco valor probatório por seu evidente interesse pessoal na absolvição. Todo réu tem o direito de calar. Nenhum réu está obrigado a falar a verdade, a confessar a sua responsabilidade pelo delito praticado, a responder perguntas que lhe possam incriminar. Da síntese do voto do relator publicada no site do STM, é possível supor que na instrução processual foram produzidas provas idôneas (testemunhas, documentos, laudos periciais) que apoiam as versões dos réus de que: (i) trocavam tiros com bandidos posicionados do outro lado da rua na qual passava o carro das vítimas (ii) da posição dos bandidos, as balas das armas deles podiam atingir o automóvel e ferir de morte quem nele estivesse. Pela morte de Luciano, os juízes não tiveram dúvida: ele foi alvejado pelos patrulheiros e não pelos bandidos. Os réus foram condenados a 3 anos de detenção. 
O resultado do julgamento não agradou a parcelas da população carioca e da imprensa. As decisões judiciais nem sempre coincidem com a opinião pública e nem sempre agradam à população. O juízo de direito posto pela magistratura no devido processo legal é técnico, menos apaixonado do que o juízo de fato posto pela população, mais apaixonado. Há casos cujo enquadramento jurídico feito pelos magistrados é rejeitado pela massa popular e que geram protestos. A aplicação da lei aos casos concretos exige lógica e bom senso; não só legalidade como também razoabilidade; não só a letra da lei como também o espírito da lei. O magistrado deve se autopoliciar quanto aos seus conceitos e preconceitos sociais, políticos, ideológicos, filosóficos e religiosos, a fim de preservar a objetividade do trabalho judicante, a vigência e a eficácia da ordem jurídica, a segurança da nação, das pessoas e dos seus patrimônios.   
Segundo o direito penal, a legítima defesa caracteriza-se: (i) pela precedência de injusta agressão a direito do paciente (ii) pelo uso moderado dos meios necessários à defesa do direito ferido ou ameaçado. No caso em tela, nenhum desses requisitos estava presente. Portanto, não havia justificativa para aquela saraivada de tiros! 
Os casos de exclusão de crime, de isenção e de atenuação das penas, estão arrolados nos artigos 35 a 44, do Código Penal Militar. A hipótese do erro de fato plenamente justificável, prevista no artigo 36, para isentar de pena os réus, choca-se, neste caso sub judice, com o excesso culposo punível segundo o artigo 45. O excesso ocorreu e ficou impune. Daí, os civis suspeitarem de que, nesse julgamento, o parcial espírito de corporação dos militares ocupou o lugar do imparcial espírito de justiça. A intenção de matar quem estava no interior do automóvel deriva da ação direta, imoderada e violenta dos patrulheiros que, sem as cautelas devidas, agiram na certeza de que o automóvel era o mesmo que fora roubado momentos antes e de que os seus ocupantes eram os assaltantes armados. Faltou-lhes o cuidado de previamente interceptar o veículo e dar ordens para quem estivesse no interior saísse sem resistir. Caso houvesse desobediência e os ocupantes saíssem atirando, ou, com as armas apontadas para os patrulheiros, estes podiam reagir em legítima defesa própria e revidar o ataque dos bandidos. Da falta do cuidado necessário resultou a tragédia. 
Os juízes viram o erro dos patrulheiros como legítima defesa putativa, ou seja, se os ocupantes do automóvel fossem realmente bandidos, a ação da patrulha estaria justificada (salvo o excesso). Os militares estariam no estrito e legal cumprimento do seu dever. Todavia, a certeza dos patrulheiros era tão somente suposição. 
A tragédia mostrou à nação brasileira: (i) o despreparo dos militares para a função policial (ii) o grave erro do legislador constituinte ao redigir o artigo 142 da Constituição da República, facilitando interpretações e ações equivocadas (iii) a urgente necessidade de rever ou de extinguir esse dispositivo constitucional (iv) a conveniência de retirar a justiça militar da estrutura do Poder Judiciário e coloca-la na estrutura do Poder Executivo como justiça administrativa da hierarquia e disciplina dos militares. Em consequência, os militares que cometerem crimes em tempo de paz deverão submeter-se à jurisdição civil. Na revisão constitucional, deverá ser proibida a qualificação dos cidadãos civis brasileiros como inimigos internos da pátria. 

sábado, 14 de dezembro de 2024

OS NEURÔNIOS DA VIZINHA

Na varanda, sentados sobre almofadas verdes nas cadeiras de vime, ao redor de pequena e baixinha mesa com tripé de ferro e tampo de vidro circular, Rosália e Júlio conversavam com seus amigos e vizinhos Adélia e Cristiano. Moravam na mesma rua de um bairro ajardinado longe do centro da cidade. Sentiam nas faces o frescor da brisa noturna sucessora do calor da tarde. Como um enxame de vaga-lumes, as estrelas cintilavam no firmamento. Elas paravam de piscar quando passava alguma errante nuvem extraviada naquela imensidão cósmica. A Lua apareceria depois. Estava sem pressa. Com breves intervalos silentes, a conversa seguia a amenidade sugerida pela natureza naquele momento. A fim de quebrar a monotonia, Cristiano resolve preencher uma das lacunas. 
- E o custo de vida, o que vocês acham? Vocês notaram os preços das mercadorias nos supermercados? Nada ficou sem aumento, ainda mais agora no período das festas de fim de ano. Só os salários permaneceram inalterados. O 13º salário devia ser uma bonificação para o trabalhador nessa época do ano. Qual o quê! O estado com seus tributos e os credores com seus créditos avançam sobre essa renda extra do trabalhador e a reduzem a pó. Justiça social? Só no papel. O estado e as elites econômica e militar tiram o couro do trabalhador.  
Olhando e apontando para Adélia, Rosália sai do mutismo: - No tocante à carestia, nós duas sabemos disto melhor do que vocês dois. Somos nós que fazemos o supermercado e a feira.
Júlio interpela a esposa: - “Fazemos o supermercado e a feira”. O que é isso, Rô? Quem faz o supermercado é o capitalista; quem faz a feira é o feirante. Compras é o que vocês duas fazem no supermercado e na feira.
- Falei de modo comum, simples, informal, Júlio. A nossa varanda não é academia de letras e sim espaço familial para conversas descontraídas.
Adélia complementa: - É isso mesmo, Rô. Você falava em carestia e o Júlio vem com eucaristia!  O contexto da nossa prosa não se afina com a chatice literária. Despreocupadas, sem excessivo cuidado com a gramática, falamos o que queremos e do jeito que queremos.
Cristiano corrige a sua esposa: - “Falamos do jeito que quisermos”, Adélia.
- Dispenso a lição, Cris, pelos mesmos motivos apresentados pela Rô. Essa chatice de flexão verbal queima os meus neurônios.
Júlio repara: - Adélia, me diga, desde quando neurônio é lâmpada pra queimar?
Rosália sai em defesa da amiga: - Êta, Júlio! Já se acumpliciou ao Cris. Isso pega!   
Zombeteiro, Cristiano prossegue: - De flexão eu entendo. Fiz muitas flexões ao prestar serviço militar. Só que não eram verbais e sim corporais. Todas as manhãs. Corpo na horizontal no jeito de tábua. Pernas esticadas. Flexionando os braços, eu levantava e baixava o tronco até quase encostar no chão, sob os berros do tenente. Às vezes, saíamos uniformizados do quartel equipados com mochila, mosquetão, cantil, coturnos, cantando mantras. Marchávamos quilômetros comandados pelo tenente que nos fazia parar duas ou três vezes para flexões com o peso daquela tralha nas costas. Esse “privilégio” era pouco apreciado por meus amigos.  
Calmamente, Júlio refuta: - Volta e meia você conta essa estória porque sabe que eu não servi o Exército. Você quer mostrar que é mais forte do que eu. Acontece, Cris, que eu e toda a torcida do Flamengo sabemos que essa ralação de que você tanto se gaba é parte da iniciação dos recrutas nos quartéis e dos cadetes nas academias militares. Depois disto, os que se engajam como praças e os que se formam como oficiais, entram na bem-aventurança: trabalho pouco, rotina burocrática, remuneração excelente, vantagens para si e para a família
Rosália reforça o discurso do marido: - Nós, os civis, é que nos ralamos para sustenta-los. Em troca, eles derrubam nossos governos, cerceiam nossas liberdades e pisoteiam nossos direitos. Os milicos vêm fazendo isto há mais de 130 anos! Como não há inimigos externos, eles inventaram “inimigos internos”, que somos nós, os civis. Com isto, eles buscam justificar a sua existência como força armada e a obscenidade dos seus ganhos, privilégios e mordomias
Adélia comenta: - Pois é. Apesar desses tristes e infelizes capítulos da história da nossa república, ainda estamos aqui, num ciclo de paz e liberdade sabe-se lá até quando!  
- Até os teus neurônios entrarem em curto-circuito, Adélia
O comentário de Adélia não exigia resposta do interlocutor. Apesar disto, Cristiano resolveu responder para não perder a ocasião de fazer graça. Rosália socorre a amiga: - Não lhe dê ouvidos, Adélia. Piadista como é, o Cris talvez não saiba a parcial verdade que há no que ele está dizendo
- Como assim, Rô? Júlio pergunta intrigado. 
- Como assim... ora ... como assim ... Rosália fala como se a pergunta de Júlio fosse tola. 
- Saiba que as células do nosso cérebro recebem o nome de neurônios por suas características eletromagnéticas e suas funções no sistema nervoso humano. Então, meus ilustres varões assinalados, zeladores da bela e última flor do Lácio, SIM, pode haver curto-circuito entre alguns desses 100 bilhões de neurônios
- Corta esta, Rô. O espaço interno do nosso crânio não comporta tal quantidade de células. Nem aqui, nem em Marte
Cristiano caçoa sem ter noção das dimensões micrométricas das células. Rosália o desafia com trocadilho bem humorado: 
- Comporta ou sem porta, Cris, trate de embarcar na tua viagem espacial, porque além dos bilhões de neurônios, há cerca de um trilhão de outro tipo de célula de charmoso nome feminino, Glia, que auxilia aquele tipo de célula de nome masculino. Antes da tua nave pousar em Marte, Cris, coloque mais isto na bagagem: há neurônios que se diferenciam por suas especiais funções sensoriais, motoras, comunicadoras, associativas
Olhando diretamente para a amiga e quase sussurrando, Rosália se penitencia:- Desculpe Adélia, por eu ter invadido domínios do sistema nervoso humano, objeto das tuas pesquisas.   
- Tudo bem, Rô. Nada tenho a opor. Apenas, acrescento: As células do cérebro estão interconectadas. Se nos circuitos neurais houver alguma crise, haverá consequência no sistema nervoso. Disfunções ocorrem nas áreas cerebrais. As causas dessas anomalias podem ser externas como, por exemplo: traumatismo no crânio resultante de queda, ou, golpes na cabeça durante lutas de boxe como aconteceu com o campeão Muhamed Ali. 
De modo grave e conciliatório, Júlio pondera: - Nós quatro concordamos em muitas coisas e discordamos em outras. Creio que isto é normal, não só entre nós, mas, também, nas relações humanas em geral. Entre nós, as discordâncias provêm das nossas distintas formações universitárias e respectivas atividades profissionais, aptas a gerar maneiras distintas de explicar e entender os fatos da natureza e da sociedade. A minha área é Engenharia, a da Rô é Biologia, a do Cris é Arquitetura, a da Adélia é Psicologia. Daí, as possíveis diferenças nas visões do mundo de cada um. O importante é continuarmos fiéis aos nossos valores morais
Júlio interrompe o seu discurso a fim de tomar dois goles de água mineral. Rosália aproveita a pausa para emendar: 
- Fiéis também a nós próprios, aos nossos ideais, cada qual se esforçando para conhecer profundamente a si mesmo como Sócrates recomendava. Dos neurônios você saltou para as visões de mundo. O assunto da nossa conversa não reclamava tal extensão, Júlio. Vamos nos levantar daqui e adentrar à casa porque aqui na varanda o ar já está esfriando.  
Convite feito, convite aceito. Acomodaram-se na cozinha. A anfitriã ajustou o filtro de papel no coador e este no adaptador da garrafa térmica. Colocou duas colheres de sopa cheias de pó de café dentro do filtro. Chaleira na mão, derramou lentamente a água fervendo sobre o pó de café que borbulhou, tal como borbulhavam as ideias nos cérebros deles. O recinto foi tomado pelo aroma do café fresco. Olhos gulosos postos sobre o bolo de fubá feito por Maria, a diarista. Rosália colocou xícaras e pratinhos na mesa, fatiou o bolo e serviu o café. Em volta da mesa atoalhada de azul, frases curtas e poucas. Prevaleciam interjeições, síncopes e sinapses.    

