domingo, 20 de março de 2022

VOCAÇÃO GUERREIRA II

A dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) mudou o paralelogramo de forças no tabuleiro político. A Conferência Sobre Segurança e Cooperação na Europa, em Helsinque (Finlândia), realizada por entendimento entre Moscou e Washington no comum propósito de congelar a guerra fria, foi o aveludado início da derrocada. [Détente, 1975]. Na chefia da URSS, Leonid Brejnev esperava (i) o reconhecimento internacional das fronteiras entre os países da Europa (ii) evitar intervenções como as ocorridas na Alemanha Oriental (1953), Hungria (1956) e Tchecoslováquia (1968).
Brejnev aceitou as cláusulas sobre direitos humanos contidas na Ata Final da Conferência. Alicerçados nessas cláusulas, os dissidentes da confederação soviética (estados satélites + estados federados) exigiram do Kremlin, coerência e liberdade. A má situação econômica da URSS (1981-1990) contribuiu para o desfecho implosivo. Fator espiritual consistente, a visita do Papa à Polônia também ajudou a minar a estrutura soviética (1979). Brejnev tentou impedir a visita porque sabia que o Papa não tinha canhões, como dissera Stalin, mas tinha outro tipo de força oposto ao ateísmo do estado soviético ("a religião é o ópio do povo"). O governo da Polônia insistiu em receber o religioso católico. Invocou o orgulho nacional: o Papa era polonês! Brejnev lavou as mãos. A massa do bolo desandou sob o influxo do espírito de religiosidade cristã, de liberdade individual, de autodeterminação e de independência política. 
Bulgária, Hungria, Polônia, Romênia, Tchecoslováquia (estados satélites), desfizeram os laços com a URSS (1989). A rebeldia da juventude alemã derrubou o Muro de Berlim (novembro de 1989). A Alemanha reunificou-se tendo Berlim como capital (1990). Armênia, Bielorússia, Casaquistão, Estônia, Geórgia, Letônia, Lituânia, Moldávia, Rússia e Ucrânia (estados federados) romperam o vínculo federativo com a URSS (estado federal soviético). Mikhail Gorbachev, chefe do governo soviético que iniciara a Perestroika, finalmente assina, em dezembro de 1991, o decreto de extinção da URSS.
Consequências: 1. Ata final da Conferência de Helsinque, que fixara as fronteiras europeias, perdeu a eficácia. 2. Pacto de Varsóvia (URSS + estados satélites, 1955), desestruturou-se. 3. Motivação original da OTAN (EUA + estados capitalistas, 1955), esvaneceu-se. 4. Fim da guerra fria. 5. A polaridade esfumou-se. 6. EUA adquirem o status de única e hegemônica potência mundial.  
No século XXI (2001-2100), China, Rússia e União Europeia quebram a hegemonia americana. O desenvolvimento econômico do Japão e dos “tigres asiáticos” (Cingapura, Coréia do Sul, Hong-Kong, Taiwan) contribuiu para essa quebra. 
A intervenção da Rússia na Ucrânia, em fevereiro de 2022, encaixa-se no mapa político europeu, confirma as fronteiras atuais, justifica-se como necessária e urgente medida cautelar de segurança preventiva, evidencia o poderio da Rússia e destaca a parceria Rússia + China, ambas com poder de veto no Conselho de Segurança da ONU. Sentindo a perda da hegemonia do seu país no concerto das nações, frustrado por não conseguir obstar a operação militar da Rússia, o presidente dos EUA partiu para ofensas pessoais. Xingou Putin de ditador (injúria) e de assassino (calúnia). Poupou Zelenski. Aliás, a media nacional e internacional fulanizou o conflito como se fosse luta de boxe: Putin x Zelenski. 
Assassino é quem dolosamente mata alguém. Na guerra, os soldados da terra, do mar e do ar, são os executores da matança. Os estrategistas e os chefes de estado planejam e autorizam as ações bélicas ofensivas e defensivas, porém, não exercem diretamente a executória função de matar. Taxá-los de homicidas e criminosos de guerra implicaria colocar no banco dos réus todos aqueles que, nos séculos XX e XXI, foram presidentes dos EUA. 
Ditador é quem, no governo do estado, dispõe: [I] do uso exclusivo e pessoal da força pública [II] da plena liberdade para ditar regras de modo unilateral e soberano [III] do poder de decisão final sobre os negócios de estado [IV] da capacidade de exigir e obter obediência. Segundo o seu sistema constitucional, a Rússia é república federativa democrática socialista. Todo o poder emana do povo e é exercido por representantes eleitos por sufrágio universal, igual, direto e secreto. O Partido Comunista é declarado força dirigente e orientadora da sociedade russa, núcleo do sistema politico, obrigado a atuar em sintonia com a Constituição e com a doutrina marxista-leninista. Organização e atividade do estado regem-se pelos princípios do centralismo democrático e da legalidade socialista. A hierarquia política e administrativa tem por fim assegurar a ordem jurídica, os interesses da sociedade e os direitos fundamentais dos cidadãos. A direção colegiada e única do estado conjuga-se com a iniciativa e a criatividade da sociedade. Vigora o princípio da responsabilidade. Todo gestor do bem público está obrigado a prestar contas. Questões transcendentais devem ser submetidas ao referendo popular. 
Na paz, os princípios e normas constitucionais são aplicados, ora de modo rígido, ora de modo flexível, conforme o caso concreto, a importância dos interesses em jogo, a situação de crise ou de normalidade, e o modelo politico, econômico e social vigente em cada país. Na guerra, o pragmatismo ofusca os dogmas da religião, da moral e do direito. A inteligência volta-se para a destruição. Vida humana posta como objeto material na mira do fuzil e dos bombardeios. 

Nenhum comentário: