segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

CONTO

AVENTURA PERIGOSA.

- Creio que tu devias pensar melhor, Epaminondas. A vida é curta e não devemos desperdiçá-la. Esqueça essa aventura. Pense nas pessoas que te querem bem. A nossa terra é formosa e acolhedora com os seus vales e montanhas, rios e cachoeiras. No verão, podemos nadar durante a semana. No inverno, podemos pescar bem agasalhados. Na primavera, somos presenteados com um colorido natural estonteante. No outono, passeamos sobre o tapete de folhas amareladas e secas, sob a nudez das árvores. O solo é fértil e a plantação viçosa. Veja os nossos cães, cavalos, galinhas, cabras, vacas, como são saudáveis e o quanto bem nos fazem. A nossa gente é hospitaleira e generosa. Tu és querido entre nós. 
- Muito obrigado por tuas palavras amigas, Inocêncio. Comovo-me com tua atenção, tua preocupação e o teu gesto de ternura. Não ignoro esse patrimônio natural e afetivo que tu descreves muito bem, porém, algo dentro de mim compele-me a essa aventura. Não sei explicar. Se eu não me aventurar, ficarei infeliz neste paraíso. Há pessoas que necessitam de ação e desafio. Ainda que a monotonia lhes traga segurança, elas preferem o vento, a tempestade, escalar montanhas, voar e se atirar de pára-quedas. Creio que sou uma delas.
- As tuas palavras me entristecem. Discordo da tua decisão, mas tu és o dono do teu destino. Temo perder a presença de um grande amigo. Maria da Graça chora com receio de perder um grande e amoroso companheiro. Ao ver tu te afastares em direção à margem do rio, ela não acenou com o avental que pendia da cintura e nem com o lenço que trazia na cabeça prendendo os cabelos. Cruzou as mãos sobre o peito e deixou o rosto livre para as lágrimas. No gesto e na atitude, ela exprime os versos do quinhentista poeta lusitano:
Ó doce e amado esposo/ sem quem não quis Amor que viver possa/ por que is aventurar ao mar iroso / essa vida que é minha e não é vossa? / Nosso amor, nosso vão contentamento / quereis que com as velas, leve o vento?
- Tu és um letrado da cidade que aportou neste vale enquanto eu sou homem de poucas letras, desconheço o poeta que mencionastes. Da linguagem utilizada há de ser poeta do tempo muito antigo, porque quase nada entendi, mas notei que o semblante da minha querida esposa parecia refletir os versos comoventes tal como por ti recitados. Não te entristeças meu bom amigo. Escolhi o meu caminho e sou responsável por minha escolha. No momento, estou triste por deixá-los, mas alegre pelo porvir. Assumi os riscos desta aventura. Enfrentarei amargores, disto estou certo, espinhos me espetarão, porém flores também perfumam a senda.
- Sem dúvida, meu estimado Epaminondas, cada pessoa traça o próprio destino. Por vias do pensamento, do sentimento, da vontade e do proceder, acionam o karma. Ao invés de desafiar as correntes águas e cascatas do rio, tu poderias escalar a montanha dourada. Eu te acompanharia na escalada.
- A parte alta e oriental da nossa montanha só fica dourada nas ensolaradas manhãs do outono e ainda estamos na primavera. Eu agradeço o teu convite. Escalaremos a montanha quando eu voltar. Fique com deus. 
- Aguardo o teu regresso. Deus te acompanhe.
Epaminondas acomoda a sua modesta bagagem no barco e se mete a remar naquela fresca manhã. O caudaloso rio esteve calmo até o início das corredeiras. Remador habilidoso, ele segue sem dificuldade no meio delas, como se manobrasse um caíaque, em alta velocidade, desviando as rochas e os galhos das árvores que se estendiam das margens. As aves parecem aplaudi-lo com o bater das asas e incentiva-lo com os seus crocitares e gorjeios. Ele não necessitava do aplauso de pessoas e tampouco que a sua aventura fosse filmada ou de outra maneira testemunhada. A experiência era sua, exclusiva e inteiramente sua. Bastava realizar a proeza para sua própria satisfação.
Cachoeira volumosa, larga, alta como as cataratas do Iguaçu, último desafio que o espera. Ao lado esquerdo, a queda de água formava o véu de noiva semelhante às dezenas de véus de noiva dos inúmeros rios do seu país. Epaminondas lembra que não houve igreja, nem buquê de flores, nem vestido e nem véu de noiva. Maria da Graça, saia e blusa, sapato de salto baixo, cabelo preso no alto da cabeça, cheirando leite de rosas, tremia de emoção perante o juiz de paz enquanto ele, Epaminondas, sentia frio na barriga. Trocaram alianças. Os pais e toda aquela gente simples festejaram as bodas até o anoitecer. A eletricidade ainda não tinha chegado. Acenderam os lampiões. Logo aquela gente simples entre abraços se despediu. Lua-de-mel ali mesmo no sítio. Coisa boa de lembrar!
A cachoeira rumoreja. Valente e desafiador, Epaminondas arremete o barco, precipita-se e se banha naquela torrente de água. Mergulho colossal. Depois de navegar na memória, Epaminondas agora navegava no ar e na água. Viu-se menino junto à porteira. Lá estava Ana Maria com seu vestido de chita e fitas no final das tranças do cabelo castanho. Ela era o seu xodó. Embora gostassem um do outro, os dois nunca se abraçaram. A timidez os impedia. Galopando no cavalo que ganhara do pai, Luizinho roubava a atenção de Ana, para tristeza de Epaminondas. Sabe-se lá o fim que levaram aqueles dois. Juntos é que não ficaram depois de adultos.
Maria da Graça é agora a dona do seu coração. Com tantas mulheres no mundo, como é que o homem vai gostar de uma só? Paixão danada. Isto intrigava Epaminondas. Maria da Graça também era mulher de um homem só e havia muitos homens naquelas paragens. Dela não veio o adeus na partida. Mulher amante e bem amada, Maria da Graça ficou imóvel, na esperança do regresso do seu querido companheiro.
Quem agora lhe acena é Maria das Dores, mãe que se conserva jovem, com sorriso de bondade e olhar de perdão, pronta para abraça-lo com ternura. As águas serenaram. Os remos não exigem força. O barco desliza sem formar sulco. Horizonte imenso e radioso. Epaminondas continua a remar, a remar, a remar...       

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