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

OS MILITARES E A REPÚBLICA II

No domingo, 01/12/2024, repercutiu na sociedade brasileira, o conteúdo de um vídeo produzido pela Marinha do Brasil, que retirou do âmbito especulativo e trouxe para o âmbito dos fatos, o preconceito dos militares em relação aos civis. A gravação expôs o elevado conceito que os militares têm de si próprios: patriotas valorosos, submetidos a duras provas e a trabalhos penosos, longe da família, sacrificam-se pelo amor à pátria. Paralelamente, a gravação expôs o desdourado conceito que os militares fazem dos civis: vagabundos que só querem lazer e que não demonstram amor pela pátria. Os produtores do vídeo esqueceram que os cônjuges, filhas e filhos de militares, têm vida social fora da caserna, frequentam praias, shoppings centers, mercados, feiras, namoram, divertem-se em festas e festivais, viajam nas férias.  
A publicação do vídeo inteirou os brasileiros e os estrangeiros do caráter preconceituoso e arrogante dos militares e de como estes se consideram elite superior às elites civis e à massa popular. Esta sublimação embriagadora não os deixa ver (i) a inadequação deles para promover o desenvolvimento da nação e (ii) a evidência de que os civis integram a sociedade e alicerçam o estado. 
Com a sua força de trabalho no campo e na cidade, os seus talentos, os seus conhecimentos técnicos e científicos, a sua cultura, os civis estruturam a sociedade, inclusive organizam e sustentam as forças armadas e as bem nutridas panças dos generais. 
Essencialmente, as forças armadas destinam-se a proteger o território nacional e o povo de eventuais ataques estrangeiros. Há desvirtuamento quando essas forças: (i) instituem-se como poder militar (ii) exploram e oprimem o povo (iii) atuam como polícia interna. 
Nas repúblicas democráticas, quer as liberais, quer as sociais, as forças armadas também atuam nos casos de sedição a fim de garantir o poder civil legítimo do qual são servidoras. No Brasil, elas têm assumido o poder político porque se acham incorruptíveis e mais bem preparadas do que os civis para a arte de governar. Nos períodos de governança civil, elas próprias têm se tornado sediciosas, derrubam o governante e assumem a chefia do governo. O usurpador troca a farda pelo terno a fim de se distinguir, pelo menos na aparência, dos títeres das republiquetas. O povo brasileiro vem testemunhando e aturando esse fato político há 135 anos.
A “elite militar” brasileira simpatiza com a elite econômica formada pelos banqueiros e empresários da indústria, do comércio e da agropecuária. Além disto, funciona como parceira subalterna da elite militar dos Estados Unidos. As forças armadas brasileiras (i) abraçam a doutrina da segurança nacional elaborada naquele país (ii) tomam como modelo as estratégias, os desempenhos e o aparelhamento das forças armadas estadunidenses. Nessa febre, elas gastam fortunas prodigamente. No entanto, diferente dos Estados Unidos, o Brasil tradicionalmente (i) não é imperialista, terrorista, provocador e incentivador de guerras nos diversos continentes (ii) não tem os problemas e as necessidades daquele país norte-americano (iii) adota o pacifismo e a conciliação como política interna e externa (iv) há 152 anos vive em paz com os seus vizinhos. 
As últimas batalhas navais ocorreram no século XIX – estamos no século XXI! Desde a mais famosa delas, a do Riachuelo, na Guerra do Paraguai, já decorreram 159 anos. Como defensora da “pátria” brasileira, a Marinha vive parasitária desde aquela época no que concerne a confrontos bélicos com países da América. No século XX, ela participou modestamente das duas guerras mundiais, porém, não em defesa do território, do povo, do governo e da soberania do Brasil e sim em defesa da “pátria” de outros povos ... na Europa! 
A moça morena, simpática, risonha, que aparece no vídeo, convida-nos a desfrutar os privilégios da Marinha. Convite precedido de imagens de soldados submetidos a tratamento desumano ironicamente sugerido como “privilégio”. Percebe-se a mensagem subliminar: a brutalidade torna os soldados mais valorosos do que os civis. Esse tipo de instrução militar desperta o que há de pior na espécie humana: a irracionalidade, a bestialidade, o ódio. Rompida a liga humanitária, o soldado torna-se um mentecapto, sobrevivente, na Idade Moderna, do pithecanthropus erectus da Idade da Pedra, tal e qual o instrutor que aparece no vídeo.  
A atualidade brasileira requer mudanças, tais como: 1) Cortar pela metade a verba orçamentária e o efetivo das forças armadas. 2) Estabelecer o limite máximo da verba orçamentária anual das forças armadas calculado em percentual sobre o Produto Interno Bruto (PIB) do ano anterior. Exemplo: 0,0001% sobre o PIB/2023 de R$10,9 trilhões. 3) Fixar o soldo máximo em 20 salários-mínimos, vedado qualquer acréscimo a esse teto. 4) Determinar a passagem dos militares para a inatividade remunerada aos 60 anos de idade, desde que completados, no mínimo, 35 anos de serviço; antes disto, só por invalidez. 5) Proibir: (i) recrutamento forçado (ii) serviço militar obrigatório (iii) atividade política partidária e voto aos militares. 6) Atribuir ao Poder Legislativo a decisão sobre o caráter permanente ou provisório das forças armadas, submetida ao referendo popular. 7) Extinguir as academias e as escolas militares. 

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

OS MILITARES E A REPÚBLICA

Nas investigações da polícia federal noticiadas pela imprensa e pelo jornalismo televisivo, constatou-se a materialidade e a autoria do golpe desferido contra (i) a república democrática brasileira (ii) as vidas dos vencedores das eleições presidenciais de 2022 e do presidente do Tribunal Superior Eleitoral. O complô foi montado por militares ativos e da reserva e por civis de dentro e de fora do governo, todos integrantes da facção nazifascista liderada pelo então presidente da república. Apesar de o plano estar bem elaborado graças aos conhecimentos estratégicos dos militares, a sua execução falhou por falta de adesão da maior parte da oficialidade. Os crimes planejados não se consumaram; ficaram na tentativa. A ação delituosa não atingiu o resultado final. A responsabilidade por esses crimes é exclusiva dos seus agentes e não das instituições a que pertencem: Marinha, Exército, Aeronáutica, Universidade, Empresa, Igreja Evangélica, Senado Federal, Câmara dos Deputados, Administração Pública.
Os golpes de estado no Brasil explicam-se pela vocação caudilhesca reinante e pela questionável necessidade de manter forças armadas em tempo de paz. As relações entre o Brasil e os seus vizinhos da América do Sul são pacíficas desde o fim da guerra com o Paraguai (1865-1872). Da segunda guerra mundial (1939-1945) o exército brasileiro participou no biênio final, na Itália, sem que pairasse ameaça ao povo brasileiro. O governo brasileiro enviou para lá força expedicionária em troca da construção da usina siderúrgica de Volta Redonda e da fundação da Companhia Vale do Rio Doce para explorar minérios, negociadas em 1941 por Getúlio Vargas com o governo dos Estados Unidos. O preço do negócio foi a vida de mais de 400 soldados brasileiros. A briga não era com o Brasil e sim entre países europeus. O governo dos Estados Unidos resolveu ajudar o governo da Inglaterra e levou o Brasil de cambulhada. 
Neste século XXI, rivalidades militares e corridas armamentistas diminuem enquanto crescem as rivalidades econômicas, as batalhas comerciais, a corrida tecnológica. Disputas entre nações exigem menos tropas de soldados e mais tropas de economistas, empresários, cientistas e técnicos. A segurança nacional depende mais da diplomacia e menos do exército.
Ante o exposto, afigura-se insana e indecente a fortuna que a nação brasileira gasta para manter forças armadas parasitárias, oficialato encharcado de bebidas finas e entupido de comidas refinadas, enquanto milhões de brasileiros passam fome, necessitam de assistência médica e hospitalar, desempregados, sem fonte de renda para sustento da família, vivem de bicos e da mendicância. Os civis que estão empregados cumprem duras jornadas por salários irrisórios. O sistema produtivo carece de incentivos do estado. Os civis são os alicerces da nação; empregam a sua inteligência, os seus conhecimentos, os seus talentos e a sua força de trabalho na produção nacional de bens e na prestação de serviços. Há insuficiência de dinheiro e de material nos setores da saúde, educação, cultura, ciência, tecnologia, meio ambiente, comunidade indígena. O aumento da verba orçamentária para tais setores é justo e necessário.    
Na tradição militarista do Brasil, desde o golpe desferido contra a monarquia em 1889 até o golpe desferido contra a república democrática em 2022, as forças armadas se constituíram em poder militar absorvente do poder civil. Nivelaram a república brasileira às repúblicas de bananas do continente americano, submissas ao governo estadunidense. Outrossim, o Brasil não entra em conflito bélico com outras nações há 152 anos. Portanto, mostra-se razoável e compatível com a decência, a redução do efetivo e da verba orçamentária das forças armadas, bem como, o corte radical das mordomias e dos penduricalhos.  
Quer na democracia liberal, quer na democracia social, o papel das forças armadas não é o de poder militar e sim o de servidoras do poder civil. Elas integram o sistema de segurança nacional, atuam em tempo de guerra e se recolhem ao quartel em tempo de paz, sem se imiscuir (i) nos assuntos da constitucional competência dos poderes legislativo, executivo e judiciário (ii) nos negócios privativos da sociedade civil. 
Nas repúblicas democráticas federativas, cada ente federado, dentro dos seus limites territoriais, tem o seu sistema de segurança pública estadual a fim de manter a ordem e combater o crime. A intervenção federal nessa área é limitada e casuística ante a soberania residual dos estados federados, como acontece na União norte-americana, ou, ante a autonomia dos estados federados, como acontece na União brasileira. Tanto na guerra como na paz, as forças armadas subordinam-se ao Chefe de Estado (Poder Executivo) e aos Representantes da Nação (Poder Legislativo). 
Historicamente, no Brasil, as forças armadas impõem os seus projetos. A espada atemoriza e constrange a autoridade civil. O legislador constituinte se curvou às forças armadas e as colocou no texto constitucional (i) em primeiro lugar, como defensoras da “Pátria” (ii) em segundo lugar, como garantidoras dos poderes constitucionais, da lei e da ordem. Tal colocação facilita golpes de estado. Os conspiradores se dizem amparados no texto constitucional. Urge dar nova redação ao artigo 142 da Constituição da República e alterar a legislação militar em sintonia com os novos tempos.   

