sábado, 14 de dezembro de 2024

OS NEURÔNIOS DA VIZINHA

Na varanda, sentados sobre almofadas verdes nas cadeiras de vime, ao redor de pequena e baixinha mesa com tripé de ferro e tampo de vidro circular, Rosália e Júlio conversavam com seus amigos e vizinhos Adélia e Cristiano. Moravam na mesma rua de um bairro ajardinado longe do centro da cidade. Sentiam nas faces o frescor da brisa noturna sucessora do calor da tarde. Como um enxame de vaga-lumes, as estrelas cintilavam no firmamento. Elas paravam de piscar quando passava alguma errante nuvem extraviada naquela imensidão cósmica. A Lua apareceria depois. Estava sem pressa. Com breves intervalos silentes, a conversa seguia a amenidade sugerida pela natureza naquele momento. A fim de quebrar a monotonia, Cristiano resolve preencher uma das lacunas. 
- E o custo de vida, o que vocês acham? Vocês notaram os preços das mercadorias nos supermercados? Nada ficou sem aumento, ainda mais agora no período das festas de fim de ano. Só os salários permaneceram inalterados. O 13º salário devia ser uma bonificação para o trabalhador nessa época do ano. Qual o quê! O estado com seus tributos e os credores com seus créditos avançam sobre essa renda extra do trabalhador e a reduzem a pó. Justiça social? Só no papel. O estado e as elites econômica e militar tiram o couro do trabalhador.  
Olhando e apontando para Adélia, Rosália sai do mutismo: - No tocante à carestia, nós duas sabemos disto melhor do que vocês dois. Somos nós que fazemos o supermercado e a feira.
Júlio interpela a esposa: - “Fazemos o supermercado e a feira”. O que é isso, Rô? Quem faz o supermercado é o capitalista; quem faz a feira é o feirante. Compras é o que vocês duas fazem no supermercado e na feira.
- Falei de modo comum, simples, informal, Júlio. A nossa varanda não é academia de letras e sim espaço familial para conversas descontraídas.
Adélia complementa: - É isso mesmo, Rô. Você falava em carestia e o Júlio vem com eucaristia!  O contexto da nossa prosa não se afina com a chatice literária. Despreocupadas, sem excessivo cuidado com a gramática, falamos o que queremos e do jeito que queremos.
Cristiano corrige a sua esposa: - “Falamos do jeito que quisermos”, Adélia.
- Dispenso a lição, Cris, pelos mesmos motivos apresentados pela Rô. Essa chatice de flexão verbal queima os meus neurônios.
Júlio repara: - Adélia, me diga, desde quando neurônio é lâmpada pra queimar?
Rosália sai em defesa da amiga: - Êta, Júlio! Já se acumpliciou ao Cris. Isso pega!   
Zombeteiro, Cristiano prossegue: - De flexão eu entendo. Fiz muitas flexões ao prestar serviço militar. Só que não eram verbais e sim corporais. Todas as manhãs. Corpo na horizontal no jeito de tábua. Pernas esticadas. Flexionando os braços, eu levantava e baixava o tronco até quase encostar no chão, sob os berros do tenente. Às vezes, saíamos uniformizados do quartel equipados com mochila, mosquetão, cantil, coturnos, cantando mantras. Marchávamos quilômetros comandados pelo tenente que nos fazia parar duas ou três vezes para flexões com o peso daquela tralha nas costas. Esse “privilégio” era pouco apreciado por meus amigos.  
Calmamente, Júlio refuta: - Volta e meia você conta essa estória porque sabe que eu não servi o Exército. Você quer mostrar que é mais forte do que eu. Acontece, Cris, que eu e toda a torcida do Flamengo sabemos que essa ralação de que você tanto se gaba é parte da iniciação dos recrutas nos quartéis e dos cadetes nas academias militares. Depois disto, os que se engajam como praças e os que se formam como oficiais, entram na bem-aventurança: trabalho pouco, rotina burocrática, remuneração excelente, vantagens para si e para a família
Rosália reforça o discurso do marido: - Nós, os civis, é que nos ralamos para sustenta-los. Em troca, eles derrubam nossos governos, cerceiam nossas liberdades e pisoteiam nossos direitos. Os milicos vêm fazendo isto há mais de 130 anos! Como não há inimigos externos, eles inventaram “inimigos internos”, que somos nós, os civis. Com isto, eles buscam justificar a sua existência como força armada e a obscenidade dos seus ganhos, privilégios e mordomias
