sábado, 8 de julho de 2017

INTERRUPÇÃO ATREVIDA

Na longínqua terra onde canta o sabiá morava Rosa, menina bonita de se ver, nos seus 11 anos de idade, olhos negros como jabuticaba, pele louçã, lábios rubros como o miolo da melancia, corpinho de pilão, duas saliências no peito que teimavam em crescer e se exibir empurrando a blusa, brancas e bem torneadas pernas, a indicar que seria moça bela e atraente. A mãe, dona Luci, perdeu o marido quando Rosinha ainda era criança. Casou-se em segundas núpcias com o fazendeiro José Silveira, homem de poucas luzes, que tratava gente como se trata cachorro. Ele se meteu a educar Rosinha. Às vezes, sob tal pretexto, colocava a menina no colo, acariciava-a e se deliciava. Outras vezes, nela batia com o látego usado para apressar cavalo. Luci chorava de tristeza ao ver o mimoso corpo da filha açoitado daquela maneira brutal.  
Na fazenda vizinha, que pertencia ao “seu” Venâncio, vivia o filho dele, Pedrinho, menino um ano mais velho do que Rosinha. Os dois brincavam juntos. Gostavam um do outro. Certo dia, vendo nódoa no braço da amiguinha, Pedrinho resolveu falar com o padrasto dela. José não era de dar confiança a gente miúda e fechava a carranca. Pedrinho procurou amaciar José, trazendo-lhe fumo e palha para enrolar o cigarro. Prontificou-se a enrolar o cigarro de palha dizendo que costumava fazer isto para o fazendeiro Venâncio, seu pai. Depois, elogiou as vacas e toda a criação da fazenda de José, o quintal muito limpo, a horta, o jardim, a plantação. Aveludou a voz e disse que gostaria muito de ter mãe como a dona Luci e irmã como a Rosinha, boas pessoas, embora estivesse feliz com o seu pai Venâncio e sempre lembrasse de Maria do Rosário, sua falecida mãe. Disse, ainda, para engabelar José, que o pai nunca batia nele, dava-lhe bons conselhos e o matriculava na escola. A professora era bondosa e nunca batia nos alunos com régua ou palmatória. Jesus Cristo e a Virgem Maria abençoam quem cuida bem das crianças e não as maltrata.
Ouvindo a fala tão sincera do menino, José começou a lhe dar mais atenção e...
- Pare a narrativa. Tire as mãos do teclado. 
- O que aconteceu? O que está havendo?
- Estou irritada. Você me batizou de Rosa, nome que tem aos montes nas famílias, na literatura, no cancioneiro. Da época dos teus pais, por exemplo, a ativista política Rosa Luxemburgo, a canção Rosa de Maio, a música Abismo de Rosas. Da minha época: As Rosas Não Falam. Você podia me chamar Ambrósia, Florência, Mafalda, um nome diferente, ser menos meloso e não usar o diminutivo.
- Que não seja por isto. Sem problema. Mudo o seu nome.
- Não precisa. Estou saltando fora dessa canoa. Esse teu conto é muito brega e sem originalidade. Já posso adivinhar o meio e o fim dessa estória. “Terra onde canta o sabiá” (e crocita o urubu), menina sofredora, heroísmo do menino que gosta da amiguinha e enternece o duro coração do homem mau. Existem milhares de contos, novelas e romances com esse enredo. Longe de ser escritor, você nada mais é do que um escrevinhador, um Andersen de meia-tigela.  
- Escute bem, garota enfezada: o enredo pode ser semelhante a outros, porém a arte do escritor está no modo de acomodar ideias, exprimir sentimentos, combinar temas e sensibilizar o leitor. Diferentes pessoas enxergam a mesma realidade de diferentes modos. Este conto, que pode se estender até se tornar um romance, ainda está no início. Entretanto, se você não está contente, a porta da rua é a serventia da casa.
- Me engana, que eu gosto. Diga essa broma para as tuas cabrochas. Comigo não, violão! “A porta da rua ...” De que baú você tirou a frase? Ao usar essa e outras, você parece mais velho do que aquele cara da Bíblia. Você bem poderia se valer de uma linguagem mais atual como a do computador e dizer: “se você está descontente, abro uma janela”. Seria mais delicado e moderno.    
- O “cara de Bíblia” tem nome, sabia? Matusalém, era o nome do “cara”.
- Claro que sei. Apenas não lembrei no momento. Ademais, estou com preguiça e não quero entrar em detalhes. Você enche o saco.    
- Eu? Você me interrompe, rebelde e agressiva, quer ensinar o padre a rezar missa, me faz críticas estapafúrdias e raivosas... e sou eu quem enche o saco? Pare com isso! O conto é meu. Você nem existe de verdade. Você é personagem criada por mim. Aliás, criei-te com o ouro do meu coração. Tratei-te com carinho. Caprichei na forma e te dei a bonita aparência de boneca de louça. Nem o deus Javé fez isto com Eva! É bom você lembrar: Adão foi criado do barro e a Eva, de uma costela do macho, enquanto eu te criei do ouro espiritual. A tua ingratidão é enorme e estou me segurando para não chorar. Você me magoou profundamente.   
- Tadinho, tá magoado. Seja homem! Por essas coisas, homem que é homem não chora. A criatura volta-se contra o criador. Clichê embutido na tua fala. Você podia ser mais original. Interessante: você diz que eu não existo, no entanto, fica aí a discutir comigo e a me prender numa narrativa insossa. “Ensinar o padre ...” Santo deus! Parece que você está escrevendo no século XV. E não me venha com chantagem emocional. Que pretensioso! “Ouro do meu coração”. O teu coração mais parece mina de carvão. Você me deu aparência de garotinha sensual para se imaginar transando comigo. Velhacaria de um pedófilo. Não gosto de ser vista como boneca de louça, lindinha e apetitosa. Prefiro ser boneca de pano. Se Adão era de barro e Eva um osso dele, nada tenho a ver com isto. Problema deles. Não conheço o boneco e nem a vadia. Danem-se os dois.
- Que horrível linguajar! Você deve respeitar o teu criador. A partir do momento em que te coloquei no conto, você passou a existir virtualmente, mas a tua vida é fictícia, não é real. A tua crítica é impertinente. Esse é o meu jeito de escrever e pouco me importa se te agrada ou não. Para teu governo: clichê facilita a comunhão com o auditório. Há clichês na poesia e na política. 
- Não me diga! Meu, você é um gênio! Saiba, “para teu governo”, que em qualquer texto ou conversa vulgar deparamo-nos com clichês.  
- Cacete... Eu só quis exemplificar, santa criatura! Evidente que em discursos, vulgar ou científico, em obras no mundo da arte, da técnica ou das profissões, pode haver mimetismo, imitação, plágio, clichê. E que estória é essa de “meu”? Engraçadinha. Você não é paulista e sim mineira, deve dizer “sô”, “treim bão”, “ocê” e outras expressões regionais. Eu sou o teu criador. Decido o teu modo de falar, de viver e de morrer. Escolho a terra natal, teus pais, teu nome e tuas amizades.
- “Santa criatura” é a senhora tua mãe, que te suportou por 40 anos. Pois, muito bem! Conosco não tem enrosco. Saio deste conto de merda. Vou navegar em outros mares. Surfando na minha virtualidade, vou procurar outro escritor mais talentoso.
- Já vai tarde. Mal-educada! Ingrata! Filha da puta!
- Vá se ferrar. Bobalhão! Otário! Idiota!

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