Alencar, Francisco e/os. História da Sociedade Brasileira. Rio. Ao Livro Técnico. 1985. Pag. 158 + 255. 
Código Penal Brasileiro. Artigos 13/14.
Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Artigo 142.
Kennedy, Paul. Preparando para o Século XXI. Rio. Campus. 1993. Pag. 126/27 + 337/39.        
Supremo Tribunal Federal. A Constituição e o Supremo. Vol. 2. 2016. Pag. 1199/1200. 

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

CRIME INEXISTENTE

Alcindo entrou em casa com o cenho fechado e pisando duro.  Foi direto para o quarto. Abriu a porta do guarda-roupa e do fundo da prateleira superior retirou uma caixa de madeira de 20 cm de altura x 25 cm de largura x 40 cm de comprimento. Colocou-a sobre a mesa da sala. Levantou a tampa e retirou o conteúdo: revólver Smith & Wesson, calibre 38, estojo com balas, vareta com esponja numa das pontas, uma peça retangular de camurça amarela. Limpava a arma quando, vagarosamente, Marinês se aproxima e pergunta: - O que você está fazendo? 
Enquanto colocava balas no tambor, Alcindo, de mau humor, respondeu: - O que você está vendo, Nês. 
- Por aquilo que estou vendo, Alci, eu não preciso perguntar e sim pelo que eu não estou vendo e só pressentindo. Eu vejo o que você está fazendo com as mãos e com a arma, só não vejo o que você está pensando e o que pretende fazer. Eu quero saber o que está passando pela tua cabeça. 
- Nada de complicado, Nês. Vou matar aquele filho da puta! 
- De quem você está falando, Alci? 
- Estou falando do Evaristo, o lazarento marido da tua prima. 
- O que foi que ele te fez, homem do céu? 
- Eu soube, lá no bar, que ele anda dizendo por aí, estar te comendo. 
- E você acreditou? 
- Que ele anda espalhando o boato, sim. Que ele te comeu, não. Por isto mesmo, vou crivar de balas a cara daquele mentiroso. 
- Não estou entendendo. Se eu e você não acreditamos nessa lorota, não vejo motivo para essa tua drástica reação. 
- Essa “lorota”, Nês, como você a chama, tem outro nome: di-fa-ma-ção. Quanto a você, mulher leviana. Quanto a mim, corno manso. É a nossa honra que está sendo manchada. 
- Verdade com a qual não atinei prontamente, Alci. Porém, acho melhor, antes de qualquer agressão física da tua parte, a gente conversar com a minha prima e o Evaristo. 
- Conversar? De jeito nenhum! Eu vou lá para mandar aquele puto para o cemitério. 
- Você não está pensando em mim, na Juliana e no Pedro, nossos filhos. Ninguém da família ficará feliz com você na cadeia. Eu vou com você até a casa da Eneida. Guarde o revólver e, por favor, não faça escândalo.  
Alcindo entrou na casa da prima da sua esposa com voz alta perguntando por Evaristo. - Está lá em cima, informou Eneida ao mesmo tempo em que chamava o marido pelo nome. Ela ficou apreensiva ao ver a carranca de Alcindo. Pela escada que leva ao andar superior da casa, Evaristo desceu e cumprimentou com simpatia: 
- Boa tarde, primos. A que devemos a visita? 
- À tua vida ou à tua morte, desgraçado! 
Alcindo disse isto sacando o revólver. Marinês segurou e empurrou o pulso do marido para baixo. Precavido, Evaristo saltou para trás da mesa levando com ele a toalha e o vaso de flores. Assustada, Eneida interpelou Alcindo: 
- O que é isto? Você ficou maluco? 
- Maluco não. Eu estou é furioso com o teu marido que espalhou pelo bairro a notícia de estar comendo a Marinês. 
- Santo deus! Que barbaridade é esta, minha prima? 
Eneida parecia atordoada ao se dirigir a Marinês e a Evaristo. Lá do canto onde estava entrincheirado, Evaristo brada: 
- Isso é mentira. Eu nunca disse isto! 
Marinês contestou: 
- Disse isto sim senhor, lá no bar, seu babaca. Eu jamais transaria contigo, nem que você fosse o João Travolta!  
Evaristo protesta inocência: 
- Tá havendo algum mal-entendido. 
Alcindo, girando nervosamente o punho com o revólver na mão, diz grosseiramente:
- Então, desembucha logo, palhaço! 
Eneida interfere: 
- Vamos parar com as ofensas. Vocês estão na minha casa e eu exijo respeito. Explique para eles e para mim, Evaristo, o que está acontecendo.
Eneida falou de modo zangado e autoritário. O marido obedeceu. Ele assume a postura cautelosa de quem entra em terreno perigoso. 
- Eu não sei o que disseram para o Alcindo lá no bar. Rolou o nome da Marinês, sim, durante uma brincadeira de homens. Estávamos reunidos em torno da mesa tomando cerveja, o Júlio Ramos, o Sérgio da banca, o Adauto Silva e eu, quando, a certa altura da prosa, o Júlio nos provocou:
- Qual das mulheres aqui do bairro vocês gostariam de comer? Não vale a própria esposa! 
- Depois de dizer a preferida dele, Júlio foi apontando para cada um de nós. Ao chegar a minha vez, sem muita escolha, eu lembrei da prima da Eneida. Então, eu disse: Quanto a mim, eu comia a Marinês.
- Portanto, eu nunca disse que havia comido a tua esposa Alcindo. Eu não sei se eles te informaram errado ou se você ouviu errado. O que eu posso fazer é pedir desculpa a Marinês por ter usado o nome dela, e a você porque no momento daquela brincadeira, não pensei que poderiam te ver como corno manso. Vou ao bar hoje mesmo esclarecer isto e acabar com essa fofoca. 
Marinês pediu ao marido que guardasse o revólver na cartucheira. Embora de má vontade, os dois aceitaram as explicações dadas e as desculpas apresentadas por Evaristo. Já em casa, depois de algum tempo, ânimos acalmados, xícaras, colherinhas, açucareiro e garrafa térmica com café sobre a mesa, Alcindo, caçoando da esposa, diz: 
- João Travolta? Caramba, Nês! Astro de “No Tempo da Brilhantina”, filme americano da segunda metade do século XX? 
Marinês, rindo: 
- Foi o personagem que me veio à cabeça naquela hora turbulenta. Ele era o galã, sonho romântico da minha adolescência e das minhas amigas do colégio. 
- Você viu como ele está hoje? Rico, feio, gordo e calvo. 
- Não vi e nem quero ver. Quero guardar a bonita imagem dos sonhos da minha juventude. No que tange às sombras do presente, ainda bem que tudo ficou só na tentativa. 
- Que tentativa, Nês? Eu nem cheguei a apontar o revólver para o Evaristo porque você me impediu. Eu não fiz disparo e nem o feri de modo algum. Até poderia ter dado umas porradas nele, que bem merecia.  
- Eu sei. Eu estava lá. Não estou te acusando de nada. Como você sabe, eu trabalho no escritório do Dr. Castro, advogado criminalista. Então, eu e outros colegas que lá trabalham acabamos por usar a linguagem do escritório. Aliás, agora que Juliana e Pedro estão criados e frequentando cursos universitários, eu decidi voltar à Faculdade e terminar o curso de Direito. Sobre o entrevero com meus primos, quero apenas ponderar. Você pensou em matar o Evaristo. 
- Nês, meu bem, eu posso pensar em matar o Papa. E daí? Qual é o crime? E a minha liberdade de pensamento, onde fica? 
- Tá certo, “meu bem”. Pensar é faculdade da mente humana. Mesmo não sendo externado, o pensamento pode ser pecado segundo a doutrina cristã. Excluída essa esfera religiosa, o pensamento dentro do nosso eu interior é cogitação impunível. Liberdade plena. Entretanto, se você expressá-lo no meio social, aí a coisa muda de figura. Conforme o teor do pensamento manifestado, o contexto e a repercussão, você pode ser punido. Se você colocar em prática a ideia de matar, ainda que não chegue ao resultado final, você adentra o terreno da tentativa, ou seja, transita pelo caminho do ilícito penal. 
- Negativo, minha querida! Você, teus colegas do escritório e o Dr. Castro, que me desculpem. O fato de eu ter limpado, municiado, portado o revólver e me deslocado até a casa do Evaristo, não significa que eu tentei matá-lo. Foi um ensaio nervoso e não o ato principal.  
- Desculpe-nos você, meu querido, porque o caso não é tão simples assim. Enquanto você só lidava com o revólver no propósito de usá-lo, ainda não havia crime algum. Ficaria tudo na preparação indiferente à lei penal. Todavia, quando você saiu armado da nossa casa e foi à casa do Evaristo, o ilegal porte de arma já se configurara. Ao chegar à casa dele com a intenção de matá-lo, aí, meu querido, eu acho que você começou a execução do delito de homicídio. Faltou apenas a conclusão.  
- Aí é que está, “minha querida”.  O meu projeto não se tornou realidade. Eu mudei de ideia antes de atirar no Evaristo. Logo, não há falar em início de execução! Nês, querida, execução é execução, ação inteira e direta, sem estar dividida em começo, meio e fim.  
- O entendimento do legislador foi diferente, Alci. Para o Congresso Nacional, a execução do crime implica um itinerário trifásico: início da ação delitiva, desenvolvimento e resultado final. Embora você não tenha consumado o homicídio, o teu proceder, segundo a lei do estado em vigor, tipifica tentativa punível. Por isto, eu falei em tentativa. 
- Ah! Então é assim? Eu não mato o desgraçado, desisto antes de atirar e, mesmo assim, posso ser preso, processado e condenado por homicídio? 
- Por tentativa, Alci ... por tentativa. Não exagere. Se mudarem os costumes, as próximas gerações poderão considerar absurda a ideia de punir a tentativa. Em consequência, poderão alterar a política criminal e expurgar essa figura do código penal. Neste nosso caso concreto, o Evaristo e a Eneida não apresentarão queixa na delegacia de polícia. Sem a notícia do crime, sem a vítima e sem testemunhas, o delegado não pode instaurar inquérito. Ao desistir de matar o Evaristo, você atenuou a tua situação perante a lei. Restou o crime de ameaça. Todavia, nem por esse delito você vai responder porque a Eneida e o Evaristo decidiram sepultar esse episódio. Por nossa vez, também não vamos apresentar queixa contra eles por difamação. 
- Sabe de uma coisa, Nês? Estou gostando da ideia de você retornar para a Faculdade e terminar o curso de Direito. Vá em frente e manda brasa!  
- “Manda brasa”, Alci? Parece que a nossa memória afetiva está nos levando de volta à segunda metade do século XX!

