quinta-feira, 13 de agosto de 2020

OMISSÃO CRIMINOSA

O descaso do governo federal em relação à pandemia foi objeto de recente edição do Jornal Nacional da Globo. A matéria incluiu o artigo 196 da Constituição da República. Nos termos desse artigo, saúde é direito de todos e dever do estado. A eficácia desse direito será garantida mediante políticas sociais e econômicas que visem: (i) redução do risco de doença (ii) acesso às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde. 

Incentivada pelo presidente da república, parcela da população negligencia as recomendações da ciência, rebela-se contra a quarentena e o uso de máscaras, aglomera-se em espaços abertos e em ambientes fechados. Juristas, cientistas, intelectuais, sacerdotes, qualificam de genocida a conduta do presidente da república. Responsabilizam-no pela expansão da moléstia e pelo exponencial aumento dos infectados e das mortes. Acusado da prática de vários crimes, agora agravados com as mortes de mais de 100 mil brasileiros, o presidente permanece no cargo, impassível, irônico, debochado. As ações para destitui-lo encontram obstinada resistência do presidente da Câmara dos Deputados. De modo intencional e criminoso, o deputado engavetou dezenas de pedidos de impeachment; afirma que o  momento não é oportuno e que não está convencido da existência de crime. Afronta, assim, valores essenciais da nação brasileira declarados no preâmbulo da Constituição. O dever de despachar os pedidos deriva do direito de petição reconhecido pela Constituição (art. 5°, XXXIV): 

“são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos poderes públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”. 

Cuida-se de direito entranhado na civilização ocidental desde a Magna Carta da Inglaterra de 1215 (art. 40 + 61). Constou da declaração de direitos de 1689 (bill of rights, art. 5º) e, posteriormente, das constituições de outros países, como EUA (primeiro aditamento em 1789) e França (1793). A norma jurídica é bilateral. Implica dois sujeitos na mesma relação. A um, atribui direito; a outro, atribui dever. Assim, ao direito de petição do cidadão corresponde o dever da autoridade estatal de despachá-la. Ao violar esse dever, a autoridade fica sujeita às penas da lei (prisão, perda do cargo). O presidente da Câmara violou esse dever ao deixar de despachar as petições. Despachar significa examinar e deferir ou indeferir. 

“É permitido a qualquer cidadão denunciar o presidente da república, ou ministro de estado, por crime de responsabilidade perante a Câmara dos Deputados”. [Lei 1.079/1950, artigo 14]. 

Cuida-se do direito de petição vinculado à cidadania, princípio fundamental do estado brasileiro. Por mais este ângulo, salienta-se o dever do presidente da Câmara de despachar as denúncias de impeachment, quer para recebe-las (= deferir = juízo positivo de admissibilidade) quer para rejeitá-las (= indeferir = juízo negativo de admissibilidade). Ao não fazer uma coisa, nem outra, o deputado violou princípios e normas constitucionais, legais e regimentais. Estas últimas determinam a submissão das decisões do presidente, nessa matéria, ao plenário da Casa. O deputado frustrou a eficácia da norma regimental quando, ao invés de despachar, engavetou. [CR 1º, II + Resolução 17/89. RI Câmara dos Deputados, 217/218]. 

“Compete privativamente à Câmara dos Deputados autorizar por dois terços de seus membros a instauração de processo ...”. [CR 51, I + 86].

Competência privativa do colegiado – não do presidente ou de qualquer outro deputado. Ao exercer o seu poder de modo absoluto, sem respeitar o direito em vigor, engavetando as petições, o deputado coloca-se fora e acima da Constituição republicana e democrática. Cabe ao Conselho de Ética reprimir esse abuso de autoridade (lei 4.898/1965, art. 4º, h). Quanto ao impeachment, a decisão tem que ser colegiada, em sessão plenária da Câmara, quer para a instauração do processo quando negada pelo presidente, quer para o mérito. 

A opinião do presidente da Câmara só tem valor jurídico se materializada em despacho escrito, ou em voto nas comissões e no plenário. O engavetamento tipifica exercício arbitrário das próprias razões, delito definido na lei penal. A conduta do deputado no caso em tela pode ser objeto de representação criminal e de ação penal perante o Supremo Tribunal Federal, sem prejuízo da representação perante o Conselho de Ética da Câmara. [Decreto-lei 2.848/40. CP. Parte especial, artigos 316, 317, 319, 321, 345, 348].

“Quem, de qualquer modo, concorre para o crime, incide nas penas a este cominadas, na medida da sua culpabilidade”. [CP 29]. 

Ao impedir o exame das petições pelo plenário da Câmara, o deputado assume o papel de protetor do presidente da república, ou seja, o papel de cúmplice. A falta, no regimento interno, de expressa menção ao prazo para o presidente da Câmara despachar as petições não justifica a dolosa omissão e a abusiva protelação. O direito estabelece limites no tempo para os atos processuais nas esferas política, administrativa e judiciária. Daí, a fixação de prazos. As lacunas são preenchidas pela aplicação de princípios e regras gerais e por analogia. A colmatagem é própria da atividade jurídica. Aos legisladores e aos juízes cabe colmatar eventuais lacunas do ordenamento jurídico. No presente caso, a solução está prevista na lei: 

“No processo e julgamento (...) serão subsidiários desta lei (...) o Código de Processo Penal”. [Lei 1.079/1950, art. 38]. 

Portanto, a lacuna do regimento interno é preenchida mediante aplicação subsidiária e analógica da regra do Código de Processo Penal (art. 800):

“Os juízes singulares darão seus despachos e decisões dentro dos prazos seguintes quando outros não estiverem estabelecidos: I - de 10 (dez) dias se a decisão for definitiva, ou interlocutória mista”. 

Em síntese: o dever do presidente da Câmara é de despachar, no prazo legal (10 dias), seja para deferir, seja para indeferir os pedidos. Se deferir, iniciam-se os trâmites perante comissão especial; se indeferir, essa monocrática decisão será submetida à apreciação do plenário da Câmara. Engavetar, ou seja, deixar as petições sem despacho ou sem trâmites, significa violar princípios e normas fundamentais da república. Ante essa violência, mister apurar-se a responsabilidade política e criminal do deputado, no devido processo jurídico. A representação criminal e a ação penal contra o presidente da Câmara podem ser propostas: (i) por qualquer cidadão (ii) pelos autores das petições (iii) por pessoa jurídica ou instituição cujos fins incluam a defesa da ordem jurídica e do regime democrático (iv) pelos autorizados a propor ação direta de inconstitucionalidade: Mesas do Senado e da Câmara, Governador de Estado, Procurador-Geral da República, Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partido político, confederação sindical, entidade de classe. [CR 1º, I + 5º, LIX, LXXIII + 103]. 


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