sexta-feira, 16 de outubro de 2020

DIREITO & TORTO

O direito na antiga Roma definia-se como arte do bom e do equitativo; complexo de normas consideradas justas, necessárias e úteis, ditadas pelo costume, pelo legislador e pelo jurisconsulto, que disciplinam as relações intersubjetivas tanto dos cidadãos entre si como dos cidadãos com estrangeiros. O estudo racional, metódico e sistemático dessa arte configura a ciência do direito. A eficácia da norma de direito trilha senda tortuosa, pois depende do entendimento, da vontade, do senso moral e da cultura dos destinatários (seres humanos) e dos operadores (juízes, promotores públicos, advogados). Enquanto deus escreve certo por linhas tortas, os humanos escrevem torto por linhas retas. A experiência brasileira fornece exemplos diários dos desvios na aplicação da norma jurídica. No drama processual, os juízes conferem efetividade aos direitos declarados na Constituição e nas leis. Para alguns juízes, a primazia cabe aos direitos humanos, à proteção dos indivíduos e dos cidadãos; para outros, a primazia cabe aos deveres humanos, à sociedade e ao estado. 

Nos últimos 30 anos, no Brasil, a segurança jurídica desceu a ladeira. O fator econômico encampou o fator político e este encampou o critério jurídico nos procedimentos policiais e na atuação dos agentes do ministério público e do judiciário. Contorcionismos cerebrais, interpretações capciosas, argumentações falaciosas, posturas indecorosas, frequentam a prestação da tutela jurisdicional. Serve de exemplo, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na sessão dos dias 14 e 15 deste mês (outubro/2020), sobre liberdade e prisão de um traficante de drogas. O STF reuniu-se para referendar, em sessão plenária, decisão monocrática do seu presidente que cassou decisão monocrática lançada pelo ministro relator de um processo de habeas corpus (HC). O impetrante, condenado em processo criminal, pleiteava sua liberdade por exaustão do prazo da sua prisão preventiva. O ministro relator deferiu o pedido liminarmente e determinou a soltura do paciente. A pedido do ministério público, o presidente do tribunal suspendeu a execução da ordem de soltura sob a justificativa de garantir a ordem pública ante a periculosidade do réu. 

Esse processo foi um festival de chicana. O advogado do impetrante jogou com o sistema de distribuição para o HC cair nas mãos de algum juiz cujo pensamento jurídico coincidisse com a sua pretensão. O procurador-geral da república jogou com os dias da semana para protocolar a sua petição no sábado. Poderia fazê-lo na segunda-feira. O tribunal não estava em recesso. O procurador-geral buscou e obteve o despacho do presidente cuja visão favorecia o deferimento da petição. Tal como o advogado, o procurador-geral escolheu o juiz que lhe convinha. O presidente jogou com preceito que autoriza o exame de questões urgentes no recesso do tribunal; relevou o proposital error in procedendo do procurador-geral. Como processualista e juiz da suprema corte, o presidente sabia da traquinagem, ou seja, sabia que a petição do procurador-geral não podia substituir o recurso processual adequado (agravo) para impugnar a decisão monocrática do relator. Sabia mais (i) que não há hierarquia entre juízes do mesmo tribunal (ii) que o presidente vela pelo serviço administrativo sem ser superior hierárquico dos ministros (iii) que não lhe cabe a função de revisor das decisões dos seus colegas (iv) que tal função cabe à turma ou ao plenário. O presidente agiu de má-fé e se deixou vencer pela vaidade de aparecer como destemido herói perante a opinião pública. Além de violar a garantia do devido processo jurídico, o abusivo comportamento do presidente feriu o decoro da instituição judiciária. Ao plenário da corte faltou coragem para recusar o referendo à decisão antijurídica e deselegante do seu presidente. Prevaleceu o espírito de corporação e de submissão.    

Buscando recuperar-se da queda da sua autoridade moral, o STF, num lance demagógico e, ao mesmo tempo, corporativo, cedeu à pressão da opinião pública favorável à prisão do traficante. Ao ceder à vox populi, decidiu contra legem. A autoridade estatal deixou passar in albis o prazo para renovar o decreto de prisão preventiva. Em consequência, a prisão adentrou o campo da ilegalidade. Correta, pois, a soltura do paciente, seja este perigoso ou não, pois o risco é ônus de se viver sob o império da lei na sociedade civilizada e no estado democrático de direito. 

O legislador brasileiro impôs o limite de 90 dias para duração da prisão preventiva a fim de evitar (i) os abusos praticados pelas autoridades como aqueles da operação lava-jato de Curitiba (ii) que a medida restritiva da liberdade se eternize. Dura lex sed lex. A soltura do réu é consequência imediata da ilegalidade tipificada pela omissão da autoridade estatal. Afigura-se estúpido o argumento de que não há soltura automática. Só fatos periféricos ao processo explicam tamanho disparate (rivalidades, animosidades, tensão entre os ministros). Constatada a ilegalidade ou o abuso, o juiz pode – e deve – ordenar ex officio a soltura do paciente. “Conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção por ilegalidade ou abuso de poder”. O preceito constitucional refere-se a “alguém”, pessoa humana, chame-se Anastácio ou Elvira, seja indivíduo perigoso ou não, do colarinho branco ou macacão azul, pele branca ou preta, pobre ou rico. Regra hermenêutica essencial: quando a norma jurídica não distingue não cabe ao intérprete ou ao julgador criar distinção. [CR 5º, LXVIII + CPP 654 §2º]. 

Nos votos dos ministros foi mencionada a prisão do condenado em segunda instância antes de a sentença penal condenatória transitar em julgado. O pleito é inconstitucional e politicamente oportunista. A presunção de inocência é garantia fixada em cláusula pétrea da Constituição da República. No estado de direito democrático em vigor no Brasil, essa garantia não pode ser retirada e nem modificada por emenda constitucional. Somente nova assembleia nacional constituinte (específica ou genérica) poderá dispor de forma diferente. Na crise moral que atravessa o judiciário brasileiro, os preceitos constitucionais e legais têm sido flexibilizados conforme o nome e a cara do freguês. [CR 5º, LVII + 60, §4º, IV].  

O HC é uma das mais importantes e antigas garantias contra ilegalidade e abuso de poder. Valiosa garantia da liberdade contra os erros e excessos da autoridade pública. Os seus trâmites nos tribunais têm preferência em relação aos demais processos. Todavia, no STF não tem sido assim. Ali, os trâmites dependem de circunstâncias alheias ao direito. Certo HC interposto a favor de político da esquerda repousa na gaveta. Tucano roxo, o ministro relator protela o julgamento que poderá favorecer o petista. 


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