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

DINHEIRO & FUTEBOL

O mundo esportivo brasileiro ficou alvoroçado quando veio a público o estremecimento das relações entre a diretoria do Flamengo e o jogador Gabriel Barbosa enquanto era negociada a renovação do contrato de trabalho desportivo. Houve desacordo sobre salário e prazo do novo contrato. A legislação brasileira permite os prazos mínimo de 3 meses e máximo de 60 meses. A diretoria ofereceu 12 meses. O jogador pretende 60 meses. Cuida-se de negociação legal e regular como acontece em outras áreas da economia. 
A diretoria trata o negócio como investimento. Na mentalidade capitalista não há lugar para gratidão e nem para princípios morais e religiosos. Ao propor prazo curto, a diretoria mostra temor que a médio ou a longo prazo, o investimento não seja bom. Implicada nesse temor, está a desconfiança sobre a eficiência do jogador ante o seu fraco rendimento na última temporada. 
O jogador trata o negócio como garantia do padrão de vida seu e da sua família nos próximos 5 anos. Ele informa a existência de anterior pacto oral firmado na presença dos seus familiares com diretores do Flamengo que aguardava a ratificação por escrito. Posteriormente, a diretoria, orientada pela autoridade do presidente, negou-se a celebrar o contrato por escrito com as mesmas cláusulas avençadas oralmente. A atitude do presidente neste episódio lembra a do anão que sobe nos ombros do gigante a fim de parecer mais alto e mais forte. 
O contrato vigente termina em dezembro de 2024. Portanto, extingue-se por exaustão do prazo. Em janeiro de 2025, o jogador estará livre para prestar seus serviços a outro clube, no Brasil ou em outro país. No Brasil, há leis especiais para o setor desportivo: 6.354/1976, do período autocrático; 9.615/1988 + 14.597/2023, do período democrático. A todas estas leis, as normas da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e da Previdência Social são subsidiárias. Sob a égide da Constituição e dessa legislação, os clubes e os jogadores celebram por escrito contratos de direito privado, cujas cláusulas devem estar em sintonia com a ordem jurídica positiva. O contratante (clube) se compromete a pagar salário e outras verbas ao contratado e o contratado (jogador) se compromete a prestar o serviço para o qual está qualificado. 
No caso Flamengo x Gabriel, as relações contratuais perderam a privacidade ao ganharem inusitada publicidade. As condições da renovação passaram a ser discutidas pela imprensa escrita e em programas esportivos de emissoras de televisão por jornalistas que se arvoraram em juízes e tribunais de justiça. Julgamentos de mínima racionalidade e máxima paixão. “Juízes” venais, sem qualificação jurídica, moral, intelectual e cultural. O salário do jogador incomoda esses “juízes” ciumentos e invejosos porque a remuneração deles é menor. 
Não julgueis e não sereis julgados, porque do mesmo modo que julgardes, sereis também vós julgados e, com a medida com que tiverdes medido, também vós sereis medidos
Palavras ditas no sermão da montanha por Jesus, o Cristo, cujo pressuposto é a incidência da cósmica Lei do Karma. O profeta sabia (i) que julgar é operação lógica própria da inteligência humana (ii) que há juízes do estado cujo dever é julgar pessoas e solucionar conflitos. O objetivo do profeta foi mostrar a ilicitude dos juízos morais levianos e a importância transcendental da verdade.    
Servindo-se de números sem os dados substanciais correspondentes, esses “juízes e tribunais jornalísticos”: 1) Desqualificam o jogador e o condenam por rejeitar a proposta do clube empregador. 2) Silenciam sobre o contexto do período das negociações que afetaram o rendimento do jogador em campo. 3) Ocultam a conduta hostil da diretoria e do treinador nesse período. 4) Desconsideram a evidência de a diretoria estar se aproveitando da torpeza dela própria para atirar a culpa sobre o jogador. 5) Tratam o caso sob ângulo desfavorável ao jogador e favorável ao empregador, o que levanta a suspeita de que eles, juízes dos tribunais da imprensa e da televisão, recebem jabás para atuarem com parcialidade. 6) Citam o exame de doping a que o jogador foi submetido sem mencionar que o dito exame foi realizado fora de qualquer competição, em dia de treino, dentro do clube, em frontal violação dos direitos e garantias fundamentais inscritos na Constituição da República. 7) Omitem o fato de os diretores descumprirem a palavra empenhada perante o jogador e seus familiares. 8) Mostram indiferença diante do princípio ético segundo o qual quem não honra a palavra dada revela deficiência de caráter. 
A diretoria do clube afastou o jogador da partida de 13/11/2024 (Flamengo x Atlético MG) sob o ridículo e infantil pretexto de que ele foi egoísta ao anunciar, em hora imprópria, ainda em campo, sua saída do clube, atraindo para si a simpatia da torcida. Os “juízes” acolheram essa justificativa sem a devida atenção aos fatos e às regras. 
A amena atitude do jogador não tipifica infração disciplinar em qualquer das vigentes leis esportivas. Nota-se na imagem uma pessoa tranquila, sem ódio, sem raiva, em certo momento com sorriso tristonho, explicando ao entrevistador que deixará o clube no final do ano, que a renovação não foi possível, que a diretoria não o valorizou e nem cumpriu o prometido a ele e aos seus pais. No momento certo e no local adequado, o jogador deu satisfação à torcida rubro-negra da qual é ídolo. 

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

VENEZUELA AGAIN II

O Ministério das Relações Exteriores do Brasil expediu, no dia 1º de novembro de 2024, nota em defesa dos seus diplomatas e do Presidente da República no caso do veto do governo brasileiro ao ingresso da Venezuela na aliança BRICS. Diz (a) que o Brasil sempre teve apreço ao princípio da não-intervenção e pleno respeito à soberania dos outros estados (b) que o interesse do Brasil no processo eleitoral da Venezuela, no qual esteve presente como testemunha, decorre do Acordo de Barbados.
O Brasil que a nota menciona é o governo e não o povo brasileiro. Esses dois elementos estruturais do estado nem sempre estão em sintonia. No caso em tela, uma parcela do povo está a favor e outra está contra a decisão do governo de vetar. Mediante plebiscito ou referendo, saber-se-á qual das duas parcelas constitui maioria. 
O trecho da nota sobre o respeito à soberania e a não-intervenção fica bonito no plano dos princípios. Todavia, no plano dos fatos, o governo brasileiro desrespeitou a soberania da Venezuela; intrometeu-se na política doméstica, na disputa entre situação e oposição; extrapolou o seu papel de observador; fez exigências descabidas. Ser testemunha não significa ser parte. Ser observador não significa ser interventor. Às missões estrangeiras mencionadas no Acordo de Barbados cabia unicamente observar o andamento das eleições e, nesse exclusivo mister, transitar pelo território da Venezuela. Nenhum direito foi outorgado aos missioneiros para pressionar, contestar, exigir provas, aplicar sanções, orientar e financiar as partes, estimular golpes de estado. 
O Acordo Parcial Sobre a Promoção de Direitos Políticos e Garantias Para Todos, sinteticamente tratado como Acordo de Barbados, foi celebrado em outubro de 2023, em Barbados, ilha localizada no Oceano Atlântico, a nordeste da Venezuela, território da república parlamentarista independente lá instalada. 
Constam como partes celebrantes: Governo da República Bolivariana da Venezuela, de um lado (situação) e, de outro, Plataforma Unitária da Venezuela (oposição). Só essas partes, e ninguém mais, têm legítimo interesse para questionar o Acordo. Trata-se de res inter alios acta, assunto interna corporis a ser cuidado dentro do sistema jurídico venezuelano. 
O Acordo, no seu exórdio e nas cláusulas terceira, item 5, e sexta: 1. Resguarda a soberania da Venezuela. 2. Assegura o vigor da Constituição e da lei orgânica do processo eleitoral. 3. Prima pela igualdade de meios na campanha eleitoral. 4. Opõe-se a intervenção estrangeira e a qualquer forma de violência política contra a Venezuela, seu estado e suas instituições. 5. Valoriza a democracia inclusiva e a cultura da tolerância e da coexistência pacífica. 
O objetivo do Acordo foi o de disciplinar as eleições venezuelanas do segundo semestre de 2024. Realizadas as eleições, extingue-se o Acordo pela perda de objeto.
O Assessor Especial do Presidente da República Federativa do Brasil compareceu a uma audiência na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados a fim de explicar o veto brasileiro ao ingresso da Venezuela na aliança BRICS. O veto aconteceu na 16ª Cúpula da BRICS. No seu depoimento, o assessor presidencial afirmou: (i) que o veto resultou do consenso entre os países fundadores do bloco BRICS (ii) que há um mal-estar entre Brasil e Venezuela por causa do processo eleitoral questionado pela comunidade internacional sobre falta de transparência e das atas da votação (iii) que a mediação do Brasil e de outros países estava prevista no Acordo de Barbados celebrado entre os grupos políticos venezuelanos. 
Essa versão do assessor presidencial colide com os fatos. Inexistiu consenso. Houve dissenso. Dos 5 membros fundadores da BRICS, apenas 1 votou contra a admissão da Venezuela. Faltou a unanimidade exigida pela regra da aliança para admitir novos membros. Essa regra talvez seja substituída na próxima Cúpula pela regra da prevalência da vontade da maioria nas decisões colegiadas. Da “comunidade internacional” referida pelo assessor presidencial participam o Brasil, os Estados Unidos e seus satélites. Seja o presidente democrata ou republicano, o governo dos Estados Unidos manterá a sua política hostil à aliança BRICS. Na comunidade internacional de países da BRICS essa matéria não foi questionada. O Presidente da Cúpula, na entrevista coletiva concedida à imprensa no final dos trabalhos, foi claro ao espelhar a vontade da maioria dos votantes: o reconhecimento da legitimidade das eleições e do governo da Venezuela. Essa maioria formada por África do Sul, China, Índia e Rússia, não faz restrição alguma ao ingresso da Venezuela na aliança. 
A “mediação” do Brasil e outros países referida pelo assessor presidencial não consta do Acordo de Barbados. Os países nele mencionados tinham a exclusiva missão de observar as eleições e não a de intervir. Resta saber o motivo pelo qual o assessor presidencial, com a sua enganosa versão, tentou ludibriar a comissão parlamentar. Talvez, o propósito tenha sido o de uma cautelar defesa prévia ante a possível instauração de processo de impeachment do Presidente da República por violação do artigo 4º da Constituição brasileira. 

