segunda-feira, 31 de agosto de 2020

CORRUPÇÃO FLUMINENSE

Em trâmites no Superior Tribunal de Justiça (STJ) o processo da ação penal proposta pelo Ministério Público Federal contra o governador do Estado do Rio de Janeiro. O governador reassumirá imediatamente as funções se a decisão liminar que o afastou for cassada pelo STJ ou pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Lastreado em operação do tipo lava-jato, o processo em tela exige cuidado redobrado ante as ilegalidades, os excessos e os objetivos políticos partidários da força-tarefa de Curitiba que colocaram em xeque a confiabilidade da justiça federal (delegados + procuradores + juízes). Quanto ao impeachment, o governador será afastado das funções se o processo for instaurado por decisão inicial da Assembleia Legislativa (recebimento da denúncia). 

Tais procedimentos judiciário e parlamentar expõem as vísceras putrefatas da administração pública fluminense. Depois da compulsória fusão do Estado da Guanabara com o Estado do Rio de Janeiro (1975) grassou a corrupção nos governos Franco, Garotinho, Cabral, Pezão e Witzel. Vieram para a Guanabara os maus costumes, mazelas, vícios, servilismo e provincianismo da tradicional política fluminense. As virtudes e o esplendor da Guanabara foram obscurecidos. A Guanabara pagou caro por ser o único estado da federação a oferecer corajosa resistência à ditadura militar. O partido da ditatura (ARENA) não conseguia vencer o partido do povo carioca (MDB). O novo RJ resultante da fusão notabiliza-se como império da ladroagem, do banditismo e do nazifascismo miliciano. Do Rio de Janeiro cantado por Lúcio Alves sobraram o céu e o mar, porque a gente feliz, se um dia existiu, já faleceu há muito tempo. Nos morros, cimento e tijolo substituíram árvores e espantaram pássaros. As ruas são área de trabalho de flanelinhas e biscateiros e morada de desempregados, pobres e mendigos.

A corrupção é própria da natureza. Os seres se corrompem e se transformam. Da esfera natural, o conceito corrupção migrou para a esfera moral: [i] deterioração do caráter humano [ii] ação ou omissão intencional para contornar a ética e o direito a fim de obter vantagem. Santo Agostinho dizia que os demônios são os desejos e as paixões em luta contra a dimensão ética do ser humano. Padre Antonio Vieira anatematizava a corrupção no setor administrativo da colônia portuguesa na América (Brasil). A corrupção e a hipocrisia na sociedade brasileira são temas de obras literárias, peças teatrais, filmes, novelas, programas humorísticos, músicas. A gente comum assim se expressava em jocosa rima: “Se gritar: pega ladrão! Não sobra um meu irmão”, que Chico Buarque aproveitou em uma das suas composições. Na lei penal brasileira, a corrupção está tipificada como crime que tem como agente quem exerce cargo, emprego ou função na administração pública. Consiste em solicitar ou receber, para si ou para outrem, vantagem indevida, ou aceitar promessa.

Companheira inseparável da administração pública, a corrupção acontece nas esferas municipal, estadual e federal e nos poderes legislativo, executivo e judiciário, mesmo quando os quantitativos são modestos e as vantagens não são em dinheiro. A constância converteu a desonestidade em norma consuetudinária assimilada por governantes e governados como se fosse direito positivo. Mentira, difamação, propaganda enganosa, falsificação, negociata, assalto ao erário, nepotismo, perseguição aos adversários, tudo isto endossado pela inércia, pelo conformismo do “sempre foi assim”. O indivíduo entra em disputa eleitoral para ser vereador, deputado, senador, prefeito, governador, presidente, tendo por escopo adquirir poder, tirar proveito pessoal do cargo, obter imunidade e facilidades. Falta sério, real e sincero compromisso com a honestidade e o bem comum. As virtudes ficam engessadas no discurso sem passar para a ação efetiva; servem, apenas, para impressionar a população e enganar o eleitorado. Falso moralismo reforçado pelo pastoreio. Tão logo assumem os cargos eletivos, os puritanos mostram as mãos sujas e o caráter devasso. Parcela dos governados aprova a desonestidade dos governantes porque faria o mesmo se estivesse no poder. 

A inversão do conteúdo em continente e do continente em conteúdo acontece no plano conceitual. Alhures, defendi a tese de que a alma não está no interior da pessoa; a pessoa é que está no interior da alma. Admitida a universalidade da alma entendida como campo de força e energia inteligente e volitiva, concluir-se-á que não só o humano, mas também todo o cosmos está nela contido. A personalidade anímica do humano resulta do mergulho do corpo nesse oceano cósmico. Morto o corpo, a personalidade permanece amalgamada na alma universal. [O Evangelho da Irmandade. Resende/RJ. RTN, 2006, p. 59].

Surfando nesse tipo de inversão, jornalista do Globonews, ao comentar o episódio fluminense, afirmou que: [i] o sistema de corrupção não está no governo [ii] o governo é que está no sistema de corrupção [iii] entra e sai governo e o sistema continua [iv] mudar governo não resolve o problema se não mudar o sistema. [TV Globo, Estúdio I, 28/08/2020].

A corrosão moral no âmago da sociedade e do estado tem como um dos fatores o alto grau de insensibilidade da maior parcela da população brasileira para com valores abstratos. Desse intestino processo corrosivo que afeta o erário, o interesse público e a nação, a massa popular não tem plena consciência. As características do carioca referidas na música “Cariocas” de Adriana Calcanhotto, correspondem à imagem estereotipada que dele fazem os sulistas. Positivo do ponto de vista poético, o retrato é negativo sob o ângulo moral e político. A música refere-se ao carioca (nativo da cidade do Rio de Janeiro e antigo Estado da Guanabara) e não ao fluminense (nativo da cidade de Niterói e antigo Estado do Rio de Janeiro). Os cariocas não são modelos de cidadãos. Gostam de conversa fiada, violar regras, desafiar autoridade, fugir das obrigações, debochar do que é institucional, caçoar de quem se dedica ao trabalho honesto, são espertalhões, zombeteiros, negligentes com a limpeza urbana. Esse espírito folgazão, essa mistura de alegria com licenciosidade e bagunça bem retratada na festa dos guardanapos em Paris, contribuiu para a ruína moral e financeira do estado, apesar dos royalties do petróleo. O tambor de ressonância perdeu o couro. 


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