sábado, 16 de fevereiro de 2019

RETÓRICA SALVACIONISTA

No atual governo brasileiro, os militares usam a retórica para convencer as novas gerações de que não houve no Brasil, em 1964, golpe de estado e tampouco ditadura. Dizem que a caserna reagiu à intenção do presidente João Goulart de introduzir o comunismo no Brasil; que se tratou de uma reação em defesa da democracia; que o movimento militar foi um contragolpe ao movimento comunista internacional na época da guerra fria EUA versus URSS (1948/1988). 
Salvo escassa minoria, que agita mas não vence e nem convence, o comunismo jamais seduziu a maioria do povo brasileiro, nem quando a esquerda esteve no poder (2003/2016). A intentona comunista não obteve adesão da massa popular. Nas eleições, poucos candidatos comunistas são eleitos, mais por qualidades pessoais e menos por ideologia. A maioria do povo tem se mostrado avessa à rigidez dos partidos de esquerda e condescendente com os partidos de direita, principalmente nas regiões de maior influência da imigração italiana, alemã e japonesa. 
Do processo eleitoral na vigência da Constituição da Republica de 1988, nota-se que a maioria dos eleitores oscila entre candidatos da esquerda e da direita, isto é, vota sem definição ideológica. Fatores circunstanciais de natureza social e econômica condicionam a escolha. Por indefinição ideológica ou por cansaço de ver a incompetência e a corrupção dos governantes, 42 milhões de eleitores recusaram-se a escolher presidente da república no segundo turno das eleições de 2018. No candidato da direita votaram 57 milhões e no da esquerda, 47 milhões de eleitores.     
O presidente do supremo tribunal, Dias Toffoli, coadjuvando os militares, trata a quartelada de 1964 de “movimento” e não de “golpe”. A palavra movimento traz em si as ideias de ação, animação, marcha, deslocamento, mudança. O cão faz movimentos com o rabo. Carmen Miranda fazia movimentos sensuais enquanto cantava. Os movimentos de Fernando Henrique na presidência da república foram desastrosos para o Brasil e para o conceito da classe política. O movimento da indústria anima a economia. O movimento dos lobistas nos bastidores do Congresso Nacional tem por escopo medidas protetoras de interesses privados. O movimento dos juízes acautela as prerrogativas. O movimento da Força Nacional de Segurança Pública busca pacificar os estados. O movimento da massa popular se faz em prol da liberdade, da igualdade, da solidariedade e do bem-estar geral. Golpes de estado, revoluções, rebeliões, marchas, comícios, são movimentos sociais e políticos que alteram a vida de um povo. Enquadram-se na categoria movimento político: o golpe militar de 1889, a Coluna Prestes (1925), a revolução de 1930, o golpe civil de 1937, o golpe civil/militar de 1964, a campanha por eleições diretas (1983/1984), o golpe civil de 2016.
O vice-presidente da república, Hamilton Mourão, afirma que no período 1964/1985 não houve ditadura militar e sim “governo autoritário”. Qualquer instituição (família, universidade, igreja, empresa, estado) pode ser dirigida de modo autoritário. Supõe uma relação de domínio em que uma das partes impõe a sua vontade a outra. O despotismo é uma forma de exercer autoridade. Despóticos, há pais, chefes, diretores, governantes. Governo autoritário é próprio dos regimes autocráticos. O autoritarismo é o sistema no qual o exercício da autoridade se faz de modo exacerbado. Distingue-se do totalitarismo por reservar algum espaço à liberdade no campo econômico e social. No plano dos fatos, sem as enganosas vestes do texto constitucional, caracterizaram-se como autoritários: o primeiro governo monárquico (Pedro I), o primeiro e o nono governos da primeira república (Floriano + Bernardes), o governo da segunda república (Vargas), os governos da quarta república (Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel, Figueiredo). 
O vice-presidente da república, que está parecendo um militar togado, e o presidente do supremo tribunal, que está parecendo um civil fardado, ao se valerem de expressões corretas, porém genéricas, pretendem cobrir o episódio de 1964 com linguagem mais palatável a fim de obter consenso sobre a militarização do governo. O episódio de 1964 foi um movimento como tantos outros dos períodos colonial, imperial e republicano. Desde o segundo império, após a guerra do Paraguai, oficiais do exército desafiam a lei e confrontam a classe política (1883/1887). A teoria positivista de Augusto Comte, adotada por estudantes da escola militar (Praia Vermelha/RJ), segundo a qual o povo pode ser afastado se assim o exigir o bem da república, ampara movimentos golpistas e a ditadura resultante. Cuida-se da salvação nacional. O movimento de 1964 (inclusive de tropas do exército) reflete essa teoria e a desavença antiga. Partiu de órgão estrutural do estado. Logo, não se trata de revolução e nem de contragolpe, mas sim de um golpe de estado, orquestrado pelo governo dos EUA, que derrubou um governo legítimo e inaugurou um regime autocrático no país. Em termos políticos, como o país é uma república, tal regime se especifica e se define como ditadura de natureza militar. Desse golpe participaram lideranças civis e religiosas no papel de coadjuvantes. Alguns dos colaboradores arrependeram-se (Magalhães Pinto, Carlos Lacerda, Ademar de Barros, bispos da igreja católica, advogados, jornalistas). 
Valorosos ministros do Supremo Tribunal Federal (Evandro Lins e Silva, Hermes Lima, Victor Nunes Leal) que se destacavam pela coragem, independência, cultura e fidelidade ao regime democrático, foram exonerados em janeiro de 1969 por decisão do general Costa e Silva, ditada com fundamento no Ato Institucional nº 5/1968. Alguns legítimos representantes do povo brasileiro tiveram seus mandatos e direitos políticos cassados. Rebeldes classificados de subversivos foram presos, torturados e mortos. Guerrilheiros foram exterminados. Cidadãos foram exilados.  
A repulsa aos governos militares cresceu até a passagem do regime autocrático para regime democrático (1988). Sucederam-se, então, governos civis. À medida que aumentavam a desonestidade e a safadeza, crescia também, a cada eleição, a repulsa aos políticos, até a presidencial de 2018, quando os militares, depois de colocarem fora de combate o principal concorrente, retornaram ao poder pelo voto popular. A manobra política foi orquestrada pelo governo dos EUA, incluindo recrutamento de juízes e procuradores federais. Assim como os colonizadores agradavam os índios com bugigangas, o governo estadunidense também agrada os militares brasileiros com a promessa de colocar um general tupiniquim no segundo escalão do Comando Sul dos EUA, conjunto de forças armadas destinado a executar a política de segurança daquele país na América Latina. 
Enquanto isto, a nação se distrai com as peripécias da família Bolsonaro. Os eleitores escolheram 5 em 1, para governar o Brasil: o marido, a esposa e três filhos. O marido foi internado em hospital quando devia sê-lo em hospício. Incapacitado para governar, o presidente devia ser afastado e o vice-presidente assumir o cargo definitivamente, na forma da Constituição e da lei. 

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