sábado, 2 de novembro de 2024

BOLA DE OURO

Em Paris, no dia 28 de outubro de 2024 (segunda-feira), realizou-se a cerimônia anual de premiação dos melhores jogadores, treinadores e equipes de futebol do mundo. Trata-se do concurso denominado Bola de Ouro criado em meados do século XX pela empresa jornalística editora da revista France Football. De 1956 a 2024, foram premiados jogadores de futebol masculino de cada um dos seguintes países: I. Alemanha, França e Itália: 5 jogadores de cada país. II. Brasil e Inglaterra: 4. III. Espanha, Holanda, Portugal e Ucrânia: 3. IV. Argentina, Bulgária, Croácia, Dinamarca, Escócia, Hungria, Irlanda, Rússia e Tchecoslováquia: 1. 
Todos esses jogadores atuavam na Europa. Dessa lista constam apenas 2 países da América: (i) Brasil, com Ronaldo, Rivaldo, Ronaldinho e Kaká (ii) Argentina, com Messi.
Por sua vez, a FIFA, entidade máxima do futebol mundial, também realiza desde 1991, concurso com nome, data e local próprios. Essa entidade faz pesquisa com treinadores e capitães de seleções nacionais, jornalistas e torcedores de diferentes países. Até 2022, inclusive, foram agraciados jogadores dos seguintes países: I. Brasil, 3 jogadores: Romário, Ronaldo, Ronaldinho. II. Alemanha, Argentina, França, Polônia e Portugal, cada um com 1 jogador: Matthaus, Messi, Zidane, Lewandowski e Figo, respectivamente.  
A seriedade e a importância desses concursos são relativamente pequenas, embora o alarde seja grande. Basta lembrar que feras do futebol mundial como Didi, Garrincha, Pelé, Zico, Maradona, Batistuta, Kempes, Riquelme, jamais receberam prêmios desses concursos.  
Ao conceder a Rodri, jogador espanhol, o título de melhor jogador de futebol masculino da temporada 2023/2024, a citada revista provocou celeuma. O favorito era o brasileiro Vinicius. Houve protesto (a) do jogador e do seu clube Real Madrid que não compareceram à cerimônia (b) da massa de aficionados do futebol. O fato foi narrado, comentado e debatido na imprensa, nas emissoras de televisão e nas redes sociais. Esse episódio enseja algumas considerações. 
O concurso é organizado por empresa privada. A ela cabe ditar as regras e conceder prêmios a quem lhe aprouver. A empresa elabora lista de candidatos e distribui cópias a 100 jornalistas cujos nomes não são divulgados. Acredita-se que sejam jornalistas de diferentes países, que fazem coberturas de jogos de futebol e se ocupam de matéria futebolística. A empresa estabelece os critérios a serem adotados pelos jornalistas. Desses critérios, dois são de natureza técnica: referem-se aos desempenhos individual e coletivo do jogador. O terceiro critério é de natureza ética: refere-se ao comportamento do jogador na temporada. 
Os jornalistas avaliaram coisas diferentes como se fossem iguais. Na sua função de meio-campista, Rodri mostra-se bisonho em algumas jogadas, o suficiente para excluí-lo da categoria de craque. Na sua função de atacante, Vinicius é craque, porém, na seleção brasileira tem jogadores melhores do que ele: Estevão, Luiz Henrique, Rodrygo. 
Provavelmente, os jornalistas julgaram sofrível o comportamento de Vinicius. Ao receber ofensas racistas, ele perde as estribeiras; reage de forma escandalosa; faz do estádio palco e vitrine da sua revolta contra o racismo. Isto gera apreensão e constrangimento às crianças e aos adultos de ambos os sexos que comparecem aos estádios para se distrair e torcer por seus times. Há meios, ocasiões e locais adequados para manifestar-se como, por exemplo, na entrevista posterior ao jogo. Se Vinicius reincidir no comportamento censurado, como ele disse que vai fazer, certamente sofrerá consequências. Incidem: 1. A lei da Física: a toda ação corresponde uma reação em sentido contrário. 2. A lei do Direito: toda pessoa juridicamente capaz é responsável por seus atos na vida civil
Nas repúblicas democráticas onde vigoram as liberdades públicas, as cidadãs e os cidadãos não estão obrigados: (i) a aderir aos movimentos sociais da negritude, do feminismo, do homossexualismo, das minorias em geral (ii) a ouvir arengas e aturar rompantes dos componentes desses e de outros movimentos como, por exemplo, o dos neopentecostais. 
Como a sociedade não é um bloco granítico, as suas distintas partes devem se respeitar mutuamente e conviver de modo civilizado. 
No que concerne às ofensas racistas proferidas no estádio por torcedores espíritos de porco, cabe ao treinador da equipe ou ao representante legal do clube ali presente, providenciar junto ao policiamento a identificação e a detenção dos ofensores. 
No que tange aos concursos, o jogador tem o direito de se negar a participar. Ao saber que o seu nome está entre os candidatos ao prêmio, o jogador pode notificar os organizadores para retirá-lo da lista sob pena de eles responderem por perdas e danos. Nome é direito personalíssimo do seu titular. Outrossim, quem de modo tácito ou de modo expresso, aceita concorrer, submete-se, ipso facto, às regras do concurso, tanto as escritas como as postas pelo costume. 

domingo, 27 de outubro de 2024

SOBERBIA & BRICS

Na XVI Cúpula do BRICS realizada em Kazan/Rússia nos dias 22 a 24 de outubro de 2024, o veto brasileiro impediu a admissão da Venezuela como parceira do grupo. O Ministro das Relações Exteriores do Brasil disse que o veto obedeceu a “critérios”. Entretanto, não os especificou. O Chefe da Assessoria Especial do Presidente da República disse que o veto se deve à “quebra de confiança”, eis que a Venezuela não cumpriu a promessa de entregar ao Brasil as atas das eleições de julho de 2024. Entretanto, as notícias publicadas pela imprensa informam que o presidente venezuelano rechaçou as exigências do presidente brasileiro. Este fato não combina com a existência de promessa de entregar. O venezuelano agiu em sintonia com a Constituição do seu país a fim de assegurar a sua soberania. O brasileiro agiu contra a Constituição do Brasil (artigo 4º) a fim de imiscuir-se nos assuntos internos do país vizinho.
O presidente da Cúpula do BRICS, na entrevista coletiva à imprensa, declarou o seu apoio à Venezuela e reafirmou o reconhecimento da legitimidade (i) do governo daquele país (ii) do resultado das eleições lá realizadas. Isto indica que o Brasil foi o único membro a votar contra o ingresso da Venezuela no BRICS. Para admissão de membros é exigida unanimidade. Basta o veto de um só membro para excluir qualquer país da lista de postulantes. 
Os representantes do governo brasileiro agiram de acordo com as instruções dadas pelo Presidente da República. A soberbia obnubilou o córtex cerebral do presidente brasileiro e o privou de uma visão clara da realidade. Ele esperava que o venezuelano se curvasse às suas ordens. Ora, como chefe de um país soberano, o venezuelano não está obrigado a acatar ordens de estrangeiros; subordina-se exclusivamente à ordem jurídica da Venezuela. O brasileiro não gostou da reação do venezuelano e levou o caso para o terreno pessoal. Acima da fraterna relação bilateral Brasil + Venezuela alçou-se a hostil relação bilateral Lula x Maduro.
O sentimento de vingança, a vaidade, o ciúme, a autoestima excessiva, levaram o presidente brasileiro a agir com prepotência e arrogância. Das alturas olímpicas nas quais ele se coloca, atirou seus raios sobre o mortal que se atreveu a contrariá-lo. Aproximadamente, usou o seu poder de veto do seguinte modo: Ou você, reles venezuelano, me entrega as atas ou você não entra no BRICS do qual sou membro ativo. Se já é difícil a tua nação obter ajuda econômica, financeira e tecnológica dos organismos ocidentais dominados pelos Estados Unidos, mais difícil será obtê-la do BRICS comigo lá
De um modo geral, a História realça as virtudes dos seus personagens. Ao talante do historiador, ocasionalmente, também apresenta os defeitos. Todo personagem que se destaca na política, na economia, na técnica, na arte, na ciência, na filosofia, na religião, está sujeito às fraquezas da natureza humana, por maior que seja o seu esforço de autodomínio. A história das civilizações oriental e ocidental mostram chefes de estado (imperadores, reis, presidentes, ditadores) que atuam por motivos pessoais no interesse privado e não só no interesse público. 
Foi o que aconteceu no caso do veto do presidente brasileiro à admissão da Venezuela no BRICS. “Quebra de confiança” é disfarce para encobrir motivos pessoais. Confiança provém do foro íntimo de cada pessoa: acreditar em alguém, em alguma doutrina, em alguma instituição, na solidez de alguma coisa. Confia-se hoje, desconfia-se amanhã. Quem ontem confiou em Lula, hoje não confia mais. Em agosto de 2023, Lula apoiou o pedido do governo da Venezuela para ingressar no BRICS. Em outubro de 2024, Lula retirou esse apoio.   
Nas relações internacionais quem se fia na palavra do outro assume o risco de se ferrar. Não há lugar para ingenuidade. O solo é movediço. A validade da palavra tem prazo curto. Garantias não são garantidas. 
BRICS é uma aliança estável que visa o multilateralismo do desenvolvimento e da segurança globais. Estriba-se nos seguintes valores: paz, segurança, justiça social, qualidade de vida. Defende o desenvolvimento sustentável, o compartilhamento da inovação e do conhecimento, a governança política e econômica mundial. Prioriza a ajuda aos países em desenvolvimento e mercados emergentes da América Latina, da África e da Ásia. Criou o Novo Banco do Desenvolvimento com sede na China, atualmente dirigido por mulher brasileira. Pretende: 1. Reduzir a dependência do dólar nas relações comerciais entre os seus membros; quiçá, cunhar moeda própria. 2. Aliviar a carga tributária. 3. Participar dos organismos internacionais em assuntos como energia, tecnologia da informação, segurança alimentar, agropecuária, saúde, meio ambiente, transporte, educação, cultura, direitos humanos. Compõe-se de 9 estados soberanos com direito a voto: África do Sul, Brasil, China, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Índia, Irã, Rússia. Outros estados soberanos podem ser admitidos na categoria de parceiros, sem direito a voto. 
A aliança começou em 2006 com 4 países e a sigla BRIC (Brasil, Rússia, Índia, China). Depois, incluiu: (i) em 2011, a África do Sul e o S de South África na sigla: BRICS (ii) em 2023: Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Irã, sem alterar a sigla. As cúpulas são realizadas a cada ano em país diferente, num rodízio entre os membros. Não há carta ou estatuto formalizado em documento escrito. As normas são postas pelas cúpulas e lançadas nas atas e declarações. Para cada reunião forma-se uma secretaria. A receita vem das contribuições dos países membros. 

sábado, 19 de outubro de 2024

VENEZUELA ET COETERA

O Ministro das Relações Exteriores do Brasil, em recente nota publicada na imprensa, informa que o governo brasileiro continuará a intermediar as relações entre o governo venezuelano e a oposição. Portanto, em frontal colisão com o artigo 4º da Constituição da República. 
O ministro diz que os presidentes do Brasil, da Colômbia e do México funcionam como “mediadores” entre o governo e a oposição venezuelanos, porém, nada informa sobre a existência de ato oficial do governo da Venezuela aceitando a mediação. Pelo noticiário da imprensa, verifica-se que o governo venezuelano não aceitou essa intromissão estrangeira nos seus assuntos internos. Ademais, a mediação, enquanto procedimento político e jurídico nas relações internacionais, destina-se a ajudar na solução pacífica das divergências entre dois ou mais estados e não a tratar das divergências entre facções internas de um estado. 
O Presidente do Brasil manteve-se passivo diante (a) da reunião do presidente argentino com a oposição brasileira de extrema direita em solo brasileiro (b) da censura pública que lhe foi endereçada pelo Ministro da Defesa do Brasil, por ter vetado a compra dos blindados israelenses. Frouxidão igual a esta não se vê na conduta do presidente venezuelano. Homens e mulheres frouxos não são vocacionados para governar estados. Nos assuntos da competência constitucional do Poder Executivo, cabe ao Chefe de Estado o dever de exercer a sua autoridade. 
A hierarquia é essencial à estrutura do estado. A sua aura de sacralidade vem reconhecida desde as antigas civilizações. Os gregos antigos expressaram-na juntando as palavras hieros (sagrado) + arkhe (poder) = hierarkhia. Cuida-se do poder escalonado da cúpula à base, essencial a um dos elementos estruturais do estado: o governo. A indisciplina conduz à anarquia. Reprimi-la é indispensável, ainda que isto não se ajuste ao perfil psicológico do detentor do poder de punir. Tolerá-la tipifica irresponsabilidade da autoridade estatal.       
Situação e oposição legítimas são polos da energia política das nações juridicamente organizadas em repúblicas democráticas. Perdem a legitimidade: (i) a situação, quando despótica (ii) a oposição, quando sediciosa. A intromissão estrangeira nesse umbilical relacionamento político é incompatível com a soberania dos estados. 
As eleições nos Estados Unidos, que se repetem em quadriênios há 237 anos, estão marcadas para o dia 05 de novembro de 2024. Será que os 3 presidentes latino-americanos pretendem lá comparecer investidos de autoridade heróica para fiscalizá-las e exigir que o governo estadunidense lhes apresente boletins de urnas ou documentos equivalentes? Mais provável é que esses 3 fiscais heróicos se aquietem, acalmem o seu ímpeto justiceiro e se recolham às suas cavernas a fim de evitar que a opinião pública internacional os veja como 3 patetas.
A assertiva do ministro brasileiro de que a situação política na Venezuela “criou um clima de perplexidade internacional” soa ridícula. Se tal clima houve – e não há evidência de que tenha havido – a “perplexidade internacional” terá sido motivada pela conduta patética dos 3 presidentes latino-americanos e não pelo processo eleitoral da Venezuela que, diga-se de passagem, está em sintonia com a cultura jurídica dos povos deste século XXI.  
Ao vetar a compra dos blindados de Israel, o Presidente do Brasil provocou a ira do Ministro da Defesa brasileiro. Alegando que houve licitação, o ministro recriminou o Presidente da República por ter agido ideologicamente. Muito conhecidas nas esferas nacional e internacional, as práticas do caixa 2 e da comissão por fora nos negócios com a administração pública brasileira. A decisão do presidente talvez tenha impedido essas práticas no caso em tela. Ademais, preço baixo oferecido pelo vendedor não é critério exclusivo para vencer licitação. O governo de Israel declarou o Presidente do Brasil “persona non grata” e o proibiu de entrar naquele país. Como, então, o presidente vai negociar com esse país sem humilhar a nação brasileira? Concorre outro motivo grave: o presidente ter que negociar com um governo colonial, invasor, criminoso e genocida. Enquanto o bando sionista estiver no governo de Israel, o Brasil e outros países devem manter distância e boicotá-lo de todas as maneiras. 
O Ministro da Defesa, portanto, foi leviano ao acusar o Presidente do Brasil de ter agido só por ideologia e para discriminar os judeus. Outrossim, o ministro usou tom nazifascista (a) como se ideologia [do latim idea (representação mental) + logos (tratado ou estudo) + ia (sufixo)] fosse algo abominável e não algo construtivo gerado pela racionalidade humana (b) como se essa palavra não significasse tratado das ideias ou estudo do pensamento. O uso dessa palavra vulgarizou-se no Ocidente a partir do século XIX, com o sentido de conjunto de ideias, crenças e sentimentos comungados por uma classe de pessoas. Neste sentido, todo partido político tem a sua ideologia. Da sua parte, o presidente esmoreceu ao não demitir o ministro. Quanto à licitação, compete à Polícia Federal instaurar inquérito policial. Lex habemus

sábado, 12 de outubro de 2024

FUTEBOL IV

Ainda há craques no futebol masculino do Brasil e do mundo? O tempo é das vacas magras? A época é de pauperização em nível planetário? Houve nivelamento técnico pela ausência ou redução de talentos? 
Os amantes do futebol se questionam perplexos. Incursionam na semiologia em busca do significado da palavra craque.
Dois sentidos se apresentam: um relacionado a coisas e outro relacionado a pessoas. No primeiro sentido, craque indica a fratura de alguma coisa. Exemplos: desmoronamento parcial de uma montanha, falência de uma empresa ou de um grupo financeiro. No segundo sentido, craque indica a excelente habilidade de alguém no fazer. Exemplos: a do médico cirurgião em transplantar órgãos, a do político em iludir o eleitorado, a do advogado em defender a clientela, a do pianista em executar partituras, a do atleta em praticar atletismo. 
No futebol, craque é o qualificativo que se dá ao jogador cujas habilidade e eficiência estão acima do desempenho comum dos outros jogadores da sua e das outras equipes. Há goleiros, defensores, armadores e atacantes, cada qual na sua respectiva função que, frequente e regularmente, exibem em campo habilidade e eficiência acima do comum. São os craques. Bons jogadores são ofuscados pelos craques sem que isto seja intencional ou premeditado. Trata-se de consequência natural do modo de jogar do craque. Há craques como Didi, Ademir da Guia, Beckham, Messi, que por especial temperamento, não gostam de ser (i) exibidos como superiores aos seus colegas de profissão (ii) comparados com outros craques da constelação dos grandes mestres. 
O craque domina os fundamentos da arte de jogar futebol de acordo com a sua função em campo. Ser craque é conditio sine qua non para o jogador ocupar o trono do melhor do mundo. Os melhores jogadores do mundo satisfazem critérios objetivos de avaliação, tais como: 1) Inteligência lúdica, o que implica boa visão de jogo, criatividade, versatilidade, capacidade de controlar o ritmo do jogo e de improvisar. 2) Habilidade no uso do corpo seu e do adversário. 3) Eficiência na armação das jogadas, nos desarmes, nos passes, nos dribles, nos cabeceios, nos chutes a gol, nas cobranças de falta e de escanteio. 4) Espírito de equipe balanceado com o traquejo individual.
Acima do craque situa-se o jogador genial. Todo jogador genial é craque, porém, nem todo craque é jogador genial. A diferença está no grau de inteligência lúdica, ou seja, na capacidade cerebral, durante as partidas, de controlar a dinâmica do jogo no amplo leque das táticas utilizadas pelas equipes em confronto. O gênio tem essa capacidade em grau máximo. A galeria dos jogadores geniais é pequena. São eles: Alemanha: Beckenbauer. Argentina: Riquelme. Brasil: Leônidas, Didi, Garrincha, Pelé, Gerson, Ronaldinho Gaúcho. França: Zidane. Holanda: Cruyff. Hungria: Puskas. Inglaterra: Beckham. Itália: Pirlo. Portugal: Eusébio. 
Dezenas de outros jogadores tratados como gênios na América e na Europa são, na realidade, fabulosos craques admirados por suas brilhantes atuações. 
Para integrar as seleções, cada país convoca os seus melhores jogadores, veteranos e novatos. Nos jogos preparatórios para Copa do Mundo/2026, nota-se a presença de bons jogadores, de alguns craques e a ausência de jogadores geniais. 
A atual seleção brasileira enquadra-se nesse panorama. Nenhum gênio. Poucos craques. Muitos jogadores bons. Nenhum jogador medíocre ou ruim. Treinador bom, consciente, moderado, realista, com agudo senso de responsabilidade. Órgãos dirigentes na expectativa das novas eleições corporativas que podem influir na estrutura e no funcionamento da seleção. 
No jogo de quinta-feira, dia 10/10/2024, a seleção mais fraca tecnicamente (chilena) deu enorme trabalho à seleção menos fraca (brasileira). Os brasileiros gastaram 45 minutos para marcar o primeiro gol. Depois, gastaram mais 45 minutos para marcar o segundo. Valeu pelo denodo. A vitória (2x1) melhorou a classificação da brasileira nos citados jogos. Ante o nivelamento geral das seleções, a brasileira estará na América do Norte com chance de vencer a Copa. 

