Na sessão plenária de 18/12/2024, o Superior Tribunal Militar (STM) concluiu o julgamento do Caso Guadalupe, referente a dois homicídios ocorridos em 07/04/2019, numa das ruas de Guadalupe, bairro da capital do Rio de Janeiro. O músico Evaldo e sua família passavam por ali quando o automóvel em que estavam foi alvo de 257 tiros disparados por uma patrulha do Exército. Ele morreu. O sogro saiu ferido. A esposa, o filho e a amiga salvaram-se. Luciano, catador de material reciclável, morreu ao socorrer aquela família durante os disparos. Nenhuma das vítimas portava armas; nenhuma agrediu a patrulha. Os patrulheiros, para garantia da lei e da ordem, estavam no Rio de Janeiro em missão oficial autorizada por decreto expedido pelo governo federal com base no artigo 142 da Constituição da República. A ocorrência ensejou processo criminal contra os patrulheiros. Materialidade e autoria dos crimes incontroversas. Fatos públicos, notórios, registrados e divulgados pela imprensa e canais de televisão. Debate circunscrito à culpabilidade. O Ministério Público denunciou os patrulheiros por crime doloso. Os advogados levantaram teses excludentes dos crimes, tais como: legitima defesa putativa por erro de fato, estrito cumprimento do dever legal.
No primeiro grau de jurisdição, todos os réus foram condenados às penas de 20 a 30 anos de reclusão, por homicídio doloso consumado, em relação às vítimas Evaldo e Luciano; e tentado, em relação ao sogro de Evaldo. No segundo grau de jurisdição, pelo voto da maioria dos juízes do STM, os delitos foram classificados como culposos e não dolosos. Do homicídio do qual Evaldo foi vítima, os patrulheiros foram absolvidos por insuficiência de provas. No seu voto, acompanhado pela maioria dos juízes, o relator vislumbrou a possibilidade de Evaldo, quando atingido pelos disparos dos patrulheiros, já estar morto por tiro anteriormente disparado pelos bandidos. In dubio pro reo. Dependendo de exames periciais idôneos (prevenidos contra a notória corrupção nos diversos setores da administração pública) o aforismo aplicável poderia ser: in dubio pro societate. A versão do réu, tenente que comandou a patrulha, tem pouco valor probatório por seu evidente interesse pessoal na absolvição. Todo réu tem o direito de calar. Nenhum réu está obrigado a falar a verdade, a confessar a sua responsabilidade pelo delito praticado, a responder perguntas que lhe possam incriminar. Da síntese do voto do relator publicada no site do STM, é possível supor que na instrução processual foram produzidas provas idôneas (testemunhas, documentos, laudos periciais) que apoiam as versões dos réus de que: (i) trocavam tiros com bandidos posicionados do outro lado da rua na qual passava o carro das vítimas (ii) da posição dos bandidos, as balas das armas deles podiam atingir o automóvel e ferir de morte quem nele estivesse. Pela morte de Luciano, os juízes não tiveram dúvida: ele foi alvejado pelos patrulheiros e não pelos bandidos. Os réus foram condenados a 3 anos de detenção.
O resultado do julgamento não agradou a parcelas da população carioca e da imprensa. As decisões judiciais nem sempre coincidem com a opinião pública e nem sempre agradam à população. O juízo de direito posto pela magistratura no devido processo legal é técnico, menos apaixonado do que o juízo de fato posto pela população, mais apaixonado. Há casos cujo enquadramento jurídico feito pelos magistrados é rejeitado pela massa popular e que geram protestos. A aplicação da lei aos casos concretos exige lógica e bom senso; não só legalidade como também razoabilidade; não só a letra da lei como também o espírito da lei. O magistrado deve se autopoliciar quanto aos seus conceitos e preconceitos sociais, políticos, ideológicos, filosóficos e religiosos, a fim de preservar a objetividade do trabalho judicante, a vigência e a eficácia da ordem jurídica, a segurança da nação, das pessoas e dos seus patrimônios.
Segundo o direito penal, a legítima defesa caracteriza-se: (i) pela precedência de injusta agressão a direito do paciente (ii) pelo uso moderado dos meios necessários à defesa do direito ferido ou ameaçado. No caso em tela, nenhum desses requisitos estava presente. Portanto, não havia justificativa para aquela saraivada de tiros!
Os casos de exclusão de crime, de isenção e de atenuação das penas, estão arrolados nos artigos 35 a 44, do Código Penal Militar. A hipótese do erro de fato plenamente justificável, prevista no artigo 36, para isentar de pena os réus, choca-se, neste caso sub judice, com o excesso culposo punível segundo o artigo 45. O excesso ocorreu e ficou impune. Daí, os civis suspeitarem de que, nesse julgamento, o parcial espírito de corporação dos militares ocupou o lugar do imparcial espírito de justiça. A intenção de matar quem estava no interior do automóvel deriva da ação direta, imoderada e violenta dos patrulheiros que, sem as cautelas devidas, agiram na certeza de que o automóvel era o mesmo que fora roubado momentos antes e de que os seus ocupantes eram os assaltantes armados. Faltou-lhes o cuidado de previamente interceptar o veículo e dar ordens para quem estivesse no interior saísse sem resistir. Caso houvesse desobediência e os ocupantes saíssem atirando, ou, com as armas apontadas para os patrulheiros, estes podiam reagir em legítima defesa própria e revidar o ataque dos bandidos. Da falta do cuidado necessário resultou a tragédia.
Os juízes viram o erro dos patrulheiros como legítima defesa putativa, ou seja, se os ocupantes do automóvel fossem realmente bandidos, a ação da patrulha estaria justificada (salvo o excesso). Os militares estariam no estrito e legal cumprimento do seu dever. Todavia, a certeza dos patrulheiros era tão somente suposição.
A tragédia mostrou à nação brasileira: (i) o despreparo dos militares para a função policial (ii) o grave erro do legislador constituinte ao redigir o artigo 142 da Constituição da República, facilitando interpretações e ações equivocadas (iii) a urgente necessidade de rever ou de extinguir esse dispositivo constitucional (iv) a conveniência de retirar a justiça militar da estrutura do Poder Judiciário e coloca-la na estrutura do Poder Executivo como justiça administrativa da hierarquia e disciplina dos militares. Em consequência, os militares que cometerem crimes em tempo de paz deverão submeter-se à jurisdição civil. Na revisão constitucional, deverá ser proibida a qualificação dos cidadãos civis brasileiros como inimigos internos da pátria.