sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

A BÍBLIA E A CONSTITUIÇÃO IV

Enquanto vigorar a Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 1988 (CR/1988), julgamentos com base na Bíblia ou na interpretação de textos religiosos, no âmbito do Legislativo e do Judiciário, padecerão do vício de inconstitucionalidade por violarem o fundamental princípio da laicidade do estado. A liberdade religiosa vale para todos e não só para alguns de determinada religião. Não se nega a posse de alguém no cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) por ser adepto desta ou daquela religião e sim por ter se revelado desonesto, mentiroso, hipócrita, enganador, portador de caráter incompatível com o decoro exigido de quem exerce função pública.  
O juiz e o tribunal prestam tutela jurisdicional (i) a pessoas de todas as religiões (ii) a pessoas místicas sem religião institucionalizada (iii) a pessoas que não acreditam em deus. Para essas pessoas há compreensível desconforto e constrangimento moral ao se depararem com símbolo religioso estranho à sua crença, ostentado na sala de audiências, na câmara ou no plenário do tribunal. Isto acontecia na fase imperial da história do Brasil, quando havia religião oficial. Com o advento da república, o estado passou a ser laico, ou seja, sem religião oficial. A nação continuou religiosa, porém, de forma plural e republicana. 
Não só nos tribunais, mas, também, em outras repartições públicas das esferas federal, estadual e municipal, orná-las com símbolos religiosos caracteriza afronta ao princípio da laicidade. Em artigos publicados na Tribuna da Imprensa carioca, quando ainda circulava como jornal impresso, e em postagens no sítio da rede de computadores coordenado por magistrado, lancei as ideias aqui expostas, estribado na CR/1988 que garante a igualdade de direitos e obrigações, a liberdade de consciência e de crença e declara ser vedado privar alguém dos seus direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política. [5º, I, VI, VIII].
Certa ocasião, no mencionado sítio, discutimos sobre esse assunto, em posições opostas, eu de um lado e desembargador católico de outro, ambos integrantes da magistratura fluminense. O católico afirmou que manteria o crucifixo no seu gabinete ainda que fosse retirado do plenário do tribunal. A intuição futuróloga do desembargador católico se fez presente. O novo presidente do tribunal aderiu às ideias acima citadas e determinou a retirada do crucifixo do plenário. O fato de ele ser judeu certamente contribuiu para essa boa e adequada iniciativa. 
Outra herança dos tempos imperiais e autoritários que ainda permanece no costume forense é a posição do acusador em patamar superior ao do defensor nas audiências das varas e nas sessões dos tribunais. A posição do agente do ministério público, autor da ação penal – portanto, parte ativa da relação processual – sentado ao lado do magistrado, passa ao público a imagem de conluio entre o órgão acusador e o órgão julgador. As aparências são valiosas às instituições e às autoridades públicas e por isto devem ser bem cuidadas. “Não basta à mulher de César ser honesta; ela tem que parecer que é honesta”. 
O democrático princípio da igualdade de todos perante a lei e a paridade de forças entre acusação e defesa que dele emana não estão refletidos na arquitetura forense e no funcionamento do judiciário brasileiro. Às vezes, no plano dos fatos, o mencionado conluio acontece realmente, como se viu na chamada operação lava-jato em Curitiba/PR. O infame conluio ocorreu do piso à cúpula do Poder Judiciário naquele vergonhoso capítulo da história forense, expressão do mais sórdido corporativismo da magistratura nacional. Tristes trópicos! 
O motivo da cumplicidade foi político partidário: impedir a eleição à presidência da república do candidato do Partido dos Trabalhadores. Depois de alcançado esse propósito com a injusta prisão do candidato por 580 dias, o STF anulou os processos criminais instaurados contra ele. Por indução do ministro Fachin, os processos retornaram às instâncias inferiores para recomeçar do zero e renovar a esperança de impedir nova candidatura do líder petista. Todos foram arquivados para frustração não só do esperto e traiçoeiro ministro, como também para desespero de todos os antipetistas invejosos, preconceituosos e deficientes morais.  
Serve de amostra o processo referente ao triplex de Guarujá, mencionado por tendenciosa emissora de TV, useira e vezeira em manipular notícias e falsear a verdade. A contragosto da juíza, esse processo foi arquivado com base na regra da prescrição. Decisão extintiva da punibilidade. Portanto, nem condenatória, nem absolutória. Curiosidade jurídica: prescrição de crime que não existiu! À semelhança do caso do sítio de Atibaia/SP, não havia prova alguma da materialidade e da autoria do crime imputado ao petista. Havia tão só a montagem artificial de suposições e de fatos aleatórios feita pelo agente do ministério público e pelo juiz de Curitiba. 
Ao contrário do afirmado por adversários, inclusive jornalistas da tendenciosa média corporativa, a liberdade do petista não resultou de “filigranas jurídicas” e sim da justa e correta aplicação de preceitos constitucionais atinentes aos direitos humanos e, em especial, ao devido processo jurídico, ante a ilegal e gravíssima conduta do juiz da causa: parcialidade. O STF decidiu em harmonia com o modelo constitucional brasileiro: estado democrático de direito.  
Filigrana tem significado decorativo, algo tecido em fios de ouro ou prata, trabalho feito com arte, delicadeza e fantasia. Na operação lava-jato houve muita fantasia, obra de arte criada pelo juiz e pelo procurador da república para tirar a liberdade de pessoas inocentes. Obra de arte que lhes rendeu dividendos financeiros e políticos. Arte de um grupo de moleques que, indevida e levianamente, mediante provas forjadas, destroçou a economia do país e manchou reputações.

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