sábado, 5 de outubro de 2024

VENEZUELA AGAIN

O Presidente da República Federativa do Brasil discursou na abertura da sessão anual regular da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. Jornalistas interpelaram-no por haver omitido no seu discurso a “crise” na Venezuela. O presidente respondeu que somente a ele cabia decidir o que colocar nos seus discursos. Todavia, equivocou-se ao dizer que gostaria do retorno da Venezuela à normalidade democrática. Não há retorno ao lugar de onde nunca se saiu.   
A “crise” da Venezuela está na cabeça dos seus inimigos interessados em deturpar os fatos e denegrir a sua imagem. Tanto pessoas naturais como nações passam por situações aflitivas constantemente. Estão aí, em nossos dias: [1] Rússia x Ucrânia + Estados Unidos. [2] Palestina + Líbano + Síria + Irã x Israel + Estados Unidos. A causa dessas “crises” é sempre a mesma: a natureza humana. Os motivos variam: vizinhança incômoda, riqueza alheia, espaço vital, geopolítica, fé religiosa, crença filosófica, ideologia, fanatismo, ambição, inveja, vaidade, ofensa, vingança.  
Na América do Norte, em 1787, encerrados os trabalhos da Convenção Nacional, instauraram-se vigorosas campanhas a favor e contra a recém elaborada Constituição dos Estados Unidos. A favor da Constituição, Alejandro Hamilton, John Jay e Santiago Madison publicaram uma série de ensaios na imprensa sob o pseudônimo Publio. Depois, os ensaios foram reunidos em livro denominado “El Federalista” na edição em espanhol. Ao defender a necessidade da união dos 13 estados em uma única federação, Hamilton diz que, por serem os homens ambiciosos, vingativos e rapaces, confederações separadas seriam um desastre. Ele cita Péricles, governante grego, para ilustrar o argumento de que motivos pessoais se mesclam com motivos políticos. Os ressentimentos, os temores e as paixões de Péricles foram a perdição da república ateniense. [Fondo de Cultura Económica. México. 1943. P.19].
O Presidente do Brasil certamente está informado: (i) de que um dos líderes do frustrado golpe de estado na Venezuela (julho/2024), Edmundo Gonzalez Urrutia, se exilou na Espanha (ii) de que lá, ele admitiu a armação do golpe e confessou que agiu coagido por seu grupo (iii) que ele concordou com a decisão da suprema corte da Venezuela declaratória da legitimidade das eleições. 
Ao bater na tecla das atas das eleições após as declarações do co-autor do golpe, o presidente brasileiro: (i) está sendo impertinente e mais realista do que o rei (ii) pretende colocar-se acima da suprema corte venezuelana (iii) viola norma de direito internacional inscrita no artigo 4º da Constituição da República Federativa do Brasil, ao se intrometer em assunto interno de estado soberano.  
Para seguir o seu destino como lhe convém, a Venezuela não necessita e nem depende da opinião e fiscalização de nenhum chefe de governo de país americano. 
Falante compulsivo, o presidente brasileiro fala tolices como, por exemplo, “retorno da Venezuela à normalidade democrática”, quando aquela nação já mantém forma democrática de governo há muitos anos. O brasileiro parece sugerir ao venezuelano, adesão à democracia liberal e à política estadunidense. 
O conceito de democracia conserva a semântica original: poder do povo; porém, na Idade Moderna, adquiriu conotação ideológica. Referido à polis (cidade/estado grega) esse poder significa capacidade do povo de governar a si próprio. Entretanto, esse poder não era – e continua não sendo – exercido pela totalidade da população e sim por uma diminuta parcela que a representa. Constituída inicialmente só de homens adultos, livres e proprietários, essa parcela da população passou, através dos séculos, a incluir homens comuns; depois, homens e mulheres adultos com escolaridade e dentro de determinada faixa etária. 
No Brasil, a Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988 incluíu no corpo eleitoral os adolescentes com idade igual ou superior a 16 anos e os analfabetos.
A democracia passou a ser vista com lentes ideológicas tendo por escopo o bem-estar coletivo, a segurança, a paz e a felicidade das pessoas naturais e das nações. Estendeu-se do âmbito político ao social e ao econômico. Relações de pais e filhos na família, de mestres e alunos na escola, de patrões e operários na fábrica, enfim, relações humanas fundadas em princípios democráticos.
Nos estados socialistas modernos, a vida política, social e econômica estriba-se no princípio igualitário; o princípio liberal resta em segundo plano. Nos estados capitalistas modernos, a vida política, social e econômica estriba-se no princípio liberal; o princípio igualitário resta em segundo plano. Nos estados socialistas, a democracia é prioritariamente igualitária; o seu esteio é a igualdade. Nos estados capitalistas, a democracia é prioritariamente liberal; o seu esteio é a liberdade. Nos dois modelos de estado, a sede do poder é o povo. 
Na Venezuela, o povo optou pela democracia igualitária no molde bolivariano e rejeitou a democracia liberal estadunidense. As eleições foram legítimas. O presidente foi reeleito no devido processo jurídico. 
Foi muito bom o Presidente do Brasil silenciar sobre a Venezuela no seu discurso na ONU. Poupou a nação brasileira de passar por mais um vexame.  

terça-feira, 1 de outubro de 2024

FUTEBOL III

Jogos preparatórios para a Copa do Mundo/2026. Seleção brasileira masculina. Nova convocação de jogadores feita em 27/09/2024 para os jogos oficiais contra as seleções do Chile e do Peru. 
Na escolha, o treinador deu preferência à jovem guarda, quiçá para ter uma equipe física, psicológica e tecnicamente renovada e bem treinada até 2026. Desse grupo constam ótimos jogadores como Alisson, Bento, Danilo, Endrick, Gerson, Luís Henrique, Marquinhos, Martinelli, Militão, Paquetá, Raphinha, Rodrygo, Vinicius. 
O treinador descartou a velha guarda certamente temeroso de que seus componentes chegassem de bengalas em 2026. Dela constam ótimos veteranos como Casemiro, David Luiz, Douglas Costa, Dudu, Firmino, Gabriel Jesus, Geromel, Hulk, Lucas, Marcelo, Miranda, Paulinho, Philippe Coutinho, Renato Augusto, Thiago Silva, William.
O momento mais apropriado para o descarte dos veteranos seria depois do encerramento da fase preparatória, com a classificação para a Copa já garantida. Até o início da Copa haveria tempo suficiente para o adequado preparo da jovem guarda acrescentada de novos jogadores se fosse o caso e assim entendesse o treinador.
A imprensa esportiva questionou a ausência do novato Estevão e do veterano Neymar. O treinador esclareceu que nenhum deles está descartado. Elogiou o novato que está sob cuidados terapêuticos. Quanto ao veterano, o treinador informou que ele está se recuperando de grave lesão, mas poderá ser convocado quando voltar à atividade no seu clube e exibir boa forma.
Torcedores e jornalistas esportivos mostram-se preocupados com a ausência de Neymar, como se esse jogador fosse indispensável para o êxito da seleção. Encaram-no como “salvador da pátria” esquecidos de que na “Era Neymar” do futebol brasileiro: [1] O Santos perdeu (0 x 4) para o Barcelona a partida final do campeonato mundial de clubes. [2] Das 6 edições da Copa América nesse período, as seleções brasileiras perderam 5. [3] Das 3 edições da Copa Mundial nesse período, as seleções brasileiras perderam todas.  
Portanto, longe de ser salvador, esse jogador é perdedor, cai...cai encenador, pé-frio que jamais conquistou a cobiçada taça do torneio mundial de seleções nacionais. Cabe lembrar, ainda, a conduta social desse jogador, que pode ser qualificada de cafajestada e cabotinagem, exposta nos jornais, revistas, emissoras de televisão, edições da segunda e da terceira décadas deste século XXI.
O ufanismo endócrino de torcedores, jogadores, treinadores, jornalistas esportivos, leva-os a menosprezarem o adversário. Pelo fato de as seleções adversárias ocuparem a parte baixa da tabela de classificação, já são vistas por esses brasileiros como fáceis de serem vencidas. Com as seleções em campo se enfrentando, essa visão pode não se confirmar. O ufanismo desses brasileiros é anacrônico. Já esmorecia no final do século XX. O último alento foi no início do século XXI, com os 5 erres fabulosos: Ricardinho, Rivaldo, Roberto Carlos, Ronaldinho e Ronaldo. No século anterior, 2 erres fabulosos: Rivelino e Romário. Depois das derrotas consecutivas das seleções brasileiras nas copas do mundo de 2006, 2010, 2014, 2018 e 2022, o ufanismo brasileiro perdeu sentido. Tornou-se arrogância. 
A previsão do desempenho de uma equipe de futebol caracteriza-se pela precariedade. Exige realismo e análise dos feitos da equipe nos anos mais recentes da sua história. Algumas vezes, times no alto da tabela de classificação empataram ou perderam para times situados na parte de baixo. Algumas vezes, clubes com elenco milionário empataram ou perderam para clubes financeiramente modestos. Cada jogador é uma unidade psicossomática composta de elementos diferenciais. Nem todos têm as mesmas virtudes. Nem todos têm as mesmas deficiências. No campo entram 11 dessas unidades que devem trabalhar harmoniosamente em torno de um objetivo comum. A frieza racional que as enlaça é sobreposta pelo calor do temperamento. Esse laço híbrido: (i) responde pelos desempenhos forte e fraco da equipe (ii) nem sempre é trançado imediatamente (iii) uma vez trançado, pode se romper durante o jogo. Isto dificulta o cálculo das probabilidades. Dados que podem ser computados no cálculo aproximativo em relação a cada equipe: (i) o poder financeiro e a estrutura burocrática (ii) os equipamentos, as instalações e as locomoções (iii) a capacidade do treinador (iv) as condições de tempo e lugar para treinamentos (v) a quantidade e a sequência dos jogos no mês e no ano (vi) o potencial físico, moral e técnico dos jogadores.      
Copa Libertadores da América. Partidas semifinais. Outubro/2024. Restaram 2 times brasileiros, 1 uruguaio e 1 argentino: Atlético Mineiro x Peñarol + Botafogo x River Plate. Essas equipes jogarão primeiro no Brasil e depois no Uruguai e na Argentina, respectivamente. 

