sábado, 29 de dezembro de 2018

GENEALOGIA E REENCARNAÇÃO

Entrevistado no programa “Pinga-Fogo” da TV Tupi, em 1971, o médium espírita Chico Xavier foi questionado por pastor protestante sobre reencarnação. O pastor dizia que Adão, Eva, Caim e Abel, por serem os primeiros humanos no planeta, não eram reencarnações. Na sua resposta, o médium citou o capítulo 4, versículos 16/17 do Gênesis (primeiro livro da Bíblia), como prova das contradições.
Em assunto de fé, dificilmente alguém convence o oponente, ainda mais se houver fanatismo. Entretanto, o conteúdo das escrituras religiosas pode ser objeto de análise racional fora da órbita fiduciária e dentro da órbita da história e das ciências naturais. A parte mais extensa da Bíblia diz respeito ao mundo profano: legislação, governo, jurisdição, relatos históricos, genealogias, dietas, sermões, poesias, cânticos, epístolas. A parte menos extensa da Bíblia diz respeito à esfera do sagrado: [i] crença num deus nacional denominado Javé ou Jeová [ii] aliança desse deus com o chefe hebreu chamado Moisés [iii] mensagens desse deus reveladas a Moisés e aos profetas, inclusive os dez mandamentos [iv] crença num deus universal denominado Pai Celestial [v] aliança desse deus com o chefe da seita cristã chamado Jesus [vi] mensagens desse deus reveladas a Jesus e aos apóstolos [vii] crença num deus infernal denominado Lúcifer ou Satanás [viii] influência maligna desse deus no mundo [ix] participação desses deuses nos fenômenos naturais e nos fatos humanos [x) doutrinas, cultos e rituais estabelecidos para os judeus e para os cristãos.  
A Bíblia compõe-se de 46 livros que formam o Antigo Testamento (judeu) e de 27 textos que formam o Novo Testamento (cristão). Os textos cristãos dividem-se em 4 livros sagrados (evangelhos de Mateus, João, Marcos e Lucas), 1 livro histórico (Atos dos Apóstolos), 1 livro profético (Apocalipse) e 21 cartas escritas ou ditadas pelos apóstolos João (3), Judas (1), Paulo (14), Pedro (2) e Tiago (1).
Todos esses livros e textos refletem a fraqueza humana dos seus autores. Exageram na fantasia, nos milagres, nos elogios aos supostos êxitos e virtudes do grupo a que pertencem e dos seus líderes. Os judeus enaltecem o profeta Elias e dizem que ele subiu aos céus com o seu corpo físico. Os cristãos enaltecem o profeta Jesus e dizem que ele subiu aos céus com o seu corpo físico. Nessa viagem espacial sem nave, o frio da Lua não congelou os viajantes e o calor do Sol não os cremou. Os dois grupos rivais disputam qual dos seus heróis é o maior e qual das suas doutrinas é a verdadeira. Alguns sustentam que Jesus foi a reencarnação de Elias. Outros dizem que Jesus existia antes de Elias, desde a criação do mundo. Tudo produto da imaginação dos escritores e da competição entre as seitas. Não há prova da existência histórica desses personagens. Longe de ser “a palavra de deus”, a Bíblia é, na realidade, uma vasta obra literária para a qual não faltaram talento, esperteza e má-fé dos seus autores. 
O povo hebreu (judeus + israelitas) política e economicamente insignificante, gozando de má fama entre os demais povos seus contemporâneos (hebreu = bandido), utilizou a religião e a escritura “sagrada” para convencer a si próprio e aos estrangeiros de que era tão importante e valoroso quanto os povos dos grandes impérios (egípcio, babilônio, assírio, persa). Sustenta ser remota a antiguidade da sua escritura “sagrada” quando, na verdade, o pentateuco (cinco primeiros livros da Bíblia) foi elaborado no século IV a.C., por Esdras e seus auxiliares, ainda no exílio da Babilônia. Audácia sem limite, pretensão de superioridade, esses judeus declararam que o seu povo era o escolhido de deus para reinar sobre todos os povos da Terra. Esse deus nacional de nome Javé ou Jeová, mundano e diabólico, foi criado pelos autores dos livros bíblicos à semelhança do povo hebreu: tenebroso, cruel, genocida, vingativo, prepotente, como descrito no Antigo Testamento.   
Perceptível o intuito dos escritores bíblicos de: (i) incutir no povo o temor ao deus e aos castigos divinos (ii) lançar sobre o indivíduo a culpa por um falso pecado original (iii) fazer do templo e da igreja o caminho para a salvação (iv) tornar a massa popular um rebanho submisso (v) justificar o sustento da casta clerical pelos crentes (vi) submeter a mulher ao comando do homem (vii) considerar maldições divinas as dores do parto e o trabalho, punições aplicadas pelo “Senhor” à mulher e ao homem.
