quinta-feira, 21 de novembro de 2024

CRIME INEXISTENTE

Alcindo entrou em casa com o cenho fechado e pisando duro.  Foi direto para o quarto. Abriu a porta do guarda-roupa e do fundo da prateleira superior retirou uma caixa de madeira de 20 cm de altura x 25 cm de largura x 40 cm de comprimento. Colocou-a sobre a mesa da sala. Levantou a tampa e retirou o conteúdo: revólver Smith & Wesson, calibre 38, estojo com balas, vareta com esponja numa das pontas, uma peça retangular de camurça amarela. Limpava a arma quando, vagarosamente, Marinês se aproxima e pergunta: - O que você está fazendo? 
Enquanto colocava balas no tambor, Alcindo, de mau humor, respondeu: - O que você está vendo, Nês. 
- Por aquilo que estou vendo, Alci, eu não preciso perguntar e sim pelo que eu não estou vendo e só pressentindo. Eu vejo o que você está fazendo com as mãos e com a arma, só não vejo o que você está pensando e o que pretende fazer. Eu quero saber o que está passando pela tua cabeça. 
- Nada de complicado, Nês. Vou matar aquele filho da puta! 
- De quem você está falando, Alci? 
- Estou falando do Evaristo, o lazarento marido da tua prima. 
- O que foi que ele te fez, homem do céu? 
- Eu soube, lá no bar, que ele anda dizendo por aí, estar te comendo. 
- E você acreditou? 
- Que ele anda espalhando o boato, sim. Que ele te comeu, não. Por isto mesmo, vou crivar de balas a cara daquele mentiroso. 
- Não estou entendendo. Se eu e você não acreditamos nessa lorota, não vejo motivo para essa tua drástica reação. 
- Essa “lorota”, Nês, como você a chama, tem outro nome: di-fa-ma-ção. Quanto a você, mulher leviana. Quanto a mim, corno manso. É a nossa honra que está sendo manchada. 
- Verdade com a qual não atinei prontamente, Alci. Porém, acho melhor, antes de qualquer agressão física da tua parte, a gente conversar com a minha prima e o Evaristo. 
- Conversar? De jeito nenhum! Eu vou lá para mandar aquele puto para o cemitério. 
- Você não está pensando em mim, na Juliana e no Pedro, nossos filhos. Ninguém da família ficará feliz com você na cadeia. Eu vou com você até a casa da Eneida. Guarde o revólver e, por favor, não faça escândalo.  
Alcindo entrou na casa da prima da sua esposa com voz alta perguntando por Evaristo. - Está lá em cima, informou Eneida ao mesmo tempo em que chamava o marido pelo nome. Ela ficou apreensiva ao ver a carranca de Alcindo. Pela escada que leva ao andar superior da casa, Evaristo desceu e cumprimentou com simpatia: 
- Boa tarde, primos. A que devemos a visita? 
- À tua vida ou à tua morte, desgraçado! 
Alcindo disse isto sacando o revólver. Marinês segurou e empurrou o pulso do marido para baixo. Precavido, Evaristo saltou para trás da mesa levando com ele a toalha e o vaso de flores. Assustada, Eneida interpelou Alcindo: 
- O que é isto? Você ficou maluco? 
- Maluco não. Eu estou é furioso com o teu marido que espalhou pelo bairro a notícia de estar comendo a Marinês. 
- Santo deus! Que barbaridade é esta, minha prima? 
Eneida parecia atordoada ao se dirigir a Marinês e a Evaristo. Lá do canto onde estava entrincheirado, Evaristo brada: 
- Isso é mentira. Eu nunca disse isto! 
Marinês contestou: 
- Disse isto sim senhor, lá no bar, seu babaca. Eu jamais transaria contigo, nem que você fosse o João Travolta!  
Evaristo protesta inocência: 
- Tá havendo algum mal-entendido. 
Alcindo, girando nervosamente o punho com o revólver na mão, diz grosseiramente:
- Então, desembucha logo, palhaço! 
Eneida interfere: 
- Vamos parar com as ofensas. Vocês estão na minha casa e eu exijo respeito. Explique para eles e para mim, Evaristo, o que está acontecendo.
Eneida falou de modo zangado e autoritário. O marido obedeceu. Ele assume a postura cautelosa de quem entra em terreno perigoso. 
- Eu não sei o que disseram para o Alcindo lá no bar. Rolou o nome da Marinês, sim, durante uma brincadeira de homens. Estávamos reunidos em torno da mesa tomando cerveja, o Júlio Ramos, o Sérgio da banca, o Adauto Silva e eu, quando, a certa altura da prosa, o Júlio nos provocou:
- Qual das mulheres aqui do bairro vocês gostariam de comer? Não vale a própria esposa! 
- Depois de dizer a preferida dele, Júlio foi apontando para cada um de nós. Ao chegar a minha vez, sem muita escolha, eu lembrei da prima da Eneida. Então, eu disse: Quanto a mim, eu comia a Marinês.
- Portanto, eu nunca disse que havia comido a tua esposa Alcindo. Eu não sei se eles te informaram errado ou se você ouviu errado. O que eu posso fazer é pedir desculpa a Marinês por ter usado o nome dela, e a você porque no momento daquela brincadeira, não pensei que poderiam te ver como corno manso. Vou ao bar hoje mesmo esclarecer isto e acabar com essa fofoca. 