Adélia comenta: - Pois é. Apesar desses tristes e infelizes capítulos da história da nossa república, ainda estamos aqui, num ciclo de paz e liberdade sabe-se lá até quando!  
- Até os teus neurônios entrarem em curto-circuito, Adélia
O comentário de Adélia não exigia resposta do interlocutor. Apesar disto, Cristiano resolveu responder para não perder a ocasião de fazer graça. Rosália socorre a amiga: - Não lhe dê ouvidos, Adélia. Piadista como é, o Cris talvez não saiba a parcial verdade que há no que ele está dizendo
- Como assim, Rô? Júlio pergunta intrigado. 
- Como assim... ora ... como assim ... Rosália fala como se a pergunta de Júlio fosse tola. 
- Saiba que as células do nosso cérebro recebem o nome de neurônios por suas características eletromagnéticas e suas funções no sistema nervoso humano. Então, meus ilustres varões assinalados, zeladores da bela e última flor do Lácio, SIM, pode haver curto-circuito entre alguns desses 100 bilhões de neurônios
- Corta esta, Rô. O espaço interno do nosso crânio não comporta tal quantidade de células. Nem aqui, nem em Marte
Cristiano caçoa sem ter noção das dimensões micrométricas das células. Rosália o desafia com trocadilho bem humorado: 
- Comporta ou sem porta, Cris, trate de embarcar na tua viagem espacial, porque além dos bilhões de neurônios, há cerca de um trilhão de outro tipo de célula de charmoso nome feminino, Glia, que auxilia aquele tipo de célula de nome masculino. Antes da tua nave pousar em Marte, Cris, coloque mais isto na bagagem: há neurônios que se diferenciam por suas especiais funções sensoriais, motoras, comunicadoras, associativas
Olhando diretamente para a amiga e quase sussurrando, Rosália se penitencia:- Desculpe Adélia, por eu ter invadido domínios do sistema nervoso humano, objeto das tuas pesquisas.   
- Tudo bem, Rô. Nada tenho a opor. Apenas, acrescento: As células do cérebro estão interconectadas. Se nos circuitos neurais houver alguma crise, haverá consequência no sistema nervoso. Disfunções ocorrem nas áreas cerebrais. As causas dessas anomalias podem ser externas como, por exemplo: traumatismo no crânio resultante de queda, ou, golpes na cabeça durante lutas de boxe como aconteceu com o campeão Muhamed Ali. 
De modo grave e conciliatório, Júlio pondera: - Nós quatro concordamos em muitas coisas e discordamos em outras. Creio que isto é normal, não só entre nós, mas, também, nas relações humanas em geral. Entre nós, as discordâncias provêm das nossas distintas formações universitárias e respectivas atividades profissionais, aptas a gerar maneiras distintas de explicar e entender os fatos da natureza e da sociedade. A minha área é Engenharia, a da Rô é Biologia, a do Cris é Arquitetura, a da Adélia é Psicologia. Daí, as possíveis diferenças nas visões do mundo de cada um. O importante é continuarmos fiéis aos nossos valores morais
Júlio interrompe o seu discurso a fim de tomar dois goles de água mineral. Rosália aproveita a pausa para emendar: 
- Fiéis também a nós próprios, aos nossos ideais, cada qual se esforçando para conhecer profundamente a si mesmo como Sócrates recomendava. Dos neurônios você saltou para as visões de mundo. O assunto da nossa conversa não reclamava tal extensão, Júlio. Vamos nos levantar daqui e adentrar à casa porque aqui na varanda o ar já está esfriando.  
Convite feito, convite aceito. Acomodaram-se na cozinha. A anfitriã ajustou o filtro de papel no coador e este no adaptador da garrafa térmica. Colocou duas colheres de sopa cheias de pó de café dentro do filtro. Chaleira na mão, derramou lentamente a água fervendo sobre o pó de café que borbulhou, tal como borbulhavam as ideias nos cérebros deles. O recinto foi tomado pelo aroma do café fresco. Olhos gulosos postos sobre o bolo de fubá feito por Maria, a diarista. Rosália colocou xícaras e pratinhos na mesa, fatiou o bolo e serviu o café. Em volta da mesa atoalhada de azul, frases curtas e poucas. Prevaleciam interjeições, síncopes e sinapses.    

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