Aos temas abordados pelo pastor protestante e pelo médium espírita cabem alguns adminículos. De acordo com a Bíblia, o “Senhor” plantou um jardim na parte oriental da região mesopotâmica denominada Éden (estepe). Ali, no jardim (paraíso na Terra), o “Senhor” colocou Adão e lhe deu Eva por companheira. Os dois violaram proibição divina ao comer o fruto da árvore plantada no meio do jardim. Caracterizada a culpa original (ou pecado original) os dois foram expulsos do jardim. Na parte ocidental daquela região, portanto, fora do jardim, os dois transaram e geraram o primeiro filho: Caim. Gostaram de transar. Geraram outro filho: Abel. Por ter assassinado o irmão, Caim foi expulso de casa (da terra) pelo “Senhor”. Se no planeta só existiam essas três pessoas, de onde saiu a mulher de Caim? (Gênesis 4: 17). Ao sair de casa (da terra habitada pelos pais) Caim temia ser morto por quem o encontrasse. Então, o “Senhor” lhe pôs um sinal para que se alguém o encontrasse não o matasse. Se no planeta só existiam ele e os pais, quem eram e de onde vieram as pessoas que ele temia encontrar?
Depois de 130 anos de convívio com Adão, Eva pariu o terceiro filho: Seth. Nada de nascer mulher. Eva era a única. Palavra de Adão: “Deus deu-me uma posteridade para substituir Abel que Caim matou”. Esse terceiro filho, o quinto humano a surgir na Terra, podia ser a reencarnação de Abel, primeiro humano a morrer no planeta.
O texto bíblico explica: “Este é o livro da história da família de Adão”. (Genesis 5:1). Esta assertiva admite implicitamente a existência de famílias chefiadas por outros homens. “Depois de haver gerado Seth, Adão viveu oitocentos anos e gerou filhos e filhas”. Finalmente, depois de centenas de anos, nasceram as primeiras mulheres. “Todo o tempo que Adão viveu foi novecentos e trinta anos”.
Da narrativa bíblica verifica-se que Adão, Eva e filhos eram assemelhados ao deus que os criou, civilizados, estrutura física e mental tipo homo sapiens, superior à dos primitivos humanos estudados pelas ciências modernas. Os escritores bíblicos gostavam de impressionar o público com grandes números e com personagens heroicos de cultura superior e dotados de superpoderes. Eles são os ancestrais dos escritores modernos de histórias em quadrinhos.   
A reencarnação, tema evocado pelo pastor protestante e tratado pelo médium espírita, supõe vida anterior. A pessoa morta torna a nascer em outro corpo. Adão, Eva e filhos não tiveram vida anterior porque foram os primeiros humanos nascidos neste planeta (segundo o Gênesis). O processo da reencarnação na Terra, portanto, começa após a morte de cada um deles. De acordo com a doutrina espírita, o propósito da reencarnação é purificar as almas num processo evolutivo. Daí se deduz que os primeiros humanos eram pecadores e suas almas deviam ser purificadas. Se, a partir da primeira geração de humanos, só vivessem pessoas reencarnadas, não haveria crescimento demográfico. O número de habitantes ficaria inalterado para sempre. Os mesmos espíritos indo e vindo. No entanto, a população mundial cresceu. Desse fato, percebe-se que além das reencarnações das almas antigas, há também encarnações de almas novas que não ocuparam corpo físico anteriormente. De onde vieram essas almas? (Não vem ao caso agora). Após essas almas novas abandonarem o seu primeiro corpo, elas voltam a encarnar (reencarnam) em um novo corpo. De acordo com a lição de Sidarta (Buda), haverá sucessivas reencarnações até as almas atingirem o nirvana.
Todo esse assunto é especulativo. Não há certeza alguma sobre a existência: (i) de almas individuais e autônomas (ii) de um mundo espiritual apartado do mundo físico (iii) de uma fonte metafísica de conhecimento acessível mediante intuição, oração, meditação ou êxtase. O cérebro humano, base da consciência e da inteligência, usina de habilidades, pensamentos, memórias e sonhos, com seus bilhões de neurônios (simetricamente aos bilhões de galáxias) com as mais variadas funções (informativa, comunicativa, associativa, controladora) pode ser a explicação de fenômenos que o senso comum rotula de espirituais e situa no plano metafísico. 

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