sexta-feira, 15 de maio de 2020

A RAPOSA E O GALINHEIRO

O atual presidente da república e o ex-ministro da justiça são alvos de notícia criminis gerada pelo escandaloso divórcio entre os dois. Instaurou-se inquérito sob a supervisão do decano do Supremo Tribunal Federal (STF) a fim de apurar a existência de crimes e respectivas autorias (maio/2020). Por determinação do juiz relator (ministro) os nomes de ambos foram lançados na capa do inquérito como indiciados. A matéria inclui interesses políticos partidários e corporativos. Fuga da verdade, jogo de aparências, depoimentos facciosos, manipulação de documentos, edição de gravações, tudo possível na atmosfera de falsidades que hodiernamente envolve o mundo político e social do Brasil. Destarte, as instituições civis devem ficar vigilantes e intervir no inquérito e no processo em defesa dos bons costumes e do direito.
Confiar à polícia federal de Curitiba a investigação dos delitos praticados pelo ex-ministro e ex-juiz é o mesmo que entregar o galinheiro aos cuidados da raposa. Aquela polícia foi conivente com as ilicitudes praticadas pelos procuradores e juízes federais na operação lava-jato. Há, portanto, evidente suspeição. A tarefa devia ser executada: [1] em outra circunscrição, fora da Região Sul [2] no prazo legal [3] sob sigilo quando necessário à elucidação dos fatos [4] por uma comissão especial composta de profissionais escolhidos pela Procuradoria Geral da República e pela Ordem dos Advogados do Brasil [5] com a concordância do ministro do STF sorteado relator. Para evitar que o inquérito seja mais uma farsa, a sociedade civil deve se organizar, juntar as provas e intervir na persecutio criminis, exercendo o direito de petição assegurado no texto constitucional, tal e qual procedeu ao protocolar petições de impeachment na Câmara dos Deputados. Cuida-se do exercício direto da soberania (“todo o poder emana do povo”) e dos direitos de cidadania, inclusive o de ação penal privada supletiva, o de representação e o de ajudar o tribunal (amicus curiae). 
A Constituição da República Federativa do Brasil distingue crimes de responsabilidade e crimes comuns. Tanto naqueles como nestes, o presidente brasileiro só pode ser julgado se a Câmara dos Deputados autorizar a instauração do processo mediante o voto, no mínimo, de 2/3 dos seus membros. O presidente brasileiro mostra admiração, fidelidade e submissão ao governo dos EUA. Talvez ele ficasse honrado e envaidecido se lhe fosse aplicada a jurisprudência da suprema corte daquele país que, no caso Clinton (especulação imobiliária e abuso sexual), afastou as prerrogativas do cargo presidencial por entender que não alcançavam os atos pessoais do chefe de governo (1997). Na seara comum, entram delitos definidos na legislação penal tais como: homicídio, furto, assédio sexual, ato obsceno, ato contra as finanças públicas, expor a vida ou a saúde de outrem a perigo, infringir determinação destinada a impedir introdução ou a propagação de doença contagiosa, dar causa a procedimentos contra alguém imputando-lhe crime de que o sabe inocente, caluniar, corromper, contrabandear, danificar, prevaricar, violar sigilo, obter vantagem ilícita, incitar a prática de crime, fazer apologia de fato criminoso, falsificar documentos, inserir dados falsos em sistema de informações, e tantos outros.  
Nos crimes de responsabilidade, qualquer cidadão pode denunciar o presidente da república. A petição inicial (denúncia), instruída com documentos, deve ser apresentada à Câmara dos Deputados. Compete ao seu presidente despachá-la. Se indeferir, cabe recurso à Câmara reunida em sessão plenária. Se deferir, envia o expediente à comissão especial previamente eleita. O regimento interno da Câmara e a lei especial não fixam prazo para o presidente despachar a denúncia. Essa lacuna é preenchida pelo código de processo penal, subsidiário à lei especial, que fixa o prazo de 10 dias para decisão definitiva ou interlocutória mista. 
O tempo tem valor jurídico. Decorrido o prazo: (i) prescricional, extingue-se a punibilidade (ii) decadencial, perde-se o direito de queixa ou de representação (iii) preclusivo, perde-se o direito de praticar o ato processual (iv) constitucional, perdem eficácia as medidas provisórias expedidas pelo presidente da república. 
A celeridade e a razoável duração do processo são garantias constitucionais que valorizam o tempo e devem ser respeitadas por todas as autoridades estatais. Na falta de prazo específico para determinado ato, incide o prazo geral estabelecido no ordenamento jurídico. No caso concreto do impeachment do atual presidente da república, o presidente da Câmara extrapolou o decêndio legal dentro do qual devia despachar as várias denúncias. Sua atitude pública e notória caracteriza omissão dolosa. Intimação judicial expedida pelo STF para que o presidente da Câmara despache as petições tem estribo constitucional no sistema de freios e contrapesos, sem ferir o princípio da separação dos poderes. Caso o deputado permaneça omisso, ele poderá ser processado tanto na esfera parlamentar como na esfera judiciária (perda do cargo e prisão). O direito político do cidadão de requerer o impeachment não pode sofrer cerceamento do presidente da Câmara quando vigora o estado democrático de direito. O requerimento tem de ser despachado no prazo legal, quer seja deferido, quer seja indeferido. Outrossim, por analogia com a medida provisória, no sentido favorável ao cidadão requerente e em atenção ao interesse maior da nação, poder-se-á considerar deferido o requerimento que não for apreciado no prazo legal. Nesta hipótese, mesmo sem o despacho do presidente, as petições seriam enviadas à comissão especial e seguiriam seus trâmites legais e regimentais.    
Nos crimes comuns atribuídos ao presidente da república, o respectivo inquérito – não o processo – pode ser instaurado sem autorização da Câmara. Concluído o inquérito, o chefe do ministério público pode oferecer denúncia ou opinar pelo arquivamento. Nesta última hipótese, a Constituição permite a ação penal privada supletiva. Oferecida a denúncia (ação penal pública) ou a queixa (ação penal privada) o ministro relator solicita à Câmara dos Deputados autorização para instaurar o processo. Negada autorização, arquiva-se o expediente. Concedida autorização, instaura-se o processo perante o STF.     

Fontes.
Constituição da República Federativa do Brasil. Artigos: 1°, I a III e p.u. + 3º, I + 5°, XXXIV, XXXV, LIX, LXXVIII + 51, I, + 62 § 2º + 85/86.   
Lei 1.079/50. Crimes de responsabilidade. Artigo 38.
Resolução 17/89. Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Artigos 217/218.
Decreto-Lei 3.931/41. Código de Processo Penal. Artigos 10, 20 e 800.
Lei 13.105/15. Código de Processo Civil. Artigos 138 e 218.
Decreto-Lei 4.657/42 + Lei 12.376/10. Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Artigo 4º.
Decreto-Lei 2.848/40. Código Penal. Parte especial. Artigos 121/359.

  

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