quarta-feira, 29 de abril de 2020

DIREITO DE MORRER

A Constituição da República Federativa do Brasil, ao declarar os direitos fundamentais da pessoa humana, coloca a vida em primeiro lugar. Ao tratar da família, considera dever da sociedade e do estado assegurar à criança e ao adolescente o direito à vida. A lei civil reconhece ao nascituro o direito de nascer e de herdar. A lei penal define como crime a voluntária interrupção da gravidez. Nas hipóteses de perigo de vida da gestante, de estupro e de feto sem cérebro, a lei e a jurisprudência permitem o aborto. A última e decisiva palavra neste assunto deve caber à mulher. 
A ordem jurídica supõe relações entre pessoas vivas. No mundo físico, os mortos não se relacionam, nem há interação entre vivos e mortos (salvo em sessões espíritas). A lei estabelece a obrigação dos vivos de respeitarem os mortos, seus corpos, memórias, funerais, sepulcros e a última vontade referente ao cadáver (enterro, cremação, embalsamamento) e ao destino dos bens (dinheiro, ações, móveis, imóveis, semoventes). Conforme a legislação e os costumes de cada país, aos mortos também podem ser cominadas penas. O corpo de Tiradentes foi esquartejado. O morto pode ficar sem missa, sem cerimônia funerária, sem sepultura, nos casos previstos na lei canônica.    
Matar homem ou mulher, adulto, adolescente ou criança, ainda que seja o próprio filho ao nascer, é ato definido como crime na lei penal (homicídio, infanticídio). A lei não considera crime o ato praticado em legítima defesa, em estado de necessidade, no estrito cumprimento do dever legal, ou no exercício regular de direito. No combate ao crime, os policiais tiram a vida dos delinquentes; às vezes, são os policiais que tombam. Em outros países, onde é adotada a pena de morte, o estado tem o dever de matar o criminoso na legal execução da sentença condenatória.   
O suicídio inscreve-se entre os direitos de morrer. Para quem se suicida não há punição no direito brasileiro. A lei comina pena de reclusão à pessoa que instiga alguém a se suicidar ou que presta auxílio para que outro se suicide. Há nesse dispositivo legal um reconhecimento implícito do direito de morrer, liberdade do vivente humano de encerrar a sua própria existência. Difere de pessoa a pessoa a capacidade de resistir às pressões, às desilusões, aos sofrimentos gerados no âmbito da família, da escola, da empresa, da repartição pública, do quartel, da igreja. O direito ao suicídio pode ser exercido coletivamente. Na atual pandemia, grupos de pessoas violam a quarentena, saem para as ruas, praças e praias, visitam shoppings, acabam infectadas e mortas. Em alguns países, o número de casos está diminuindo, mas em outros, como o Brasil, continua a crescer e a exigir o isolamento recomendado pelas organizações médicas nacionais e internacionais.  
A eutanásia constitui outro direito de morrer. A vítima de doença incurável tem o direito de se livrar do sofrimento e antecipar o fim da sua existência terrena. O doente não está obrigado a aguardar futura e incerta descoberta científica da cura, milagres, fórmulas mágicas, e tampouco a se submeter a paliativos e ao charlatanismo de pastores e pais-de-santo. Cabe ao doente autorizar a morte a que tem direito, quer esteja em casa, quer esteja no hospital. Soldados feridos em combate suplicam pela morte. Na camaradagem há compaixão, misericórdia, senso natural de justiça. Por outro ângulo, há o dever de morrer pela pátria. Nas batalhas fora e dentro do país, soldados e policiais arriscam a vida e a integridade física. No credo muçulmano, o fiel tem o dever de morrer em defesa da religião. Como recompensa, ele será recebido no paraíso por huris que lhe darão prazer eternamente. Nas cruzadas, os guerreiros cumpriam o dever de lutar e morrer pela hegemonia da religião na terra santa, embora não se descurassem da conquista de bens materiais. Outrora, o marido traído tinha o direito de matar e o dever de morrer em defesa da sua honra. A trágica morte de Euclides da Cunha serve de exemplo dessa regra consuetudinária. Mais habilidoso do que o escritor, o amante da esposa venceu o duelo.   
O direito à vida e o direito à morte integram a esfera sagrada da cultura humana. O poder de decidir sobre esses direitos eleva a autoridade ao nível divino. Nessa elevada posição situa-se o médico ao decidir entre os seus pacientes, qual terá o direito de viver e qual terá o dever de morrer. Na pandemia que assola a humanidade neste ano (2020), se os recursos forem poucos para atendimento da população infectada, a seleção será necessária. Aventa-se como critério a faixa etária dos pacientes de ambos os sexos. A prioridade é dos mais jovens. Os idosos ficam sem assistência. A justiça desse critério é discutível. Nada assegura: (i) que o jovem atendido não morra logo adiante por causa distinta (ii) que o jovem seja mais necessário e útil à sociedade do que o idoso preterido. O jovem escolhido pode ser um delinquente enquanto o idoso preterido pode ser um professor. A mulher jovem escolhida pode cultivar maus costumes enquanto a mulher idosa preterida pode ser mãe e avó dedicada aos filhos e netos, aos afazeres domésticos e ao trabalho fora do lar. A escolha por faixa de idade brota do preconceito, da fé na juventude, da crença na decrepitude da velhice. 
Civil ou militar, presidente ou gari, rico ou pobre, empresário ou empregado, ninguém tem o direito de ameaçar a vida das pessoas e de lhes impor o dever de morrer. Aliás, ações e omissões do presidente da república e do ex-ministro da justiça serão investigadas no inquérito policial requisitado pelo procurador-geral da república e instaurado por despacho do decano da suprema corte (CR 129, VIII + 102, I, b). Ao deferir pedido de instauração de inquérito policial, não cabe ao magistrado (juiz de direito, desembargador, ministro) qualificar juridicamente os fatos, apontar quem deve ser investigado, quem deve servir de testemunha, quais provas devem ser realizadas. Isto é atribuição privativa do delegado e do agente do ministério público. O magistrado tem o dever de preservar a sua imparcialidade e de se manter equidistante das partes interessadas na investigação. No caso em tela, o juiz relator (ministro) manteve as necessárias equidistância e imparcialidade. A ênfase na figura do chefe de governo foi necessária em consequência das garantias constitucionais que cercam aquela autoridade (exigências especiais para ocupar o polo passivo da relação processual). Ex-ministro não goza dessas garantias especiais. O decano teve o cuidado de distinguir instauração de inquérito da instauração de processo. Concluído o inquérito com o relatório do delegado federal, o procurador fará o enquadramento legal dos fatos e, se for o caso, denunciará os investigados. Deferida a petição inicial (denúncia), instaura-se o processo por crime comum; indeferida, arquiva-se o inquérito. Ocorrida a aposentadoria do juiz relator (ministro) no segundo semestre, provavelmente o presidente do supremo tribunal sorteará novo relator dentre os ministros remanescentes, sem esperar o preenchimento da vaga, tendo em vista a urgência e relevância do caso.        

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