Marinês pediu ao marido que guardasse o revólver na cartucheira. Embora de má vontade, os dois aceitaram as explicações dadas e as desculpas apresentadas por Evaristo. Já em casa, depois de algum tempo, ânimos acalmados, xícaras, colherinhas, açucareiro e garrafa térmica com café sobre a mesa, Alcindo, caçoando da esposa, diz: 
- João Travolta? Caramba, Nês! Astro de “No Tempo da Brilhantina”, filme americano da segunda metade do século XX? 
Marinês, rindo: 
- Foi o personagem que me veio à cabeça naquela hora turbulenta. Ele era o galã, sonho romântico da minha adolescência e das minhas amigas do colégio. 
- Você viu como ele está hoje? Rico, feio, gordo e calvo. 
- Não vi e nem quero ver. Quero guardar a bonita imagem dos sonhos da minha juventude. No que tange às sombras do presente, ainda bem que tudo ficou só na tentativa. 
- Que tentativa, Nês? Eu nem cheguei a apontar o revólver para o Evaristo porque você me impediu. Eu não fiz disparo e nem o feri de modo algum. Até poderia ter dado umas porradas nele, que bem merecia.  
- Eu sei. Eu estava lá. Não estou te acusando de nada. Como você sabe, eu trabalho no escritório do Dr. Castro, advogado criminalista. Então, eu e outros colegas que lá trabalham acabamos por usar a linguagem do escritório. Aliás, agora que Juliana e Pedro estão criados e frequentando cursos universitários, eu decidi voltar à Faculdade e terminar o curso de Direito. Sobre o entrevero com meus primos, quero apenas ponderar. Você pensou em matar o Evaristo. 
- Nês, meu bem, eu posso pensar em matar o Papa. E daí? Qual é o crime? E a minha liberdade de pensamento, onde fica? 
- Tá certo, “meu bem”. Pensar é faculdade da mente humana. Mesmo não sendo externado, o pensamento pode ser pecado segundo a doutrina cristã. Excluída essa esfera religiosa, o pensamento dentro do nosso eu interior é cogitação impunível. Liberdade plena. Entretanto, se você expressá-lo no meio social, aí a coisa muda de figura. Conforme o teor do pensamento manifestado, o contexto e a repercussão, você pode ser punido. Se você colocar em prática a ideia de matar, ainda que não chegue ao resultado final, você adentra o terreno da tentativa, ou seja, transita pelo caminho do ilícito penal. 
- Negativo, minha querida! Você, teus colegas do escritório e o Dr. Castro, que me desculpem. O fato de eu ter limpado, municiado, portado o revólver e me deslocado até a casa do Evaristo, não significa que eu tentei matá-lo. Foi um ensaio nervoso e não o ato principal.  
- Desculpe-nos você, meu querido, porque o caso não é tão simples assim. Enquanto você só lidava com o revólver no propósito de usá-lo, ainda não havia crime algum. Ficaria tudo na preparação indiferente à lei penal. Todavia, quando você saiu armado da nossa casa e foi à casa do Evaristo, o ilegal porte de arma já se configurara. Ao chegar à casa dele com a intenção de matá-lo, aí, meu querido, eu acho que você começou a execução do delito de homicídio. Faltou apenas a conclusão.  
- Aí é que está, “minha querida”.  O meu projeto não se tornou realidade. Eu mudei de ideia antes de atirar no Evaristo. Logo, não há falar em início de execução! Nês, querida, execução é execução, ação inteira e direta, sem estar dividida em começo, meio e fim.  
- O entendimento do legislador foi diferente, Alci. Para o Congresso Nacional, a execução do crime implica um itinerário trifásico: início da ação delitiva, desenvolvimento e resultado final. Embora você não tenha consumado o homicídio, o teu proceder, segundo a lei do estado em vigor, tipifica tentativa punível. Por isto, eu falei em tentativa. 
- Ah! Então é assim? Eu não mato o desgraçado, desisto antes de atirar e, mesmo assim, posso ser preso, processado e condenado por homicídio? 
- Por tentativa, Alci ... por tentativa. Não exagere. Se mudarem os costumes, as próximas gerações poderão considerar absurda a ideia de punir a tentativa. Em consequência, poderão alterar a política criminal e expurgar essa figura do código penal. Neste nosso caso concreto, o Evaristo e a Eneida não apresentarão queixa na delegacia de polícia. Sem a notícia do crime, sem a vítima e sem testemunhas, o delegado não pode instaurar inquérito. Ao desistir de matar o Evaristo, você atenuou a tua situação perante a lei. Restou o crime de ameaça. Todavia, nem por esse delito você vai responder porque a Eneida e o Evaristo decidiram sepultar esse episódio. Por nossa vez, também não vamos apresentar queixa contra eles por difamação. 
- Sabe de uma coisa, Nês? Estou gostando da ideia de você retornar para a Faculdade e terminar o curso de Direito. Vá em frente e manda brasa!  
- “Manda brasa”, Alci? Parece que a nossa memória afetiva está nos levando de volta à segunda metade do século XX!

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