segunda-feira, 25 de maio de 2020

FOSSA MINISTERIAL

Ao se demitir do cargo, o ministro da justiça acusou o presidente da república de intervir politicamente na polícia federal (abril/2020). Instaurou-se inquérito sob a supervisão do Supremo Tribunal Federal (STF) a fim de apurar os fatos (maio/2020). O presidente e o ex-ministro figuram como indiciados. Ao prestar depoimento na polícia federal de Curitiba, o ex-ministro confirmou a acusação e citou como prova o filme da reunião ministerial realizada em 22/04/2020. Requisitado pelo ministro supervisor, o vídeo foi juntado ao inquérito e submetido a exame pericial. Os pedidos de divulgação do conteúdo do vídeo foram deferidos, salvaguardadas as referências a estados estrangeiros. 
A decisão do ministro supervisor é prolixa, com algumas repetições e muitos grifos (54 páginas, quando duas bastavam). A verborragia e a vaidosa exibição de cultura caracterizam as decisões dos ministros do STF que, às vezes, encobrem outros pecados. No lado oposto, situa-se a Suprema Corte dos EUA, com seus juízes despreocupados em dar lições de direito e preocupados em julgar os casos concretos em sintonia com a Constituição e seus valores históricos, cujas decisões primam pela brevidade e objetividade e repercutem no mundo jurídico de países americanos e europeus. Provavelmente, as ameaças, as ofensas, os ataques de que o STF tem sido alvo, bem como a agitação política do momento, levaram o ministro supervisor do inquérito, na condição de decano, a se estender na exposição dos fatos e na fundamentação jurídica. Fê-lo dentro dos limites do ordenamento jurídico. Respeitou a independência e a harmonia decorrentes do princípio constitucional da separação dos poderes da república. Louvou, como atitude adequada do chefe de governo de uma república democrática, a entrega do vídeo para servir de prova no devido processo legal. Defendeu a jurisdição constitucional, a independência e a imparcialidade do STF. Advertiu sobre a essencialidade da prova no processo penal e a sua importância para o direito de defesa (deixou implícita essa importância para o órgão acusador). Sustentou a necessidade das requisições judiciais às autoridades estatais, inclusive ao presidente da república (salvo a hipótese de incidência do privilégio do segredo governamental). Citou precedente da suprema corte dos EUA (caso Watergate). Qualificou a publicidade como dogma da transparência próprio da república democrática. Afirmou a necessidade de acesso aos dados informativos em favor de uma instrução processual correta e eficaz. Referiu-se às ofensas contra os ministros do STF.      
A divulgação do vídeo exibiu um espetáculo deprimente. Palavras de baixo calão, linguajar chulo, atentados à gramática, baixo nível moral e intelectual. Tom raivoso, agressivo e autoritário. O presidente mencionou intervenção na polícia e em todos os ministérios. Em síntese, disse que: [i] ninguém o atendia no Rio de Janeiro e demitiria chefes e ministros (da esfera federal, evidentemente) se as suas ordens e solicitações continuassem a ser desatendidas [ii]  a população devia se armar para defender a sua liberdade (certamente a de ir e vir, cerceada pela quarentena) [iii] tinha segurança particular para obter informações e defender a sua família e seus amigos (aparelho estatal de segurança ineficiente). 
A acusação que motivou o inquérito, feita por Moro contra Bolsonaro, foi a de intervenção política na polícia federal. Tal generalidade não tipifica ilícito penal. A função do presidente da república tem duplo aspecto: político e administrativo. A sua ação governamental é indissociável desse duplo aspecto, o que se verifica com nitidez na escolha de servidores para cargos de confiança e dos atos de nomear e exonerar. Com esse duplo caráter, lícita é a intervenção do presidente nos órgãos da administração pública federal da qual ele é a superior e máxima autoridade. 
O vídeo revela a intenção do presidente de intervir. Na esfera criminal, intenção não é punível. Há necessidade de efetiva ação ou omissão. O presidente admite que tentou intervir na polícia do Rio de Janeiro e que não teve sucesso. Ao ministério público e ao cidadão cabe analisar se essa tentativa caracteriza algum delito (abuso de autoridade, arbitrariedade, concussão, corrupção, advocacia administrativa); se aconteceu na polícia estadual, como solicitação em defesa da família e dos amigos, ou se aconteceu na polícia federal, como ordem fundada na hierarquia administrativa. Quanto a outras condutas do presidente passíveis de enquadramento penal, poderão ser incluídas nesse ou em outro inquérito, a juízo do ministério público e do tribunal. 
O ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República expediu nota advertindo o STF de que requisição do telefone celular do presidente da república não será tolerada e provocará imprevisíveis consequências institucionais. Tiro de canhão para matar um mosquito. Em apoio a essa nota, veio outra assinada por generais e coronéis reformados mostrando descontentamento com a conduta dos ministros do STF e advertindo sobre o risco de uma guerra civil (23/05/2020). Essas notas representam manifesta atitude autoritária de quem se coloca acima da Constituição e das leis e quer impedir a coleta da prova necessária à instrução processual, o que caracteriza obstrução ilegal. Cuida-se de grave ameaça feita por militares inativos. Alguns deles tiraram o pijama e vestiram terno e gravata para servir a um governo tirano. Apostando no medo alheio, eles pretendem: (i) blindar o chefe e impedir que o celular seja incorporado ao inquérito (ii) pela força, amparar futura desobediência do presidente. Se a prova estiver fora da proteção legal do segredo, o presidente estará obrigado a entrega-la sob pena de ser processado por crime de sonegação de documento e por crime de responsabilidade.  [CP 314 + CR 85, VII].    
Considerando que os oficiais reformados continuam sob a disciplina do estatuto militar, as duas notas podem acarretar punição aos seus subscritores tendo em vista o teor subversivo da mensagem. A ausência de providência disciplinar, nesse contexto, significará que o comando do exército endossa a indisciplina e a subversão dos seus comandados.       


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