quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

CONSÍLIO MEDÍOCRE

Chefes dos 3 poderes da república reuniram-se no final da semana para tratar das relações do Brasil com a Venezuela:  Bolsonaro, chefe do Executivo, Alcolumbre, chefe do Senado, Maia, chefe da Câmara dos Deputados e Toffoli, chefe do Supremo Tribunal Federal (STF). Quatro cérebros que talvez não somem quarenta neurônios, trocam ideias e formulam opiniões sobre tema delicado e relevante para o país e para o continente. Pauta explícita: ajuda humanitária. Pauta implícita: destituição do presidente Nicolas Maduro eleito pelo povo e sua substituição pelo Aécio Neves venezuelano vencido nas eleições (Juan Guaidó).
A Constituição da República Federativa do Brasil estabelece o compromisso da nação com: (i) a solução pacífica das controvérsias (ii) os princípios da autodeterminação dos povos, da não-intervenção, da igualdade entre os estados, da defesa da paz. As autoridades têm o dever de se conduzir de acordo com essas diretrizes constitucionais. Ao tomar posse dos seus cargos, as autoridades prometem cumprir a Constituição.  
Objetivamente, não há qualquer controvérsia com o país vizinho. As relações entre Brasil e Venezuela são amigáveis. De Gaulle dizia não existir amizade e sim interesses entre os estados. Certo. Todavia, relações amigáveis e pacíficas existem em oposição às relações de hostilidade e violência entre os estados. Inexiste motivo algum para inimizade e guerra entre o Brasil e a Venezuela.  
Ajuda de um país a outro não deve ser prestada de modo compulsório. Necessário prévio entendimento entre os legítimos representantes dos governos dos países interessados. Ingressar no território de um país a título de prestar ajuda humanitária sem o entendimento prévio tipifica violação da soberania e justifica a reação do governo do país invadido. 
Até o momento, não foram apresentados dados concretos e confiáveis sobre a real situação econômica e social da Venezuela. Esses dados devem ser obtidos por comissão internacional com neutralidade e imparcialidade. Ademais, se problema houver, cabe ao governo e ao povo daquele país buscar solução. Não cabe ao Brasil, nem a qualquer outro país, intervir. Aliás, pela ajuda enviada pelo Brasil em duas camionetas parece que são bem poucos os venezuelanos famintos e doentes.
A ajuda oferecida à Venezuela foi recusada por não partir de organismos internacionais e sim de estados isoladamente. O presidente venezuelano diz que comprará alimentos e remédios do Brasil. Pagará por tudo o que for enviado. Não quer esmola e sim transação comercial entre dois estados independentes e soberanos. 
O governo dos EUA pretende jogar a opinião pública internacional contra o governo da Venezuela por recusar ajuda e permitir que gente morra de fome e de doença. O presidente venezuelano demonstrou que a “ajuda humanitária” ofertada disfarçava o objetivo principal do governo dos EUA: criar pretexto para invadir a Venezuela, colocar um títere no governo, assenhorar-se da produção e distribuição do petróleo e abrir mercado para produtos de empresas estadunidenses. 
A postura dos oficiais superiores das forças armadas indica que soldados brasileiros não morrerão numa guerra para defender exclusivos e espúrios interesses do governo estadunidense. Em Bogotá, na reunião do Grupo de Lima, o Vice-Presidente do Brasil deixou isto bem claro (25/02/2019). Vigora a doutrina da caserna: a obediência ao comando supremo do Presidente da República não é cega, absoluta e incondicional. Há limites. A honra e a dignidade da instituição militar estão acima das politicagens dos governantes. O Grupo de Lima rejeitou intervenção militar na Venezuela. Decisão sensata que evitou: (i) fazer da América do Sul um novo e infernal Sudeste Asiático (ii) uma nova e grave ameaça à paz mundial.      
Se desemprego, pobreza, fome e miséria fossem justa causa para um país invadir outro e destituir o governante, então o Brasil, a Colômbia e vários países da América Latina podem ser invadidos e ter seus presidentes destituídos do cargo. Ao invés de oferecer ajuda humanitária a país estrangeiro, o presidente do Brasil devia providenciar essa ajuda aos brasileiros, aos milhões de desempregados, aos milhões de famílias em estado de necessidade, restaurar, equipar e modernizar escolas e hospitais, manter suficiente estoque de remédios, pagar bem professores e médicos da rede pública, investir realmente na assistência social.          
O regime vigente na Venezuela também não é justa causa para intervenção estrangeira. Não se há de confundir governo socialista com ditadura. Autoritarismo não é apanágio exclusivo da autocracia. Ainda que fosse ditadura – coisa que não é – a questão venezuelana é interna. A crise, cujas dimensões estão exageradas pelos interessados no golpe de estado, não é diferente da crise brasileira, colombiana e de outros países da região, cuja origem comum está na bolha financeira que estourou nos EUA (2008). Se a maioria do povo venezuelano, ao manifestar sua vontade nas urnas, preferiu governo forte configurando democracia autoritária e socialista, os vizinhos devem respeitar e não se intrometer. Igualmente, não é motivo para intervenção estrangeira se a maioria do povo escolhe livremente um governo forte e configurar uma democracia autoritária e capitalista. A minoria deve se conformar com a derrota nas urnas, pois democracia implica governo da maioria. O Aécio Neves venezuelano quer liberdade para atropelar a vontade da maioria.     
Os EUA apoiaram ditaduras na América Latina antes e durante a guerra fria, quando a autocracia atendia aos seus interesses no continente. Na ditadura civil, Franklin Delano Roosevelt, presidente dos EUA, visitou base desse país instalada no Brasil (RN 1943). Na ocasião, disse que Vargas era um ditador a serviço da democracia. Vargas concordou em mandar soldados à Europa para lutar ao lado das tropas estadunidenses. Na ditadura militar, sob os auspícios do embaixador Lincoln Gordon e do adido militar Vernon Walters, os generais brasileiros também eram “ditadores a serviço da democracia” (DF 1964). Paradoxo algum detém o pragmatismo, a hipocrisia, o espírito conspirador e o propósito golpista das autoridades estadunidenses.       
Outrossim, afigura-se indevida e inconstitucional a presença do presidente do STF em reuniões desse jaez. A Constituição da República não inclui essa autoridade judiciária no Conselho da República e tampouco no Conselho de Defesa Nacional, órgãos de consulta do Presidente da República sobre: independência nacional, defesa do estado democrático, declaração de guerra, celebração da paz, segurança do território nacional, estados de defesa e de sítio, intervenção federal, preservação e exploração dos recursos naturais, estabilidade das instituições democráticas. 
Caso o Presidente da República desejasse parecer jurídico, deveria consultar – não o presidente do STF – e sim o Advogado-Geral da União. A censurável presença do presidente do STF naquela reunião comprometeu a imparcialidade do tribunal na hipótese de ação judicial versando as decisões dela decorrentes. O princípio da harmonia entre os poderes não significa conluio. No caso em tela, devia prevalecer o princípio da independência dos poderes. Tendo em vista o caráter essencialmente político da reunião, a participação do chefe do Poder Judiciário foi altamente suspeita, pois a ele não compete exercer funções políticas próprias do Legislativo e do Executivo. O magistrado não deve se valer do prestígio e da autoridade do seu cargo para chancelar atos do governante, mesmo sob o manto protetor das vibrações espíritas de João de Deus.  

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