sábado, 2 de fevereiro de 2019

SOFRIMENTO HUMANO

No diálogo de família por telefone celular entre pais, filhos e nora, surgiu a questão do sofrimento humano (whatsapp 30/01/2019). Interessante foram os diferentes prismas pelos quais cada um abordou o assunto na mais ampla informalidade. A discussão serviu para motivar a reflexão sobre esse tema de perene atualidade.
Por sofrimento entende-se o estado de doloroso desconforto orgânico e/ou psíquico. Esse estado pode ser fraco ou forte, momentâneo, prolongado ou crônico. Implica alteração suave ou intensa no corpo e na mente (efeito psicossomático) resultante de um estímulo externo (agressão física, ofensa moral) ou interno (infarto, disfunção cerebral). Para o sofrimento concorrem múltiplas causas agrupadas no mundo natural (terremoto, maremoto, tempestade, inundação, seca, parto, doença) e no mundo cultural (crime, violência, acidente, desemprego, miséria, falência, rebelião, desavença na família). Os sujeitos passivos do sofrimento são: [i] o animal irracional (cavalo, boi, cão, ave, pássaro, peixe) [ii] o animal racional na sua individualidade (mulher, homem, adulto, criança) e na sua sociabilidade (família, empresa, nação, estado, humanidade).
No que concerne aos indivíduos humanos, o sofrimento físico e moral decorre: [1] da doença (câncer, aids, diabetes) [2] das perdas em geral, incluídas especialmente as perdas: [i] da liberdade [ii] do patrimônio [iii] de sentido físico (visão, audição) [iv] de membro do corpo (braço, perna) [v] de parente (mãe, pai, irmã, irmão, filha, filho, nora, genro) [vi] de pessoa querida ou admirada (amigos, companheiros, professores, artistas, benfeitores). A família sofre com a morte e a moléstia de pais e parentes, com a insegurança econômica, com a discórdia e a desagregação que infelicita os seus membros. A empresa sofre com a perda de capital, com a tributação excessiva, com a falta de crédito, com a recessão, com a falência. A nação sofre com a insegurança jurídica, com a venalidade dos juízes, com a desonestidade dos legisladores e administradores, com a pusilanimidade dos agentes do estado, com os golpes de estado, com as revoluções e guerras, com as agressões ao meio ambiente. O estado sofre quando perde a soberania e as suas riquezas, quando o seu exército se torna despótico e mercenário, quando a cultura é aviltada, quando o seu território é invadido, quando a sua população é morta, ferida ou escravizada. A humanidade sofre com a intolerância religiosa, a rivalidade ideológica, as epidemias, o efeito estufa, a ameaça nuclear, o imperialismo dos estados.
O sofrimento humano é inerente à vida biológica e sociologicamente considerada. Para sofrer, basta estar vivo. O sofrimento acompanha o ser humano desde o nascimento até a morte. Quem não o suporta, pede para morrer (eutanásia) ou se suicida. Viver é suportar perdas e danos, feridas e cicatrizes. Sofre-se quando se é privado de algo material ou espiritualmente valioso. Sofre-se com as derrotas: do time de futebol no campeonato, do partido ou da chapa na disputa eleitoral, do exército na guerra. Sofre-se com o fracasso: do projeto de vida, da música no festival da canção, do filme no festival do cinema. Sofre-se com o insucesso: nos testes, na concorrência, no amor. Sofre-se quando se é vítima da injustiça ou alvo do desprezo. 
Esse fato natural e social reveste-se de importância para a religião e a política. A doutrina da igreja faz do sofrimento a chave para abrir as portas do céu ao crente. A lenda sobre os padecimentos do profeta Jesus é utilizada para consolar sofredores, acalmar rebeldes, sugerir conformismo com a desgraça e a desigualdade. Desse modo, a igreja faz da massa um rebanho, ajuda os governos a manter a população conformada com a pobreza da maioria e com a riqueza da minoria. A doutrina budista faz do sofrimento o ingrediente para a purificação da alma e o móvel do processo de reencarnações. A doutrina espírita também faz do sofrimento o caminho da evolução espiritual através de sucessivas reencarnações.
Destarte, se quisermos chegar ao céu e nos sentarmos à direita do deus padre, atingir o nirvana, encerrar os ciclos de reencarnações, temos de caprichar no sofrimento. Masoquismo religiosamente justificado e recomendado. O governo tem que facilitar e incentivar o sofrimento do povo, enquanto as instituições civis e religiosas mergulham no mais profundo materialismo. Notável progresso científico e tecnológico. Moral rarefeita nos planos individual e coletivo. Notável retrocesso espiritual. Para gáudio da religião e da política, o mundo metafísico supra-humano é uma incógnita. 
Aprender com o sofrimento, sim; conformar-se, não. A rebeldia é necessária, útil e interessante nas duas esferas: individual e coletiva. O ser humano está dotado de razão e vontade. Pode usa-las para compreender o sofrimento, domá-lo, tirar boas lições e se tornar artífice do seu futuro. Segurança, ordem, progresso, desenvolvimento, felicidade, são legítimas aspirações de povos civilizados. A passagem dessas aspirações do plano abstrato ao plano concreto gera sofrimento inevitável. Tal passagem há de ser realizada de modo a gerar o menor sofrimento possível. Torna-se necessário controlar e distribuir o sofrimento assim produzido. Controle mediante técnicas aptas a minorar o sofrimento. Distribuição mediante equitativo rateio dos ônus e bônus. Ônus não só para a massa popular; bônus não só para a elite. Mister equilibrar os pratos da balança. A fórmula adequada será: ônus e bônus para a massa popular + ônus e bônus para a elite = paz social, solidariedade, desenvolvimento e segurança.         

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