domingo, 22 de setembro de 2024

FUTEBOL II

Descrença e pessimismo à parte, confiança e otimismo à frente, a seleção brasileira masculina de futebol classificar-se-á para a Copa do Mundo/2026. Do plantel constam craques como Danilo, Endrick, Estevão, Lucas, Luís Henrique, Paquetá, Rodrygo, Vinicius. Os treinadores brasileiros estão entre os melhores do mundo, embora como tal, não sejam reconhecidos pela mentalidade colonizada de torcedores, dirigentes e jornalistas esportivos que só enxergam excelsas qualidades nos treinadores estrangeiros. O italiano por eles incensado deu-lhes uma banana. Ancelotti jamais trocaria o Real Madrid pela seleção brasileira; talvez, nem pela italiana. Saldanha, Zagalo, Telê, Parreira, Felipão, Tite, treinaram bem as seleções para as copas de 1970 a 2022, nas vitórias e nas derrotas. Para a Copa do Mundo/2026 também há ótimos treinadores: Braga, Ceni, Dorival, Luxemburgo, Mano, Renato.    
Das 22 edições da copa do mundo, as seleções brasileiras participaram de todas, porém, venceram apenas 5; foram derrotadas em 17. Portanto, a derrota diante da valente seleção paraguaia em Assunção (10/09/2024) nada tem de vergonhosa e só assusta a quem desdenha seleções sul-americanas. Estas sabem como segurar a brasileira. Elas usam retranca, marcação severa sobre os atacantes brasileiros mais perigosos, contra-ataques esporádicos e fulminantes. Embora sendo sul-americana, a brasileira sente dificuldade para superar essa tática das adversárias.  
Nenhuma das atuais seleções sul-americanas é invencível, apesar da boa qualidade dos seus jogadores e treinadores. Todavia, é possível alguma se manter invicta por certo tempo. À brasileira ainda falta bom entrosamento. O moral da equipe não está climatizado. Nada disto impedirá o êxito nas próximas partidas.
No Brasil, há canalhice tanto no mundo político como no mundo esportivo. Aliás, trata-se de deficiência moral nas relações humanas em todos os quadrantes. Contrato de jogador com o clube de futebol, por exemplo, tem extrapolado a relação bilateral como bem sugere a recente imagem exibida pela televisão: o presidente do Flamengo confabulando no estádio, ao ar livre, com a presidente do Palmeiras. Na ocasião, estavam em andamento as tratativas com o jogador Gabriel Barbosa. A imagem revela como a competição entre os dois times no gramado não afeta os negócios na área administrativa e financeira dos respectivos clubes. Em havendo comum interesse, os seus presidentes marcham unidos. As circunstâncias de tempo, lugar e publicidade indicam que a conversa incluiu o distrato do jogador com o Flamengo e o futuro contrato com o Palmeiras. Daquele encontro parece ter resultado o seguinte acordo: Palmeiras fecha as portas para Gabriel a fim de fortalecer o Flamengo na queda de braço com o jogador. Aquela imagem mostrou ao público a musculatura financeira do clube contra a musculatura física do jogador. 
Remunerada pela propaganda encomendada e pelos jabás, a imprensa esportiva lato sensu (jornais, emissoras de rádio, televisão e seus jornalistas amestrados) menospreza o jogador. Desqualifica-o pela idade e pelas condições físicas e técnicas. O treinador lhe reserva poucos minutos nos estertores do segundo tempo de cada partida no claro intuito de queimar o filme do jogador perante a torcida e a opinião pública. Sem desfrutar da simpatia do treinador e da diretoria, tratado como mercadoria ou peça de máquina, ele é boicotado, deixado no banco sob a falsa afirmativa de não estar em forma. No entanto, ao entrar em campo, Gabriel mostra que está bem física e tecnicamente. Esse boicote reduziu a quantidade de gols que ele fazia e que lhe rendeu o apelido de Gabigol. 
Evidente que fará mais gols o jogador colocado por 90 minutos na área adversária, servido por companheiros exclusivamente para golear. Se o jogador boicotado fosse colocado nessa mesma posição, para essa mesma função e por igual tempo, certamente, por ser craque, faria mais gols do que o antecessor. Entretanto, isto atrapalharia a estratégia da diretoria e do treinador na negociação. Também sob o falso pretexto de o jogador estar fora de forma, a comissão técnica cortou Romário da seleção de 1998. Então, Zidane lançou-a no brejo com direito a lençol sobre Ronaldo. [Seria justo e mais adequado se o melhor jogador do mundo fosse eleito pela FIFA de 4 em 4 anos por ocasião do encerramento de cada Copa Mundial].   
Embora lhe restem 10 anos de vida útil como profissional, dos 29 aos 39 anos de idade, Gabriel teve a carreira prejudicada pela canalhice alheia. O boicote no clube dificultou a convocação de Gabriel para jogar na seleção brasileira. A solidariedade classista entre os treinadores é um dos óbices à convocação. Djalminha, craque genial, por exemplo, desentendeu-se com o treinador do La Coruña, clube para o qual jogava. O treinador brasileiro, solidário com o treinador espanhol, deixou o craque fora da seleção de 2002.  

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

FUTEBOL

Campeonato brasileiro masculino de futebol. Flamengo x Vasco. Maracanã. Domingo. 15/09/2024. O empate entre as duas equipes surpreendeu os flamenguistas e, quiçá, alguns vascaínos mais impressionados com o poderio do adversário. Em campo, as duas equipes mostraram-se aguerridas e valorosas, a rubro-negra atacando intensamente, a vascaína se defendendo e contra-atacando. A tática defensiva revela respeito pelo adversário. 
Dois minutos para o final da partida. O Flamengo vencia (1 x 0) quando o seu atacante cai na linha divisória da grande área na disputa com defensor vascaíno. Os jogadores vascaínos tomam a bola, levam a jogada até a área rubro-negra e num espetacular cabeceio de mergulho, antecedido de bonita e eficiente troca de passes, marcaram o gol de empate. 
Possivelmente, esse resultado não aconteceria (i) se os flamenguistas não ficassem parados reclamando falta enquanto os vascaínos partiam com a bola nos pés em contra-ataque fulminante (ii) se o árbitro interpretasse como faltosa aquela disputa de bola, o que poderia ensejar cobrança de penalidade máxima e mudança do placar a favor do Flamengo. 
Encerrada a partida, a entrevista com a imprensa esportiva atrasou 90 minutos. A título de desculpa, o treinador do Flamengo disse que estava assimilando o desempenho da equipe e o resultado do jogo. Como o treinador não é novato, tal desculpa não pareceu convincente. Ele já treinou clubes da prateleira mais alta do futebol masculino brasileiro. Embora derrotado, ele comandou a seleção brasileira masculina em duas copas mundiais consecutivas (2018/2022). Certamente, havia outro motivo, não revelado, para tamanha demora. 
O processo de assimilação é concomitante à apreensão da ideia e/ou à manifestação da coisa que se quer absorver. No caso em tela, as coisas a serem assimiladas eram o movimento dos jogadores e o resultado da partida. A compreensão do ocorrido exige tempo de análise proporcional à complexidade das coisas e ao conhecimento, à experiência e à capacidade operacional do analista. A complexidade do mencionado jogo não era tão grande que exigisse tanto tempo de reflexão.  
Para o treinador foi difícil explicar o óbvio e argumentar em paralelo com aquilo que o público assistiu, sentiu e compreendeu. A explicação dada foi uma sequência de palavras sem sentido, um jogo de palavras desconexas de um treinador confuso e na defensiva. Pergunta feita por repórter implicando comparação com o jogo da seleção brasileira quando o entrevistado a comandava, disputado com a seleção da Croácia na última copa mundial, teve resposta embaraçosa. Naquela ocasião, o selecionado nacional vencia quando a adversária fez seu gol pouco antes do final e empatou a partida. Na decisão por tiros diretos da marca do pênalti, os croatas venceram. No jogo do campeonato brasileiro aqui mencionado, aconteceu algo semelhante. Com a vitória pelo escore mínimo e a partida a poucos minutos de terminar, o Flamengo realizou desnecessário ataque e se deu mal. O Vasco livrou-se da derrota.
A perda da vitória nos minutos finais das partidas de futebol acontece com certa frequência. Caso marcante, além do croata aqui citado, foi o da partida final da 59ª edição do torneio da Liga dos Campeões da UEFA em maio de 2014. Disputaram-na Real Madrid x Atlético de Madrid. O Atlético vencia pelo escore mínimo e já se sentia com a mão na taça quando, no minuto final dos acréscimos, houve cobrança de escanteio. Sérgio Ramos salta, cabeceia, a bola entra no gol e o período regulamentar termina com o jogo empatado. Na prorrogação, o Real faz mais 3 gols, um dos quais, pelo Marcelo (hoje no Fluminense). Placar final: 4 x 1. Real Madrid campeão pela 10ª vez.
O jogo de domingo no Maracanã foi mais um capítulo da novela Gabigol. Os capítulos desta, tal qual os capítulos das novelas de TV, têm seus lances de maldade. As partes contratantes não chegaram a um consenso sobre a renovação. Portanto, no próximo ano, Gabriel não integrará mais o elenco do Flamengo. Certamente, este é mais um motivo para a diretoria e o treinador deixa-lo no banco de reservas enquanto providenciam e experimentam substitutos. 
Física e tecnicamente, Gabriel mostra estar em forma quando entra em campo. Jogando poucos minutos no segundo tempo de cada partida, substituindo titulares em diferentes posições no ataque, mínimas são as suas chances de marcar gols e de reviver a sua performance anterior ao boicote que está sofrendo no clube. Dentro das atuais circunstâncias, não se lhe há de exigir alegria e boa vontade ao entrar em campo. Talvez, em outro clube no Brasil ou em outro país, onde seja bem aceito e respeitado por seus companheiros, pela diretoria, pelo treinador e pela torcida, ele recupere a alegria e o prazer de jogar futebol.