domingo, 11 de outubro de 2020

O PRESIDENTE E O INTERROGATÓRIO

O atual presidente da república e o ex-ministro da justiça do seu governo figuram como investigados no inquérito instaurado no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre ilegal intervenção na polícia federal. [Inq 4831]. A relatoria coube ao ministro Celso de Mello. O pedido de reconhecimento da prerrogativa do presidente de responder o interrogatório por escrito foi indeferido por decisão monocrática do relator da qual houve recurso (agravo) submetido à apreciação do plenário do STF. Iniciado na quinta-feira (08/10/2020), o julgamento do agravo prosseguirá em nova data a ser designada pela presidência do tribunal. Na sessão inicial só o relator votou. O seu entendimento poderá prevalecer ou não, conforme votarem os demais ministros. O relator manteve a sua anterior, correta e justa decisão. Voto extenso, linguagem escorreita e bem articulada, rigor lógico, fina sintonia com o direito positivo, sustentado em farta e pertinente pesquisa legal, jurisprudencial e doutrinária. Sob ângulo topográfico, a matéria localiza-se no artigo 221, pertencente ao Capítulo VI, do Título VII, do Livro I, do Código de Processo Penal (CPP), que trata da prova testemunhal. Na sensata compreensão do relator, as prerrogativas incidem quando os titulares funcionam como testemunhas e não como investigados.

A autoridade processante tem o dever de ouvir o que o indiciado diz e não o de ler o que ele escreve. [CPP 6º, V]. Necessária, pois, a presença física do indiciado no ato processual, motivo da referência feita no retro mencionado artigo ao Capítulo III, do Título VII, do Livro I, do CPP, que trata do interrogatório do acusado. O investigado (ou réu) e a testemunha recebem tratamento legal distinto. O investigado (ou réu), embora alvo da perseguição criminal (persecutio criminis) não está obrigado a: (i) dizer a verdade quando interrogado (ii) comparecer perante a autoridade processante para ser interrogado. A testemunha, por sua vez: (i) não é o alvo da perseguição criminal (ii) está obrigada a comparecer e a dizer a verdade sob as penas da lei. Se o indiciado (ou réu) comparecer perante a autoridade, será qualificado e interrogado, mas tem o direito de não responder às perguntas que lhe forem formuladas. Se ele não comparecer, o inquérito prosseguirá regularmente, sem solução de continuidade. [CPP 185 + 186]. 

No direito moderno, a confissão perdeu o status de “rainha das provas” e não pode ser extraída do indiciado (ou réu) mediante tortura física e/ou psíquica. [CR 5º, III + CPP 197/200]. O STF já pacificou o entendimento de que o interrogatório é peça de defesa. Portanto, não pode ser utilizado pelo estado como arma de ataque contra o investigado (ou réu). Cuida-se de um direito da pessoa natural cujo exercício é facultativo. A pessoa tanto pode exercer como não exercer o seu direito; pode abdicar do exercício do seu direito sem abdicar do direito em si. 

Destarte, no caso em tela, se o presidente não tiver interesse no interrogatório, basta enviar ofício à autoridade processante informando: (i) a sua qualificação civil (ii) que não exercerá o seu direito ao interrogatório (iii) que não responderá a pergunta alguma no procedimento investigativo (iv) que acompanhará, por intermédio do seu advogado, os demais trâmites do inquérito. Se o presidente tiver interesse no interrogatório, poderá se valer, por aplicação analógica, do disposto nos incisos I e IV, do artigo 33, da lei complementar 35/1979 - lei orgânica da magistratura: “são prerrogativas do magistrado: (i) ser ouvido como testemunha em dia, hora e local previamente ajustados com a autoridade ou juiz de instância igual ou inferior (ii) não estar sujeito a notificação ou a intimação para comparecimento, salvo se expedida por autoridade judicial”. Mutatis mutandis, essa disposição legal pode ser aplicada aos presidentes da República, da Câmara dos Deputados e do Senado, inclusive para interrogatórios. 

Amparado no deferimento de anterior e igual pedido formulado pelo ex-presidente Michel Temer, o atual presidente também pretende ser interrogado por escrito e responder por escrito. No entanto, tal precedente afrontou o princípio isonômico: “todos são iguais perante a lei”, equivale dizer, no caso concreto: todos os indiciados são iguais perante a lei, vedado o tratamento privilegiado incompatível com o modelo republicano de estado vigente no Brasil. O STF abriu exceção para Temer. Se o peticionário fosse Luiz Inácio Lula da Silva ou alguém da esquerda, não haveria exceção alguma; a lei seria aplicada com o máximo rigor; os vícios do procedimento seriam ignorados ou relevados; nada que beneficiasse o réu (ou investigado) seria considerado.  

O interrogatório e o testemunho são provas orais. Responder interrogatório e prestar depoimento tudo por escrito significa desvirtuar a prova oral, trocar informações como se fora correspondência epistolar e não interrogatório ou depoimento no sentido jurídico processual. Significa ainda: (i) criar obrigação fora do rol das atribuições da autoridade processante, ou seja, obrigação de formular questionário por escrito (ii) inverter papéis (iii) capitis deminutio da autoridade processante. Exceção permitida tão só para inquirição dos deficientes auditivos. Declarações, confissões e depoimentos podem ser dados validamente por escrito através de instrumento particular com firma reconhecida ou de instrumento público lavrado em cartório. Todavia, tais atos tipificam prova documental obtida sem a garantia do contraditório. [CPP 231]. A prova oral é produzida com a garantia do contraditório no devido processo jurídico. Dotada do conhecimento “todo de experiência feito” (referido por Camões) e da “psicologia comum” (referida por Nelson Hungria, ex-ministro do STF), a autoridade processante avalia a verdade, a sinceridade, a falsidade e a perfídia do que está sendo dito e de quem está dizendo; observa peculiaridades tais como: expressão dos olhos, aperto dos lábios, tonalidade da voz, tremor das mãos, tamborilar dos dedos, roçar no colarinho. Apesar de lhe faltar esse peso, o documento poderá valer como prova oral se ratificado na presença da autoridade processante, ocasião em que o réu (ou investigado) estará sujeito ao questionamento oral. O exercício do direito ao silêncio, nesta hipótese, prejudicará o valor do documento.  

Uma vez concluído o inquérito, o ministério público poderá: [i] pedir o arquivamento por falta ou insuficiência de prova para sustentar a petição inicial da ação penal (denúncia) [ii] oferecer denúncia contra os dois investigados ou apenas contra um deles, se entender suficientes os elementos de prova contidos no inquérito,  


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