quarta-feira, 12 de julho de 2017

POLÍTICA E DIREITO

O presidente da república foi denunciado pelo crime de corrupção passiva em petição dirigida ao Supremo Tribunal Federal (STF) instruída com inquérito no bojo do qual estão as provas reunidas pela autoridade policial. A prova se diz robusta menos pela quantidade e mais pela qualidade e idoneidade. Dependendo das circunstâncias, um exame pericial, ou uma escritura pública, ou depoimentos coerentes, sobre a materialidade e a autoria do delito, pode, por si só, caracterizar prova robusta.
Antes da decisão do plenário da Câmara dos Deputados, cabe à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) emitir parecer sobre a denúncia. Trata-se de comissão permanente cuja finalidade é a de, nos termos regimentais, examinar os aspectos constitucionais e legais das matérias submetidas à sua apreciação. Cuida-se de controle parlamentar interno da constitucionalidade e da legalidade. A CCJ examina, sob tais aspectos, a denúncia contra o presidente da república. Está fora da sua atribuição julgar o mérito da denúncia, se procedente ou improcedente, se o denunciado é culpado ou inocente. Julgará, isto sim, do ponto de vista jurídico, se a denúncia está ou não está apta à instauração de um processo criminal.
O parecer eminentemente jurídico da CCJ será apreciado pelo plenário da Câmara, que não está obrigado a acatá-lo. Caso o parecer seja pela constitucionalidade e legalidade da denúncia, o correto será a sua aprovação pelo plenário tendo em vista ser o Brasil uma nação democrática sob o império do direito (pelo menos, formalmente). Se for autorizada a instauração do processo, a resolução da Câmara será encaminhada ao STF, juntamente com a denúncia e o inquérito.          
O juízo de admissibilidade da denúncia compete exclusivamente ao STF, porém está condicionado à prévia autorização da Câmara dos Deputados. A essa casa legislativa não cabe receber ou rejeitar a denúncia, julgá-la procedente ou improcedente, declarar a culpa ou a inocência do presidente. Ao plenário da Câmara cabe apenas autorizar (ou não) a instauração do processo. Depois de tomar conhecimento do conteúdo do inquérito, da denúncia e do parecer, os deputados decidem de modo soberano se convém ou se não convém instaurar o processo. Autorizar (ou não) a instauração do processo é ato político que compete à Câmara. Admitir ou rejeitar a denúncia é ato jurídico que compete ao STF.
Ainda que autorizado pela Câmara, o STF pode rejeitar a denúncia e arquivar os autos do procedimento. Admitida a denúncia pelo STF, instaura-se o processo no curso do qual poderão ser produzidas provas sob o crivo do contraditório e da ampla defesa. Essas provas podem ser as mesmas do inquérito acrescidas de outras trazidas pelas partes. Os ministros do STF formarão as suas convicções mediante a livre apreciação das provas (sem subordinação a critérios hierárquicos). Esta liberdade de apreciação pressupõe a existência de prova, o que não ocorre com a livre convicção (desvinculada de qualquer prova). Se, no final do processo criminal, o tribunal entender suficiente a prova produzida pela acusação, julgará procedente a denúncia e condenará o presidente; caso contrário, o absolverá. 
Nestes conturbados dias da república brasileira, aflorou à superfície, como um submarino emergente, a face política partidária do poder judiciário, especialmente do seu ramo federal. O legislativo, o executivo e o judiciário são poderes do estado (portanto, políticos lato sensu) que legislam, administram e julgam visando ao superior interesse da nação. Atuam em sintonia com a Constituição da República. Tudo isto no plano do dever ser, da objetividade das suas funções estatais traçada pela política do direito. Entretanto, no plano do ser, na realidade social, na subjetividade dos agentes estatais, a política do direito é envolvida pelo direito da política. Os princípios e regras fundamentais da república ditados pela política do direito cedem lugar à disfunção, ao jogo dos particulares interesses, à encarniçada luta pelo domínio, à corrupção, à traição, ao assassinato.
A hermenêutica serve de instrumento a essa política subversiva de modo a revestir de juridicidade as disfunções e os desvios éticos, no firme propósito de legitimar e dar validade às ideias e à vontade do grupo dominante (quadrilha de bandidos que tomou de assalto o governo federal). Nessa hermenêutica especial, a lógica jurídica é substituída pela ginástica cerebrina da qual decorre uma lógica de conveniência. Para não ficar só na esfera criminal, tome-se exemplo no campo tributário.
Valendo-se dessa especial hermenêutica, o STF, na sessão do dia 06/07/2017, a fim de ajudar a prefeitura municipal do Rio de Janeiro, cujas finanças andam mal, decidiu que inquilino de loja comercial cujo locador seja um ente público, deve pagar o imposto predial e territorial urbano (IPTU). Invocou os princípios da justiça fiscal e da livre concorrência. O tribunal sustentou que tais princípios restariam violados se uma loja comercial pagasse o tributo e a loja localizada no outro lado da rua (no caso, Avenida Airton Senna) não o pagasse. 
Forçar alguém que não é proprietário a pagar imposto que tem por fato gerador a propriedade contraria o direito em vigor. O IPTU é tributo previsto na Constituição da República cuja instituição compete aos municípios. O contribuinte é o proprietário de imóvel urbano. Quando o proprietário é um ente público, esse imposto não é devido por força de dispositivo constitucional que veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, instituírem impostos sobre o patrimônio, a renda ou serviços uns dos outros. Locatário do imóvel não é seu proprietário; logo, não é contribuinte desse tributo; contribuinte é o locador dono do imóvel. Se esse locador for ente público, não será contribuinte; neste caso, não sendo o locador contribuinte, menos ainda sê-lo-á o locatário. 
Dentro de uma visão equivocadamente isonômica de justiça fiscal, o STF nivelou situações juridicamente distintas. A livre concorrência é estranha ao contrato de locação celebrado entre um órgão público e uma loja comercial. Tal princípio em nada é afetado pelo fato de uma loja pagar o imposto e a outra não. O município arrecada de uma, cujo proprietário é contribuinte, e não da outra, cujo proprietário não é contribuinte ex vi legis. Essa diferença não tipifica limitação, falseamento ou prejuízo à livre concorrência e tampouco aumento arbitrário dos lucros, até porque resulta de uma situação perfeitamente legal e jurídica.

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