domingo, 6 de março de 2022

FLOR SONHO E POESIA

 - Queixo-me às rosas, mas que bobagem, as rosas não falam... Que poesia é essa, Andréa? Alguém duvida que rosa não fala e nem escuta? Já vi e ouvi gente jurar que a Terra é plana, mas que flor escuta e fala, isto nunca!   
- Há rosas que falam, André: a Rosa do Mercadinho, gostosona que deixa você babando, a Rosa da Mangueira, rebola e desfila no Carnaval, a Rosa Morena, cantada em prosa e verso, a Rosa do Tribunal a nos atordoar com justiças e injustiças, a Rosa ...
- Pode parar! Engraçadinha. Não se faça de desentendida. A letra da música que falei  refere-se à rosa flor. 
- Letra poética de bela canção, André. 
- Pra você. Pra mim, não. Vejo o óbvio ululante dito por um negro feio metido a poeta. Desde quando planta fala e escuta, Andréa? Nem flor, nem alface, nem goiabeira. 
- “Metido” a poeta? “Negro feio”? O que é isto, André? Amanheceste com os cornos virados? Incorporaste o espírito racista, ô meu mulato? ... simplesmente, as rosas exalam o perfume que roubam de ti. Então, essa não é frase esplendorosa, inspiração divina, gentileza dirigida à pessoa amada? E a Bíblia, meu xará, que menciona a sarça ardente que falou com Moisés? Sarça é planta rosácea, ou não é? 
- Tô fora! Flor não é ladra. Flor tem perfume próprio e não rouba coisa alguma. Só nós roubamos. Nós não temos perfume próprio e por isto fedemos. Precisamos fabricar e usar perfume para cobrir o mau cheiro dos nossos corpos. Só nós mentimos, tal como esse Moisés que diz ter ouvido a voz de uma sarça em chamas. Só pra cara dele! Se a sarça falasse, pediria socorro aos bombeiros. A fim de não parecer rabugento, eu vou mostrar boa vontade a você: admito a possibilidade de haver alguém escondido atrás dos arbustos passando instruções ao ingênuo e bondoso príncipe.    
- Cacete! Vá ser mal-humorado assim na caixa-pregos!
- Ouvindo você falar, Andréa, parece que estou ouvindo a tua bisavó Cecília. 
- A minha bisavó sabia das coisas e falava bem o que sabia, embora só tivesse frequentado a escola primária. Inteligente, observadora, ativa, trabalhou muito no próprio lar e para terceiros fora de casa. Dessa experiência, ela tirou boas lições. Apesar das carências, ela mostrou que a vida não é só trabalho e dureza, mas, também, lazer e prazer. Dançar, cantar, tocar violão, pintar, praticar esporte, enfim, como dizia o poeta baiano: “sonhar é preciso”. 
- Se me permite o corretivo, minha doce xará, acho que foi um letrado português quem disse: “remar é preciso”. Chamava-se Pessoa. Eu queria ver esse portuga sozinho num barco remando rio acima num dos afluentes do Amazonas. 
- Realmente, a frase sugere barco e água. Lembrei da Paraíba, cuja capital tem o nome desse poeta: João Pessoa. Eu acho que as mulheres sonham acordadas mais do que os homens. Mulheres sonham com um pouco de felicidade para ela e para os filhos e – quem sabe? – com um novo e galante namorado. Dureza suportar gravidez, cuidar dos filhos e do companheiro, limpar e arrumar a casa, lavar roupa, trabalhar como doméstica em casa alheia, gastar horas de ida e volta para o trabalho, manter higiene pessoal e boa aparência e, ainda, ser vista como rameira quando se defende do assédio sexual ou denuncia estupro.    
- Pois é, Andréa, triste sina das mulheres pobres. Quanto ao letrado português, eu não tenho certeza se o nome era João. Eu sei que o sobrenome era Pessoa. Ademais, pessoa nem é nome próprio de pessoa e sim apelido de qualquer pessoa que seja pessoa, entende? Questão gramatical complexa da gramática portuguesa, entende? Voltando ao compositor das rosas, ele cai na real em versos de outra canção que combinam com o que você acabou de dizer: ,,, embora eu saiba que estás resolvida, em cada esquina cai um pouco a tua vida/ e em pouco tempo não serás mais o que és/ ouça-me bem, amor/ preste atenção, o mundo é um moinho/ vai triturar os teus sonhos tão mesquinhos/ vai reduzir as ilusões a pó.
- “Cai na real”? Negativo! Ele sai da real para expressar em poesia o sentimento que nele provoca a vida neste mundo. Esse poeta carioca realça o lado amargo da vida para desencantar a mulher amada prestes a abandoná-lo. Amanhã de manhã, na PUC, depois que eu terminar a faxina, pergunto a algum professor o nome completo do poeta português.    
- Desculpe, Andrea, mas não vejo poesia nos versos do carioca. Ele diz apenas o que somos e o que ocorre sob o cobertor da miséria em que nós vivemos aqui no morro. Sobre essa realidade, qualquer aluna da PUC faria semelhante trabalho de sociologia. 
- Pelo amor de Deus, André, deixe de ser rabugento! Tem nada a ver. O trabalho universitário brota do cérebro da aluna. A poesia brota do coração do poeta. A liberdade da aluna na tarefa escolar é estreita enquanto larga é a criatividade do poeta.  
- Já entendi, “doutora”. Há coisas que a lógica não prende. No futebol, o time forte que lidera o campeonato perde para o time fraco que está na lanterna. Na política, países que ontem combatiam o nazismo do governo alemão, hoje defendem o nazismo do governo ucraniano. OK. Tudo bem. Nós, homens machos da periferia, também padecemos. Aliviamos tomando umas e outras no final da semana. Temos de trabalhar para manter mulher e filhos, pagar aluguel quando não construímos barraco em terreno de ninguém. 
- Terreno de ninguém? Essa, não! O terreno que não tem dono particular pertence ao estado. Nós construímos nosso barraco em terreno do morro que pertence ao estado. Depois, a gente recebeu o certificado oficial de posse. Aí, trocamos a madeira por tijolo e o zinco por cimento. Nasceu a nova casa, simples, modesta, mas nossa!   
- Tá bem, Andréa, não vou discutir este assunto com você, branquela mais instruída do que este seu humilde mulato. Salário mínimo, quando empregados, uns trocados de biscates, quando sem emprego fixo, nós, os pobres, vamos sobrevivendo. Por falar nisto, além do pão seco amanhecido, o nosso café anda muito aguado, minha querida. 
- Dê graças a Deus de ainda ter pão e café, meu querido. O pouco com Deus é muito. Manteiga? Só no começo do mês e olhe lá! Tudo muito caro. Logo que a água ferve eu desligo o fogo rapidamente para economizar o gás. O preço do botijão está pela hora da morte. Faço o pacote de café de meio quilo durar o mês inteiro. Coador de papel joga-se fora depois de usado. Então, prefiro usar coador de pano porque é durável. Nele coloco uma colher rasa de pó de café e despejo a chaleira de água fervendo. Sai aguado, mas não perde o gosto e você pode tomar café todas as manhãs.
- Isso aí, dileta companheira: economizamos, não engordamos e ainda transamos.  


Nenhum comentário: